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Cinco milhões, cento e noventa e nove mil, quinhentos e cinquenta e três. O número é tão extenso que podia ser o da taluda premiada numa qualquer lotaria. Mas não é. É o número de visitantes, uma só vez ou várias, demoradamente ou só de soslaio, do blogue de Mónica Duarte. Mónica criou-o em meados de 2008. E chamou-lhe tão simplesmente Organizar a Casa. Mas rapidamente percebeu que o nome a dar-lhe não deveria ser esse, impessoal, mas antes outro. Revolveu na memória e rebatizou-o: A Dona de Casa Perfeita. Mas porquê “dona de casa” – e logo adjetivando-a de “perfeita”?
“É uma homenagem à minha mãe, falecida. Ela sim, era uma dona de casa. À antiga. Foi ela quem escolheu ser dona de casa, doméstica, ninguém lho impôs. E era perfeita porque me educou a mim e a quatro irmãos, duas raparigas e dois rapazes. Com ela e com o meu pai, eram sete as bocas para alimentar, todos os dias, o que não era coisa pouca. E à parte disso cuidava da casa. E fazia-o sempre com um sorriso. Tudo o que sei sobre culinária, as lides da casa, poupanças, aprendi tudo com ela. São esses ensinamentos da minha mãe, mais aquilo que aprendi depois, que partilho diariamente com as minhas leitoras. Mas o prazer de cuidar da casa, herdei-o dela. Os meus irmãos, eles e elas, são travessos a isso. Sou eu quem muitas vezes organiza a casa de alguns deles quando os vou visitar”, explica, gracejando Mónica Duarte.
Não se sabe se por causa da mudança de nome, se por escrever numa linguagem tão aparentemente simples quanto os conselhos que dá às leitoras, a verdade é que, com o avançar dos meses e em pouco tempo, as visitas ao blogue A Dona de Casa Perfeita cresceram. Tanto que este se tornou na página de organização doméstica mais lida em Portugal. Daí até se dar à estampa foi um sopro. Em 2012, Mónica Duarte foi convidada pela editora Guerra & Paz a publicar um livro. Deu-lhe o mesmo título, sem tirar nem pôr, do blogue. E o livro tornou-se rapidamente num sucesso de vendas, escalando lugares nas tabelas das livrarias, não necessariamente até ao topo, mas quase. Um sucesso de edição que não é um exclusivo só de Mónica, mas uma tendência internacional de vendas que acabou por proliferar em Portugal também.
As rotinas de uma dona de casa (que não é “só” dona de casa)
Mónica não se considera obsessiva por organização em casa. Se é organizada, é-o por prazer, assumidamente por prazer, não por obsessão. Mas aponta em “livrinhos-agenda” – como a própria lhes chama – tudo quanto descobre de artifício para melhor cozinhar, poupar ou limpar. A organização “desde miúda” era tanta que acabou por se tornar administrativa de profissão. As rotinas de Mónica Duarte, nada e criada em Lisboa, 38 anos, solteira e sem filhos – “tenho o meu cão, o Simão Sabrosa, um Parson Russel Terrier que faz tanto ou mais sucesso no blogue do que o que escrevo” –, são idênticas às da maioria das mulheres com que convive. Ou talvez não. Não há dia em que Mónica não chegue a casa, pela noitinha, mais cansada ou menos, dependendo dos dias, e não roube trinta minutos aos relógio, cronometrados ao segundo, para a limpeza e organização de uma divisão lá de casa. Sempre. Dia sim, dia sim. O resto da noite dedica-a a publicar no blogue, às vez três a quatro publicações por noite, nunca menos do que uma, mantendo-o sempre atualizado.
