Discurso do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa
É para os portugueses a minha primeira palavra. O vosso voto foi um voto de fé na democracia, ao inverter a abstenção que parecia imparável. Querendo dizer, nos 50 anos do 25 de Abril, que o voto vale sempre a pena, a liberdade vale sempre a pena, a democracia vale a pena. Que bom recordá-lo neste 2 de Abril, no mesmo dia em que há 48 anos se realizou a votação final global da Constituição, em que tive a honra de participar, uma Constituição debatida em plena e conturbada Revolução.”
O Presidente da República opta por não marginalizar nenhum voto, rejeitando qualquer ideia de que a redução da abstenção — por ter criado instabilidade ou ter feito crescer forças nos extremos do espectro político — passa a ser má. Que, por mais que tenha crescido uma força política com posições que o próprio discorda politicamente (o Chega), ele, como Presidente, não distingue entre votos bons e votos maus.
Senhor primeiro-ministro acaba de assumir funções por ter encabeçado a candidatura mais votada pelos portugueses. Para substituir quem liderou o mais longo governo neste século e o segundo em democracia, sempre com sensibilidade internacional, em particular europeia, que foi e será de interesse nacional. A vitória eleitoral foi difícil, porventura a mais estreita em eleições parlamentares, mas, imagino que, talvez por isso, a mais gratificante.”
Marcelo justifica que, perante um cenário de um Parlamento ultra fragmentado — e sem uma maioria alternativa ao que classificaria minutos depois de “hemisfério político” à direita — não tinha outra opção se não escolher para primeiro-ministro o líder do partido mais votado. E começa por relativizar a existência de uma eventual instabilidade que o Governo possa ter em comparação com o anterior que, em matéria de longevidade, foi quase de exceção: Costa foi o segundo primeiro-ministro da história da democracia que esteve mais tempo funções. O chefe de Estado deixa ainda uma pincelada que remete para o futuro europeu de António Costa, lembrando que o agora ex-primeiro-ministro tinha uma apurada “sensibilidade europeia”.
Ao votar os portugueses fizeram três escolhas e o somatório dessas três escolas define o mandato recebido pela coligação, mas também pelo seu líder: escolheram, pelo aumento da participação, exigir do Governo saído das eleições a reforçada aproximação às pessoas e aos seus problemas;”
O Presidente da República começa por avisar Luís Montenegro que o resultado fragmentado das eleições significa uma exigência dos eleitores para que o Governo seja dialogante e responda às várias sensibilidades e reivindicações da sociedade. Que a redução da abstenção e o crescimento de um partido anti-sistema como o Chega é um alerta para quem governa não ignorar os problemas reais das pessoas, sob pena de as mesmas deixarem de acreditar na política e no regime democrático que se cimentou desde o 25 de Abril.
Escolheram, depois, mudar de hemisfério de governo. Não deram maioria ao partido que dispunha da maioria absoluta de mandatos uma nova maioria, nem lhe deram minoria que fizesse maioria absoluta com outros partidos do mesmo hemisfério. Nem deram, e aí por uma diferença muito exígua, ao principal partido desse hemisfério a vitória eleitoral;”
Marcelo Rebelo de Sousa volta às justificações, aludindo àquele que era o entendimento político e constitucional até 2015: o partido com mais votos tem o direito a formar governo. Mas não ficou por aí. O Presidente reforçou que os portugueses, por terem retirado a maioria ao PS e terem dado a vitória ao PSD, mostraram que queriam uma mudança da cor política de Governo — o que chama de “mudança de hemisfério”. Ao mesmo tempo sugere que o PSD não deve deixar de negociar com o PS, lembrando que a diferença de votos entre os dois maiores partidos foi “muito exígua”.
Escolheram finalmente dar ao vitória ao setor moderado e não ao setor radical do outro hemisfério“.
É mais um aviso à navegação feito pelo Presidente: quem ganhou foi a AD, não foi o Chega. Marcelo quer que Montenegro corresponda aos anseios dos eleitores do Chega, mas avisa que não foi o partido de André Ventura que venceu. É uma forma de o chefe de Estado dizer que o PSD não se deve descaracterizar por pressão do crescimento do Chega, já que foram mais os que votaram na direita moderada (AD) do que na direita radical (Chega).
