Um dia será pergunta de programa de cultura geral: quem foi o artista que durante os MTV Video Music Awards de 2009 interrompeu o discurso de Taylor Swift, que acabava de ganhar o prémio para “Best Female Video”, e disse “Yo, Taylor, Imma let you finish, but Beyoncé had one of the best videos of all time!” Pessoas com uma coleção de discos avantajada têm a resposta na ponta da língua: Kanye West. Foi há 14 anos e Kanye era uma estrela há 6, desde que lançara The College Dropout, que fez 20 anos dia 10 de fevereiro – e se nesses seis anos já acumulara polémicas, a partir daí nunca mais parou.
Esse foi uma espécie de momento de viragem na carreira de Kanye, ou pelo menos na perceção pública do mesmo: houve quem o defendesse, não só porque há poucas coisas mais punk do que invadir um palco e dizer o que se quer dizer sem pensar nas consequências, mas também porque o ato foi enquadrado por muita gente na luta pelo empowerment de culturas demasiadas vezes menorizada (a cultura negra, o hip-hop, o r’n’b); mas também houve quem lembrasse que por mais razão que Kanye tivesse (e tinha) convém respeitar as vitórias dos outros.
Dezasseis anos depois, meros dias antes de me sentar a escrever isto, o meu garoto de 14 anos mandou-me um link do Youtube para o Whatsapp, dizendo “Ignora de quem é esta música”. A canção era Ghost Town, faixa de Ye (de 2018), e dizer faixa é pouco: é um espanto de comoção, com o órgão Hammond samplado a fornecer uma cama de melancolia sob a qual se desenrola uma pequena tragédia. Cada beat, cada sample, cada rima, cada gancho de guitarra, tudo é imaculado e épico, como Kanye costumava ser antes; e é difícil precisar este antes – antes do quê? Do casamento com uma Kardashian?, de se descobrir que é bipolar?, da morte da mãe?, de se tornar apoiante de Trump?, das afirmações anti-semitas?
Foi assim que chegámos a este momento: Kanye acaba de lançar novo disco, Vultures 1, a meias com Ty Dolla $ign, e eu – que nunca dei um tostão pela nostalgia – regressei a College Dropout e tive saudades da frescura que senti quando ouvi aquele manancial de malhão atrás de malhão pela primeira vez. Mas é possível que isso não se deva ao meu envelhecimento, mas sim ao cansaço com a postura de Kanye: tenho empatia pela bipolaridade dele, mas já não consigo acompanhar a sucessão de disparates — a adesão ao movimento MAGA, as afirmações anti-semitas, o sem número de incidentes incompreensíveis e indesculpáveis que levaram o meu miúdo a escrever “Ignora de quem é esta música”. Ao contrário do que é comum hoje em dia, ele separa o artista das canções, mas dói-lhe que o tipo que criou My Beautiful Dark Twisted Fantasy e que continua a arrancar um par de grandes canções por disco se tenha tornado num ser lamentável, um narcísico incapaz de ponderar no sofrimento que as suas palavras causam, um quase negador do Holocausto.
[ouça “Vultures 1” na íntegra através do Spotify:]
A queda de Kanye pode medir-se assim: Taylor Swift, 15 anos depois, ganhou um Grammy para Álbum do Ano e anunciou um novo – e no dia seguinte não se falava de outra coisa; Beyoncé participou num anúncio do SuperBowl em que aproveitava para deixar a dica de que vem aí novo disco – e não se fala de outra coisa. Kanye tem novo disco e o assunto é que usou samples sem autorização, apesar de os autores da música original lhe terem dito explicitamente que não queriam que usasse.
Nada disto torna Kanye um mau músico – Céline era um escritor maravilhoso com uma tendência para péssimas escolhas ideológicas, só para dar um exemplo de que arte e ideologia funcionam de forma separada. E basta picar Vultures 1, que não é um disco imediato, para encontrar grandes canções: o gospel lento e melancólico de Stars (a faixa de abertura), o electro negro de Back to Me ou de Carnival (dois malhões), cada uma destas faixas podia estar num dos melhores discos de Kanye.
Mas nenhuma delas vai acabar nas listas de melhores canções do ano – e de miúdo maravilha a pária, a queda de Kanye foi monumental: primeiro lenta, depois abrupta. As idiossincrasias iniciais de Kanye – um certo egocentrismo que já assomava – eram perdoadas por ser novo e porque ele representava uma rutura com uma certa imagem de rapper que já cansava: os rappers eram quem tinha street cred, quem tinha passado droga e sobrevivido a tiroteios, uma espécie de luta de golos que não raro obnubilava o talento de quem não se armava em pavão.