É o número total de visitas ao blogue A Dona de Casa Perfeita desde que começou, em 2008. O blogue de Mónica Duarte (anuncia-se em livro como “o site de organização doméstica mais lido em Portugal”) ocupa hoje a 383.ª posição entre os mais lidos em Portugal, segundo o “blogómetro” do site Aventar. 8.554.062: é este o número total de pageviews no A Dona de Casa Perfeita. Aventar 5.199.553
Mas será esse o segredo do seu sucesso? A dedicação de Mónica à casa e ao blogue? “Talvez. Quando criei o meu blogue, criei-o porque frequentava um fórum de casamentos na Internet, onde comecei a trocar informação sobre tudo – e não só casamentos –, desde conselhos de beleza, truques para aprender a poupar em casa, a curiosidades sobre as lides domésticas, tudo, absolutamente tudo. E perguntei-me: então porque não criar um blogue onde partilhasse as minhas experiências? E foi o que fiz. Acredito que as minhas leitoras me seguem porque se reconhecem naquilo que escrevo. É verdade que há cada vez menos tempo livre entre todas nós, é verdade que organizar, limpar e poupar dá trabalho – até a mim também me custa por vezes –, mas é tudo uma questão de método. É isso que tento explicar no blogue às leitoras. Se fizermos um poucochinho a cada dia, trinta minutos que seja, custar-nos-á menos no dia seguinte e temos mais tempo para relaxarmos depois, a sós ou em família.”
Mas Mónica diverte-se hoje sobretudo em casa. É a própria quem escreve, a páginas tantas, no livro A Dona de Casa Perfeita, “deve ser da idade, mas cada vez gosto menos de sair para me enfiar em cafés e bares. Não tenho paciência para confusões e quem me tira a minha casa, tira-me tudo.” Três anos volvidos sobre a edição do livro, a opinião de Mónica, hoje solteira, mantém-se. “Sim, continuo a preferir mil vezes passar uma tarde a organizar uma gaveta do que a ir dar um passeio só por ir. Sinto-me muito mais feliz em casa, rodeada do meu mundo, do que a aborrecer-me numa esplanada, sem nada com que me ocupar.”
O blogue continua a ser um sucesso de visitas na Internet, recentemente viu ser publicado pela Presença um livro-agenda de A Dona de Casa Perfeita, mas Mónica sabe que, apesar de tudo, há quem considere que o seu blogue é demasiado voltado às mulheres, voltando-as, por sua vez, demasiado à casa. Ou seja, um blogue que faz as mulheres — até pelo próprio título deste — regredir a um tempo em que ser-se dona de casa não era uma escolha, mas sim uma condição imposta pelos costumes da época, em Portugal e não só. Mónica rejeita tal rótulo. Até porque, diz, também os homens a procuram no blogue. Sobretudo quando o que está na ordem do dia é a comida.
“Leitoras, tenho-as de todas as idades, dos vinte aos cinquenta anos – e outras mais velhas, com sessenta e tal. Naturalmente, há mais mulheres entre quem me visita, mas também há homens. Ou casais. Muitas das raparigas mais novinhas são tudo menos a dona de casa perfeita. [Risos] Estão a começar a trabalhar pela primeira vez, saem de casa dos pais e vão viver com os namorados ou noivos, e pedem-me conselhos para aprender a gerir melhor os primeiros orçamentos a dois numa casa.” E os rapazes? “Eles, por sua vez, o que me perguntam é por receitas. Sobretudo receitas que sirvam para transportar na marmita, ao almoço. É sempre uma das publicações mais lidas da semana, a das marmitas. Mas eu não tenho a pretensão de escrever só para mulheres, dizendo-lhes que devem fazer como eu faço, que devem ser desta ou daquela maneira, e muito menos que devem ser donas de casa ou perfeitas. Ser-se dona de casa é uma escolha que se faz. A minha mãe foi-o. Mas eu não. É outro tempo. O que não significa dizer que não me devo interessar pelas lides da casa. É algo que me dá prazer. Então, porque não fazê-lo e partilhar com os outros?”, questiona a bloguer.
