Era uma “previsão insólita”, mas está a confirmar-se. No final do ano passado, como acontece regularmente, o dinamarquês Saxo Bank anunciava as 10 previsões insólitas para 2019, escritas pelo seu economista-chefe, Steen Jakobsen. O relatório não contém verdadeiras “apostas” sobre os chamados “cenários-base” previstos para os mercados financeiros mas, sim, riscos que, podendo ser improváveis, devem levar os investidores a refletir, à entrada em cada ano novo. Para 2019, uma das previsões era especialmente arrepiante: a Alemanha vai entrar em recessão, possivelmente no terceiro trimestre.
Em cheio: cerca de nove meses depois, foi confirmado oficialmente que a economia alemã teve um crescimento negativo (no segundo trimestre) e dados divulgados nesta segunda-feira sobre o grau de otimismo (ou, neste caso, pessimismo) dos empresários alemães deixa pouca margem para dúvidas: a maior economia da zona euro deverá voltar a ter um crescimento negativo neste terceiro trimestre. E dois trimestres consecutivos de crescimento negativo corresponde, precisamente, à definição mais utilizada para designar aquilo que é uma “recessão técnica“.
“Uma recessão está a aproximar-se” na Alemanha. Confiança dos empresários alemães derrapa
Clemens Fuest, líder do Ifo, o instituto que publica mensalmente este indicador de confiança dos empresários, confirma: “Tudo aquilo que estamos a ver neste momento aponta cada vez mais no sentido de uma recessão na Alemanha, isto é, dois trimestres consecutivos de crescimento negativo”. À CNBC, Fuest lamentou que os mínimos de sete anos no indicador sejam, “de facto, uma notícia muito má”. “E não é apenas na indústria que estamos a ver o deslize a acentuar-se. A fraqueza também está a alastrar-se para o setor dos serviços, que também é muito importante para a economia alemã”, nota.
Há que agir, defendeu o economista. O “travão à dívida” que constrange os responsáveis políticos alemães tem de ser colocado em causa. Angela Merkel e o seu executivo “não devem entrar em pânico”, porque uma recessão técnica não é, necessariamente, uma depressão duradoura. Mas os políticos alemães, argumentou Fuest, devem ponderar seriamente “fazer alguma coisa dramática” para estimular a economia, como reduções de impostos já no próximo ano, estímulos ao investimento e à modernização da indústria e, potencialmente, um pacote de investimento público em áreas como as infraestruturas.
Quando Steen Jakobsen e o Saxo Bank apontavam para o risco de uma recessão na Alemanha, neste ano, o principal receio estava relacionado com as “dificuldades que a indústria alemã está a ter na modernização” dos seus modelos de produção, desde logo na indústria automóvel. Mas o economista já avisava que o efeito mais imediato viria de outro quadrante: “o movimento anti-globalização vai continuar” e a Alemanha, como grande exportador é um dos países que têm “mais a perder” nesse contexto. “Estamos preocupados“, dizia Steen Jakobsen: “Preocupados pela Alemanha e preocupados pela zona euro”.
“Não há razão para entrar em pânico”
O governador do banco central alemão, Jens Weidmann, já veio garantiu que “não há razão para entrar em pânico”. “É verdade que a situação económica afrouxou, especialmente na Alemanha, onde estamos a registar uma desaceleração da atividade”, mas há que lembrar que “a economia alemã vem de uma longa sequência positiva, com uma criação de emprego recorde e elevados níveis de utilização da capacidade [produtiva]”, disse Weidmann. “Seria um erro estar a lançar medidas só por lançar. E seria um erro, também, sucumbir ao pessimismo“, afiançou.
“É certo que as perspetivas são especialmente incertas neste momento, mas isso deve-se, sobretudo, a fatores políticos como o Brexit [a saída do Reino Unido da União Europeia] e as disputas comerciais a nível global“, acrescentou Jens Weidmann em entrevista publicada este fim de semana pelo jornal Frankfurter Allgemeinen Sonntagszeitung. O responsável referia-se, essencialmente, à chamada “guerra comercial” entre os EUA e a China, que amiúde chamusca, também, a Europa.