O mandato parece óbvio, mas é complexo, por quatro razões: o panorama internacional, a governação económica e social interna, a base de apoio político e o tempo disponível. Primeiro o panorama internacional. O mundo está pior em 2024 do que em 2023. E pode piorar, dependendo da influência das eleições norte-americanas nas guerras. E da influência das guerras na economia, na inflação e nos juros. O que pode Portugal pode fazer é pouco e é muito. Pouco porque o mais importante depende outros. Muito porque podemos ter bom senso e fazer na Europa e no Mundo o que resolva problemas e não os agrave. E manter a coerência e a credibilidade política e financeira que tanto trabalho nos tem dado a criar e a recriar ao longo de anos de democracia.
Marcelo avisa que o contexto internacional é complexo e pode piorar ainda. O Presidente da República está preocupado com as eleições nos EUA, em particular sobre a incerteza que possa significar o regresso de Donald Trump ao poder. A vitória do republicano pode precipitar uma mudança total de rumo da Guerra da Ucrânia que afete por completo a economia e estabilidade do espaço europeu. Além, claro, do Médio Oriente. Daí que todo o cuidado seja pouco. E começa, noutro aviso, a advertir Luís Montenegro para não desbaratar a credibilidade externa do país (que é o novo bom aluno europeu e cada vez mais bem notado pelas malfadadas agências de rating).
Segundo, a governação económica e social interna. Aqui o papel é nacional: onde não temos problemas, não os devemos criar. Como no consenso em mais crescimento, investimento e exportações; no equilíbrio das contas públicas, na atenção à dívida externa pública e privada, no aproveitamento das vantagens da segurança e certeza nacionais perante a insegurança e incerteza internacionais. Onde temos problemas, de custos ou disfunções económicas e sociais, que possam romper estruturas fundamentais do Estado ou aéreas sensíveis do tecido social, não há como não intervir com o cuidado de não atingir o núcleo crucial daquilo que não é problema.
Numa altura em que as várias áreas setoriais fazem reivindicações (algumas bem dispendiosas para os cofres públicos), Marcelo Rebelo de Sousa tem o seu momento ‘não há petróleo no Beato’. A ideia criada dos alegados cofres cheios não deve desvirtuar a trajetória das contas certas e o equilíbrio que o país tem tido com défices equilibrados (até com superávites) e um caminho de redução da dívida pública. Fernando Medina já garantiu, em Bruxelas, que Montenegro e Miranda Sarmento vão defender o rigor orçamental. Marcelo exige-o.
Terceiro: a base de apoio político. Com uma representação parlamentar como a obtida, importa saber com o que conta o Governo e o que deve alcançar. Conta com o apoio solidário e cooperante do Presidente da República, que aliás nunca o regateou ao seu antecessor, mas não conta com o apoio maioritário na Assembleia da República. E tem de o construir com convergências mais prováveis em questões de Regime: política externa, de Defesa, financeira de repercursões internacionais. Ou de compromissos eleitorais semelhantes. Para convergências menos prováveis, noutros domínios, o diálogo tem de ser mais aturado e muito mais exigente. Para decisões como reformas estruturais ou Orçamentos de Estado, essa exigência é ainda de mais largo fôlego.”
É uma das frases-chave do discurso de Marcelo. Em primeiro lugar, o Presidente promete respaldo a Luís Montenegro e que terá em Belém um apoio para que o Governo continue de pé. Sempre preocupado com a leitura que a frase pudesse ter, de favorecimento da sua área política de origem, acrescentou de imediato que deu o mesmo apoio a António Costa nos últimos oito anos. Sobre a forma como Montenegro deve gerir o seu apoio político no Parlamento, Marcelo sugere aquilo que em tempos o hoje líder parlamentar do PSD, Hugo Soares, classificou de governo pisca-pisca: faz acordo com umas áreas à esquerda e, com outras à direita. Para as “questões de regime”, em áreas como a política externa, Defesa e contas públicas, Marcelo empurra o Governo da AD para acordos com o PS. Já para Orçamentos de Estado, caso não consiga o apoio do PS, o Presidente diz que Montenegro pode procurar “convergências menos prováveis” (leia-se, com o Chega), mas que aí deve ser mais exigente e ter mais cuidado. Pede-lhe até um diálogo mais aturado, paciente e resiliente que tenha prudência a dois níveis: no grau de confiança que tem no Chega e para não caucionar as contas públicas para responder a exigências mais dispendiosas daquilo que chama de “setor mais radical do hemisfério”.