Culpe-se a crise pela crescente procura por blogues e livros “ideológicos e retrógrados”
Manuela Tavares é feminista, também investigadora em estudos sobre as mulheres e desde 1976 membro da UMAR, a União de Mulheres Alternativa e Resposta. Confrontada com o blogue e sobretudo com o livro de Mónica Duarte, Manuela considera que “não faz absolutamente sentido nenhum” que, hoje, estes continuem a ser escritos na toada com que são. E continua: “É evidente uma premissa nestes livros – esta autora não é caso único no mercado –, a de que a mulher deve ser dona de casa, ainda por cima perfeita, o que não faz o menor sentido. Eu desconheço a razão pela qual a autora deu esse título [“A Dona de Casa Perfeita”] ao livro, mas a verdade é que, mesmo tratando-se de um livro de conselhos, mais ou menos úteis, não discuto isso, a simples utilização de ‘dona de casa’ tem uma carga ideológica enorme, quase retrógrada, sobretudo num tempo em que as tarefas de casa, quando em família, devem ser repartidas por todos e não ser unicamente e exclusivamente uma tarefa da mulher.”
Recentemente, uma declaração de Paulo Portas sobre o papel da mulher em casa, causou bastante celeuma — nem de propósito, a afirmação veio do líder de um partido que se prepara para ter uma mulher ao leme. Disse Portas, num discurso em que agradecia aos portugueses — às portuguesas — os sacrifícios feitos em nome da austeridade e das “contas em dia”: “As mulheres sabem que têm de organizar a casa e pagar as contas a dias certos, pensar nos mais velhos e cuidar dos mais novos. Foram os portugueses que conseguiram, com os seus sacrifícios, vencer a crise e quero fazer uma homenagem especial às mulheres que aguentaram os anos de chumbo da recessão da herança do PS e procuraram conseguir que os filhos tivessem um futuro melhor. São elas credoras dos principais objetivos da política de apoio à família desta coligação”. Assunção Cristas nunca quis comentar.
Em declarações ao Expresso, Manuela Tavares não se poupou nas críticas: “Não nos podemos admirar com estas declarações. Afinal, correspondem à matriz ideológica da Direita, que defende que a mulher deve cumprir o seu papel biológico. Salazar já dizia que a boa dona de casa tinha sempre muito que fazer. E quanto mais mulheres estiverem em casa, menos dinheiro o Estado terá de gastar em infraestruturas sociais. Paulo Portas quis fazer um elogio às mulheres, mas na prática está a subvalorizá-las. As mulheres devem assumir todos os papéis que os homens assumem e as responsabilidades domésticas devem ser ponderadas”.
Mas porque é que há, afinal, sobretudo entre mulheres do nosso tempo, esta procura desenfreada pelas questões do lar? Precisamente por isso, por vivermos no tempo em que vivemos. É pelo menos o que crê Manuela Tavares. “Não podemos desligar essa situação, a da procura, da situação concreta que o país atravessa, que é a de uma crise económica grave. A tendência é a de atrair as mulheres de volta a casa, por culpa do desemprego, primeiro, mas também por causa do custo de vida: os infantários são cada vez mais caros, os empregos que há são mal remunerados ou precários, voltando as mulheres para casa, ou para cuidar dos filhos enquanto não conseguem trabalho. E a verdade é que, estando em casa, as mulheres acabam por ocupar-se das tarefas de casa, tendo estes livros uma aceitação grande. O mesmo em relação aos blogues”, explica.
Não há culpados nem inocentes. Mas as editoras têm uma responsabilidade, acredita a investigadora: a de não propagandear. Como certo dia o Estado Novo propagandeou — “e com que consequências para as mulheres”, recorda. A comparação, mesmo que à distância de muitas décadas, é evidente. “Se pensarmos unicamente no seu conceito – poupar, organizar e limpar –, o livro dirige-se às mulheres como boas donas de casa; quer ocupá-las em casa. E quando se está ocupado, pensa-se menos, reage-se menos. E quase que me recorda aquele período, a seguir à II Guerra Mundial, em que as mulheres tiveram que abandonar os seus postos de trabalho em detrimento dos homens que, regressados da guerra, não tinham eles próprios emprego. Os próprios governos, nesse tempo, propagandearam as mulheres – quer através da publicidade aos eletrodomésticos na televisão e na imprensa, quer através do próprio cinema da época – como sendo, nem de propósito, a dona de casa perfeita. Em Portugal, o próprio Salazar dizia nos discursos que nunca houve uma dona de casa perfeita que não tivesse muito o que fazer”, recorda a investigadora e feminista.