Kanye era outra coisa: um college dropout, sim, mas também um rapaz educado, lido, capaz de frases (e fraseado) elaborado, que apesar de já ser respeitado pelos muitos beats que fez para as maiores estrelas, se sentia posto de parte porque não encaixava no molde previsto para os rappers. Os seus assuntos eram outros – de consciência social, de identidade pessoal, fora da caixa doo gueto.
Talvez por isso (ser de classe média, não se gabar da droga que dealou, ser lido) Kanye tenha chegado com tanta facilidade aos miúdos brancos – isso e a música (e, eventualmente, os polos). Depois de ouvir a canção o meu garoto me mandou, Ghost Town, pus-me a procurar os samples que Kanye usara: soul suave, gospel épico, guitarras blues, e dei por mim a pensar que conhecia aquilo de algum lado – não os originais (esses conheço), mas o som em geral. E de repente ocorreu-me ao que soava: soava a Kanye West.
Desde o primeiro momento a solo que West se especializou em sacar samples de soul antiga, de gospel (uma obsessão), de blues, aumentando ou diminuindo o pitch, enchando as canções de coros (uma parte deles gospel) e cordas, tudo em redor de beats inesperados, desenhados com a precisão de um relojoeiro. E, tal como os Outkast gradualmente o foram fazendo, cada um daqueles raps soava único e aproximava-se da pop.
Da pop ou do pesadelo – exatamente em que caixinha se coloca esse prodígio de auto-tortura emocional que é Runaway? E, sim, eu sei que é uma escolha óbvia mas reparem o quão pouco habitual isto é: 2 ou 3 notas ao piano, um 808 a fazer a linha de baixo e uma letra, meio rapada meio cantada, em que um homem admite ser um traste e avisa (uma garota?) para fugir dele. “Let’s have a toast for the douchebags”, cantava o homem – e qualquer tipo comum que já fez merda na vida sentia uma facada no coração.
Recuem à faixa de abertura do disco, Dark Fantasy: piano r’n’b, coros e mais coros, a batida, o rapanço, de novo os coros e vai alternando – e que raio é Gorgeous (com Kid Cudi), de onde vem aquela figura melódica, em que instrumento foi tocada, é um sample, de onde vinha esta música que não tem lugar nas hagiografias comuns?
[ouça “The College Dropout” na íntegra através do Spotify:]
Tudo isso tem a sua raiz em College Dropout, um disco que se quiséssemos resumir só às grandes canções permanecia tal como está – mas avancem até à 15ª faixa, School Spirit: lá está o coro com o pitch alterado, o beat aos solavancos, o piano lento muito rhythm’and’blues, tudo muito gospel – uma maravilha. Três canções à frente, duas palavras: Two Words é simplesmente majestosa, com os seus coros gospel, as cordas em ascensão, e aquele sentido de épico que só existe na cabeça dos mitómanos, dos loucos, dos que não aceitam menos que uma epopeia em cada refrão. Faixazona da porra: o riff de guitarra a servir de gancho, cordas por todo o lado, coros por todo o lado, tudo a subir, arrepio imenso.
Pequena pausa para ponderar que reduzir a música de Kanye (em College Dropout e por aí fora) é um erro: All Falls Down parte de guitarra acústica e está longe, muito longe, do habitual no hip-hop – podia muito bem ser uma faixa de The Miseducation of Lauryn Hill (de Lauryn Hill, dos Fugees); e até hoje ainda não arranjei uma explicação para Jesus Walks, que começa com uma multiplicidade de coros e uma bateria de escovas, rap à antiga, uma canção esquisita como poucas mas difícil de resistir: há ali o que parece ser uma flauta mas sabe deus onde ele foi desencantar aquilo.
College Dropout era o disco de alguém que passara anos fechado em casa a fazer beats, a ouvir soul e gospel, a sonhar com épicos e a querer mostrar que era rapper e não apenas produtor – um disco de um génio da produção, um génio do épico, da ambição, um génio que ficou preso nos seus demónios, College Dropout era o cartão de apresentação de um estudante do mal humano que ainda não se tinha doutorado nos seus próprios problemas. Trazia um mundo novo para o hip-hop, libertou-o das suas regras estratificadas, trouxe os brancos para a festa e permanece como um marco.
Kanye acredita em Deus – e talvez só uma entidade deífica consiga salvá-lo de si próprio. A nós, pobres pecadores mundanos, resta a sorte de termos assistido à sequência que foi de The College Dropout (2004) a My Beautiful Dark Twisted Fantasy (2010) passando por Late Registration (2005), Graduation (2007) e 808s & Heartbreak (2008), sem termos tido o azar de cair como ele.
Mas no último dia, quando se fizerem as contas, mesmo que haja uma entidade superior e que condene o homem a grilhetas no inferno, no último dia a sua arte permanecerá no exato lugar onde começou: no topo do mundo, a sair de colunas aos berros, para espanto das baratas (que vão sobreviver ao Apocalipse).