Conta para tudo isso de um apoio popular, que lhe deu a vitória, mas para o qual tem de conquistar muito mais portugueses. Ou porque próximos nas ideias ou porque convencidos de que o trabalho que faz merece esse apoio alargado.”
Marcelo adverte Montenegro que não há como ignorar quem votou no Chega (e até no PS). E que só pode conquistar essas pessoas se elas sentirem que as suas vidas estão a melhorar. O aviso é muito claro: Montenegro não pode ignorar os 1,2 milhões de pessoas que votaram no Chega e deve conquistar o apoio de parte dessas pessoas para alargar a sua base de apoio popular. Só assim, avisa Marcelo, vai sobreviver.
Quarto, o tempo disponível. É muito longo em teoria, porque é de quatro anos. Na prática, para o que é muito urgente e para o que foi prometido em campanha, é muito curto. Para a saúde, plano de emergência, sem esquecer a estabilização de todo o modelo de gestão do SNS. Para a habitação, maior abertura ao privado e ao social, atenção à classe média, sem esquecer sempre os que necessitarão sempre de habitação de iniciativa pública; educação, pacificação dos anos letivos, em especial na escola pública, sem esquecer os professores; para a permanente aceleração do PRR e crescente foco do Portugal 2030, para a localização do novo aeroporto, a solução da TAP e a continua aposta na ferrovia, para a mais visível eficácia da Entidade da Transparência no combate à corrupção. Noutro plano, mas muito urgente, mais ainda em tempo de guerra, para a valorização do estatuto militar; em tempo segurança, para o fim da discriminação entre as várias forças; em tempo de novos consensos sobre justiça, para a superação de bloqueios e incompreensões que travem a economia, a sociedade, a justiça e a democracia”.
Marcelo adverte que a legislatura dura quatro anos, mas só no papel. Aliás, para que não seja um governo-relâmpago, Montenegro tem de conseguir cumprir as suas promessas no mais curto prazo de tempo. É mais um aviso à navegação. O Presidente da República diz a Montenegro que tem de começar a tomar medidas já. Mesmo que antes no discurso tenha pedido contenção orçamental, agora pressiona-o a cumprir as promessas que fez. E faz-lhe um caderno de encargos particularmente longo: pede-lhe que resolva os problemas na saúde, na habitação, que pacifique a escola pública, que execute o máximo possível o PRR, que decida a localização do Novo Aeroporto de Lisboa, que resolva a questão da privatização da TAP, que coloque a funcionar a Entidade da Transparência e que valorize as carreiras dos militares e das forças de segurança. O sinal de Marcelo é claro: o governo da AD tem de fazer muito e rápido. Caso contrário, não durará.
Senhor primeiro-ministro, em suma: o mundo não ajuda, a governação económica e social interna pode ajudar, a base de apoio político, tal como o tempo, dependem do alargamento da primeira e do uso do segundo. E de como atuarem aqueles que só ganham com soluções estáveis para o regime e para os portugueses. Será uma missão impossível? Não o creio. Francisco Salgado Zenha gostava de dizer que há sempre soluções em democracia. E será muito difícil? Certamente. Um clássico, Frei Manuel Bernardes escrevia no final do século XVII, uma obra intitulada de “O pão partido em pequeninos”, o que aplicável o a esta situação significa: parte-se o problema em vários mais pequenos e resolve-se um a um, sem perder a vista do todo. Com paciência, sem elevar expectativas ou criar ambições ilusórias. Pode não ser espectacular neste tempo de emoções, paixões, seduções pela sensação imediata, mas poderá ser um caminho com virtualidade.
O Presidente da República não é um otimista irritante, mas acredita que governar nestas circunstâncias não é “missão impossível”. Aconselha, por isso, Montenegro a resolver os problemas um a um, caso a caso. E, mais do que tudo, alargar a base de apoio político que tem. Ou seja: Marcelo diz claramente que, ou Montenegro consegue ir segurando o PS ou Chega ou não tem tempo para governar, porque o governo chegará ao fim. Fica, portanto, também dito de forma velada: ou consegue condições para aprovar o orçamento em outubro ou há nova dissolução da AR e novas eleições.