E acrescenta, num tom crítico: “Todo e qualquer livro que, hoje em dia, fale das mulheres como sendo donas de casa, está ideologicamente datado e não devia sequer ser reproduzido. Mas o problema não é o livro. Ou somente o livro. Não ponho em causa a boa-fé da autora ao fazê-lo. Muitas vezes são as próprias editoras e não os autores, numa ótica de negócio, quem propõe este tipo de títulos e de conselhos para mulheres. O problema, o verdadeiro problema é a ideologia que, mesmo que inconscientemente, lhe está implícita. Uma mulher não tem que saber limpar, organizar e poupar. Uma mulher não tem que ser uma dona de casa. Nem naquele tempo, o do Estado Novo, nem no presente, nem nunca.”
Manuel S. Fonseca, que foi o primeiro a editar o livro de Mónica, compreende as críticas, mas defende a sua dama. “Este é um livro que se encontraria num velho baú de sótão, numa casa também ela velha, provavelmente a da avó. É verdade. E isso não é necessariamente mau. Porquê? Porque é um livro que, podendo encontrar-se num baú, veio do presente, afinal, da comunicação online, de um blogue, o que faz dele um livro perfeitamente intemporal.”
E o editor da Guerra & Paz dá o exemplo de um livro, de ontem e de hoje, que sendo à primeira vista para mulheres, chegou tanto a elas como a eles. E ainda chega. “Dir-me-ão que é um livro [A Dona de Casa Perfeita] sobretudo dedicado às mulheres, que quer fazer das mulheres uma dona de casa. Não acredito nisso. E vou dar um exemplo: a Maria de Lurdes Modesto. Os livros de culinária da Maria de Lurdes, quando saíram, seriam dedicados quase somente às mulheres. Querê-las-ia na cozinha. Não é verdade? Mas a realidade foi outra, foi a de que chegou a todos, homens e mulheres. Eu próprio, e hoje em dia, continua a não dispensar consultá-lo. Acho que o livro da Mónica Duarte será útil hoje como daqui por muitos anos. E sê-lo-á para homens como para mulheres. A solução gráfica que utilizámos, o título, a cor, é somente um modo de tornar a informação mais condensada, mais apelativa ao leitor. Não há nada de sexista na edição”, defende.
A Laura Santos das noivas e Mónica Duarte das donas de casa. Mais de meio século a separá-las. E semelhanças, há?
O ano é o de 2012. Mónica Duarte escreve no seu livro, A Dona de Casa Perfeita: A cozinha é muitas vezes a parte principal da casa. “É onde se passa muito tempo: é lá que se confecionam e muitas vezes se comem as refeições. Há loiça para lavar, as compras do supermercado para arrumar, há tralha que se acumula na mesa. Mas a primeira preocupação deve ser, antes da organização, a limpeza.” Vamos recuar no tempo. Até 1955. Lê-se num livro (um sucesso de procura como o de Mónica) da época, “Escola de Noivas”: “Toda a vida do lar se encontra directamente ligada à cozinha doméstica: a economia familiar, o bem-estar e a saúde da família, a alegria dos dias de festa, a satisfação das visitas de casa em dias de recepção, e tudo o mais. É aí, portanto, que a dona de casa desempenha uma das funções mais importantes do seu labor diário, prestando tão grande colaboração na boa ordem e conforto da sua família.”
Uma e outra, Mónica em 2012 e Laura Santos em 1955, à parte da referência à dona de casa – uma no título, outra no texto –, têm em comum a cozinha como o centro dessa mesma casa. A separá-las, 57 anos. Mais do que isso: dois regimes, um ditatorial e o democrático de hoje, e uma revolução pelo meio.
A propósito de Escola de Noivas. A leitura do livro, mais do que permitir comparar (a custo ou não) autores e escrita, permite-nos compreender que tempos eram os do Estado Novo e o quão a mulher era enclausurada (uma clausura que não necessitava de trancas ou grades; a própria condição de ser-se mulher era a tranca e a grade) em casa. Talvez por isso haverá quem, hoje, se indigne – como a investigadora Manuela Tavares – ao ler sobre a dona de casa, a “perfeita” ou outra. A autora de Escola de Noivas, Laura Santos, há perto de um século, começou por vender livros. E vendia-os numa tabacaria em Alvalade, na cidade de Lisboa. A Escola de Noivas tornou-se na galinha dos ovos de ouro. Ou melhor, a escrita para a dona de casa (ou a aspirante a tal) da época. E anunciava-se assim: “Tudo o que uma mulher deve saber para governar bem o seu lar. São quinhentas receitas de culinária, doces e licores”.
Mas nem só de comeretes e beberetes vive o homem – ou melhor, a mulher. É que mais do que ensiná-las a cozinhar, o livro aspirava a preparar as raparigas para o casamento, as lides domésticas e a educação dos filhos – folheando, página a página, “Escola de Noivas”, encontra-se num ápice o seguinte: “O arranjo, método e o asseio da mulher, reflectem-se inevitavelmente no vestuário do marido. Se ele se apresenta com as calças desvincadas, as bandas do casaco mal passadas, os punhos das camisas e os colarinhos de alvura duvidosa, imediatamente o nosso pensamento voa para a negligente mulherzinha que não sabe cumprir o seu dever de esposa cuidadosa, vigiando o vestuário do marido.” A mulher-modelo de Laura Santos e do Portugal de então apresentava-se assim: subserviente. E dona de casa, naturalmente.
Mas nem só a mulher era considerada “mulherzinha” e, portanto, inferior ao marido (“A decoração do lar deve constituir uma afirmação da personalidade da dona de casa. Se é a sua casa o centro de gravitação da sua vida diária, porque não há-de a mulher procurar vincar-lhe a marca pessoal do seu bom gosto, preferência, educação e sentido de utilidade prática?”, questionou-se então a autora, Laura Santos) numa sociedade profundamente patriarcal. Também as crianças, sendo a sua educação ocupação da mãe, eram tidas por inferiores. Pior: desprovidas de razão. Leia-se: “É hoje ponto assente que a educação da criança deve começar no berço. (…) Nem excessiva vigilância e atenção às suas brincadeiras (isso pode torná-la vaidosa e enfatuada, ou aborrecê-la por lhe tirar a tranquilidade), nem exagerada liberdade para fazer tudo o que lhe vier ao pequeno cérebro onde as ideias nascem sem o freio da razão, como planta bravia em terreno inculto. (…) Dissemos algures, neste nosso trabalho, que a melhor escola será sempre a escola da Família (…) Acreditamos que estão connosco todas as mães cuidadosas do futuro dos seus filhos e conscientes da sua responsabilidade para com esses pequeninos entes que pouco a pouco se preparam para entrar na grande amálgama da sociedade, onde só vencem os que se encontram bem adaptados”. Pressão? Qual pressão?…
Mocidade Portuguesa Feminina. À menina-mulher pedia-se uma “doce sujeição” à causa e à casa
8 de dezembro de 1937. O Estado Novo era realmente novo. Naquele dia nascia por Decreto-Lei a Mocidade Portuguesa Feminina (MPF), organização que, segundo os seus estatutos diziam, “cultivará nas filiadas a previdência, o trabalho colectivo, o gosto da vida doméstica e as várias formas do espírito social próprias do sexo, orientando para o cabal desempenho da missão da mulher na família, no meio a que pertence e na vida do Estado.” Ao contrário da “Escola de Noivas”, que só mais tardiamente ensinaria os lavores às meninas casadouras que os quisessem aprender, a MPF não só os ensinava, mas fazia-os obrigatórios no ensino. Às casadouras e a todas. Desde tenra idade.
Historiadora e Prémio Pessoa de 2007, Irene Flunser Pimentel escreveu sobre a MPF. E fala-nos do surgimento desta. “A Mocidade surge com o surgimento do próprio Estado Novo, mas ganha força em meados de 1936. É que o regime cuidou primeiro das instituições corporativas, da propaganda, da polícia política, e só depois cuidou das organizações para educar as suas crianças, primeiro os rapazes, com a Mocidade Portuguesa, e depois também as raparigas, com a Mocidade Portuguesa Feminina.” Mas antes mesmo da MPF surgir, surgiu a Obra das Mães pela Educação Nacional. Uma e outra definiam de igual forma o lugar reservado à mulher na sociedade: a casa. E educavam-na para isso.
“A Obra das Mães era de carácter voluntário, só depois surgindo a Mocidade, para rapazes e raparigas, que era, ela sim, de carácter obrigatório. O que aí se lhes transmitia, e focando-nos nas raparigas, era a importância de se casarem, de serem mães, educarem os filhos, tratarem dos lares. Era essencialmente isso. Os rapazes, por sua vez, tinham uma educação diferente, mais paramilitar”, lembra Irene Flunser Pimentel. O que é curioso é que, na década de 1930, houve um acesa polémica entre uns e outros, Mocidade Portuguesa e Mocidade Portuguesa Feminina. Até no interior da Mocidade as mulheres eram discriminadas. Eis a explicação: “As raparigas tinham, tal como os rapazes, um uniforme. Mas a Mocidade Portuguesa masculina considerava que esse uniforme, o feminino, sendo em tudo semelhante ao deles, não era apropriado às raparigas, pois elas não seguiam a formação militar, mas somente a doméstica. As atividades delas, à parte de tudo o que dizia respeito ao lar e aos lavores – aprendiam a bordar, a cuidar dos pobres em bairros de lata, etc. –, era sobretudo dedicada ao desporto, à música, com o canto coral, mas também à formação nacionalista, ideológica e religiosa”, recorda a historiadora.
Em 1932, num dos muitos discursos que fez à nação, escutou-se de Salazar, presidente do Conselho: “Deixemos o homem a lutar com a vida no exterior, na rua. E a mulher a defendê-la, a trazê-la nos seus braços, no interior da casa. Nunca houve nenhuma boa dona de casa que não tivesse muito que fazer”. O conceito de dona de casa não é certamente o mesmo hoje. Mas que nele existia, então, uma carga ideológica forte, existia. A MPF teve duas publicações, o Boletim e a Menina & Moça. Neles se descrevia a “mulher perfeita” de então – o termo “perfeita”, também ele, não terá hoje a mesma carga que tinha à época.
No Boletim, nem de propósito, lia-se: “[A mulher perfeita] é uma mulher capaz de compreender a doce sujeição que a esposa deve ao marido.” Uma sujeição à casa que, até por quem não era dona de casa (ainda que sendo mulher) era bem-aceite. Na outra publicação da MPF, Menina & Moça, Maria Margarida Craveiro Lopes, dirigente da Mocidade e deputada na segunda metade da década de 1950, escreveu, em 1952: “Que pena da mulher que trabalha! Falo contra mim, mas sinceramente julgo que a mulher perde, quando se entrega a ocupações fora do lar, muito do seu encanto e graça feminina. Ela não foi realmente feita para competir com o homem. Ele tem sobretudo um passado de milhões de anos de luta pela vida que o torna sempre muito superior à sua companheira.”
Irene Flunser Pimentel explica este evidente anti-feminismo entre mulheres: “A verdade é que são as próprias mulheres do regime — e naturalmente Salazar – quem mais referia que, tal como os homens tinham uma missão, também as mulheres a tinham. Mas em espaços diferentes, separados. O espaço público era dos homens e o doméstico das mulheres. A elas, cabia-lhes educar os filhos, servir o marido. Simplesmente isso. No Código Civil de 1867, que também era conhecido como o ‘Código do Seabra’, lia-se que no lar familiar a mulher casada deve obediência ao marido e a sua tarefa é cuidar desse lar. É um Código Civil que dura sem emendas até 1967 e só é revisto definitivamente com a alteração do Código Civil no pós-25 de abril.”
Entre maio e dezembro de 1941, o Boletim da MPF, a cargo de Hilda Correia de Barros, resolveu publicar uma rubrica regular com o título «O que nós queremos que as nossas raparigas sejam». E lia-se nela: “ [A rapariga deve] ser boa dona de casa mas sem maçar os outros com os acontecimentos caseiros, compreensiva dos gostos e necessidades alheias, afectuosa para a família do marido, pontual, discreta com os seus amigos, económica, sincera e leal, com bom génio, dócil, séria, confiante, pouco tagarela e sem usar bâton.”
Nem maçadora nem com baton
“Educar a mulher para que toda a sua individualidade seja accionada pela força dinâmica desta trilogia [Deus, Pátria, Família] é o principal papel da Mocidade Portuguesa Feminina”, referia Maria Guardiola à revista Stella, em 1938. Guardiola foi Comissária Nacional da MPF desde 1937 até à sua exoneração do cargo, a 15 de agosto de 1968. Trinta e um (longos) anos. O “papel” de que a Comissária Nacional falava é tanto mais compreensível quando se lê um prospecto, chamemos-lhe assim, “ CREIO-QUERO-PROMETO”, que era distribuído pelas raparigas da Mocidade Portuguesa Feminina: “Como cristã, quero «prender a minha charrua a uma estrela», para traçar direito e com rumo às alturas o meu caminho, e para que a minha vida humana irradie o reflexo da Luz divina, em verdade e em beleza. (…) Como portuguesa, orgulhosa da minha Pátria, quero colocar a minha pedra no edifício glorioso que há oito séculos vem a ser erguido. (…) Creio que a Pátria se engrandece com as virtudes familiares, porque a família é a base da sociedade.”
Mas a MPF, apesar de alicerçada no regime, tombou antes do próprio Estado Novo tombar. “Sim, a Mocidade Feminina Portuguesa termina definitivamente com a queda do regime. Mas antes mesmo disso, antes de 1974, há uma degradação da própria instituição. Antes, era de carácter obrigatório, mas a verdade é que as escolas e os liceus não achavam muita graça a essa obrigatoriedade, porque colocava os instrutores da Mocidade Portuguesa acima dos próprios professores dentro das salas de aulas. Houve uma primeira retirada de poderes à Mocidade Portuguesa em meados de 1956, tendo esta passado a ser carácter obrigatório unicamente até ao 3.º ano. A maior retirada de poder dá-se em 1971, por decisão de Veiga Simão [o Ministro da Educação Nacional de 1970 até ao 25 de abril], em pleno Marcelismo, e a Mocidade é transformada numa organização meramente voluntária. A própria Obra das Mães pela Educação Nacional tinha cada vez menos peso na sociedade. Ambas as organizações desaparecem com a queda do regime. Mas marcaram naturalmente gerações sucessivas de mulheres”, explica Irene Flunser Pimentel.
A geração da Laura e a de Mónica. Uma e outra concordam: não há nada de errado em ser-se dona de casa. “O que faz é falta”
Voltando a Mónica Duarte. Ou melhor, ao blogue A Dona de Casa Perfeita. Nele, Mónica fez de uma leitora uma amiga: Teresa Carvalho. Teresa conta-nos a história na primeira pessoa. “Eu acompanho o blogue da Mónica desde 2009. Não a conhecia antes. E cheguei a ela por acaso, numa pesquisa que estava a fazer na Internet sobre casas de banho, imagine-se. E a foi escrita da Mónica, o modo como tinha o blogue organizado, tudo divisão por divisão, aqui a limpeza, ali a organização, acolá a poupança, tudo muito simples, muito prático, que me chamou a atenção. Comecei por ler a publicação sobre as casas de banho e, quando dei por mim, tinha lido todas as outras que estavam para trás. De seguida. E hoje somos boas amigas. Mas tudo começou no blogue, comigo a comentar as publicações da Mónica, a colocar-lhe dúvidas, a trocar experiências. Seguiram-se os e-mails, depois o velhinho MSN e daí à troca de contactos e à amizade foi um passo. Conhecemo-nos em 2010. E é uma amizade que dura até hoje”, recorda.
A primeira coisa que Teresa faz quando chega a casa e liga o computador é ler o que Mónica publicou de novo. “Eu sei perfeitamente que nem todos os leitores têm a mesma relação que eu tenho com a Mónica, mas sei que a lêem com tanto ou mais interesse do que eu, porque vêem nela os conselhos que não escutaram das mães, das avós, talvez por falta de tempo, por vivermos tudo apressadamente. Mas são conselhos que, afinal de contas, nos fazem falta e são-nos úteis.” Mas não são conselhos que impõem à mulher, mesmo que inconscientemente, um trabalho que é de ambos, homem e mulher? Teresa Carvalho diz que não. Prontamente.
“Cá em casa é simples: as tarefas são partilhadas por todos. Não me vejo como a dona de casa – e muito menos perfeita. Nem quero. Mas a verdade é que quem mais trabalha nas lides de casa sou mesmo eu. Os homens cá de casa só sabem fazer uma coisa de cada vez. Enquanto eles fazem uma, eu já conclui uma catrefada delas. Enquanto eles fazem a cama ou limpam o pó, eu já tratei das consultas dos filhos, descongelei a carne para o jantar, comprei o pão e trinta por uma linha. Faço-o porque quero, porque me dá prazer. Não há mais a dona de casa como antes. Hoje as mulheres trabalham, tentam ter tudo minimamente organizado em casa, por causa dos filhos e do marido, tentam tratar da roupa, da higiene da casa, mas tudo apressadamente, enquanto antes as domésticas, por escolha ou não, tinham o dia inteiro, a semana inteira para ter tudo num brinco. O tempo é outro. E quer o livro, quer o blogue da Mónica o que nos ensinam é a aproveitar o tempo que temos”, conclui Teresa Carvalho.
Recuemos uma geração na conversa, mas sem sair do presente – e sobretudo sem deixar a temática da dona de casa. Isabel Carriço, de 53 anos, ela sim é do tempo, não da Mocidade Portuguesa Feminina obrigatória, mas das aulas de lavores na escola. E comprou, ela mesma, o livro “Escola de Noivas”. Se o leu? Assim-assim. “Eu comprei-o quando tinha uns 16 anos, talvez. E comprei-o, tal como muitas raparigas da minha idade, por curiosidade. Só isso. A verdade é que eu não sabia cozinhar naquela altura. Aliás, casei-me sem saber cozinhar nada ou praticamente nada. Não diria que aprendi a cozinhar com aquele livro, mas naquela altura – e ainda hoje – descobri lá muitas receitas. Para mim é sobretudo isso: um livro de receitas. E é útil. Muito útil.”
Muito do que sabe nas lides da casa, aprendeu-o, estranhamente ou não, na escola. E recorda-se de quase tudo. “Não aprendi propriamente os lavores com a ‘Escola de Noivas’. Foi mesmo na escola que aprendi. Eu vivia numa aldeia, perto de Ovar, e na escola primária era-nos ensinado a coser, a fazer pontos de malha e croché. Ainda hoje sei fazer. No ciclo, aí sim tínhamos uma disciplina de lavores, em que os rapazes iam para as oficinas, aprender a trabalhar com madeiras, por exemplo, enquanto nós, as raparigas, aprendíamos aquelas coisinhas básicas na costura, na cozinha, no dia-a-dia de uma casa. Chegada ao liceu, acabou-se isso tudo. Confesso que também era demais”, graceja.
Mas Isabel Carriço é da opinião que, hoje em dia, e sendo um tempo diferente do da sua meninice, os lavores na escola, “até uma certa idade” não faziam mal às crianças. Antes pelo contrário. “Eu própria tenho uma filha, que hoje tem 28 anos, e sinto que uma disciplina de lavores como a que eu tive — ou mesmo um livro como este, o ‘Escola de Noivas’ [Isabel ainda o guarda, imaculado, na estante] –, não lhe tinha feito mal nenhum na escola. Não ia fazer dela uma dona de casa. Mas também não lhe fazia mal lê-lo.” O mesmo em relação aos rapazes. “Tenho um filho e é igual; vão aprendendo de ver, mas não sabem fazer o que eu sabia com a idade deles. Eu sempre tive muita curiosidade em aprender. Hoje em dia não há curiosidade nenhuma. E são coisas tão úteis. E simples. Sobretudo no que diz respeito à cozinha. No ciclo, quando eu estudei, ao sábado rapazes e raparigas tinham aulas de culinária. Era uma misturada. E aprendiam a fazer tudo, desde cozer uma batata a fazer um refogado. É verdade que são só umas luzes. Mas antes ter aquelas do que nenhumas, não é?”