Esses receios parecem ter sido atenuados nesta segunda-feira, depois de o presidente do EUA, Donald Trump, ter indicado que em breve poderá haver consensos na disputa comercial em que estão envolvidas as duas maiores economias do mundo. Trump chamou a Xi Jinping “um grande líder”, três dias depois de considerar o Presidente chinês um dos “inimigos” dos EUA. Foi uma segunda-feira marcada por algum otimismo, mas o cenário continua a ser de grande imprevisibilidade.
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O principal risco, explica João Ferreira Amaral, professor aposentado do ISEG, é o seguinte: frequentemente, são as crises financeiras que originam recessões — foi o caso da última. Mas o grande risco, desta vez, aponta João Ferreira do Amaral, é que aconteça o contrário: uma recessão económica que acabe por causar uma grave crise financeira, abalando um setor que ainda não se refez da última crise e sofre com as taxas de juro baixíssimas ou negativas que marcaram os últimos anos e que parecem estar para continuar.
Para já, porém, apenas sabemos que “as probabilidades de recessão na Alemanha são elevadas, de facto”, diz João Ferreira do Amaral ao Observador. “Isso não quer dizer que isso, depois, se repercuta nos outros países europeus, gerando uma recessão generalizada em todo o bloco, mas é um risco que pode materializar-se”, acrescenta o académico. E sublinha: “Vamos ter uma desaceleração das exportações, isso é muito provável, mas no caso português isso não significa que iremos ter uma recessão, já que a procura interna pode ajudar a sustentar a economia mesmo que entremos num período de crescimento um pouco mais baixo”.
Já João Borges de Assunção, da Universidade Católica, disse este fim de semana à Lusa que se a recessão alemã for “severa, irá propagar-se quase de certeza à zona euro e a Portugal“. A julgar pelos últimos dados disponíveis, a economia portuguesa está a conseguir manter a taxa de crescimento — 1,8% no segundo trimestre — o que já é mais do que podem dizer vários países da zona euro, sobretudo as economias mais desenvolvidas (o outro lado da moeda é que há pelo menos 11 países europeus, alguns com características semelhantes às de Portugal, que estão a crescer mais).
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Portugal “apanhado em contrapé”?
Os economistas alemães estão a olhar para a desaceleração no país como o fim de uma “década dourada” para o país, uma década em que o PIB cresceu a uma média de 0,5% a cada trimestre. Esse desempenho muito positivo começou com o plano de estímulos lançado em 2008/2009, para proteger a economia alemã da crise financeira, que incluiu intervenções audazes nos bancos, aumento de vários subsídios sociais e, ainda, incentivos à contratação por parte das empresas. “Desta vez, os problemas são mais estruturais — são desafios como a digitalização, a modernização das infraestruturas, a transição energética e o futuro da indústria automóvel”, comenta Carsten Brzeski, economista-chefe do ING, em nota a que o Observador teve acesso.
Brzeski acredita que o governo alemão irá lançar medidas importantes, aproveitando “a ampla margem de manobra orçamental de que dispõe“. Mas, mesmo assim, não é totalmente seguro que a Alemanha consiga, dessa forma, compensar os efeitos negativos da incerteza que se instalou nas economias globais.
Mas se para a Alemanha este poderá ser o fim de uma “década dourada”, nas palavras do economista do ING, para outros países — ainda mal refeitos da última crise — esta (possível) inversão do ciclo económico parece ser especialmente desanimadora. As consequências da chamada “guerra comercial”, onde se incluem o risco de recessão na Alemanha, são um dos possíveis “vendavais” a que referiu o primeiro-ministro português, António Costa, se referiu na entrevista dada ao semanário Expresso, quando insistiu que Portugal tem de “manter esta trajetória” de “consolidação das nossas contas públicas”.
Mesmo sabendo que as recessões são normais e fazem parte da vida económica, o risco é que para países como Portugal a desaceleração esteja a surgir alguns anos cedo demais, quando falamos na trajetória de recuperação que foi iniciada com o programa de ajustamento da troika, que continuou nos últimos anos e que se prevê manter-se nos próximos anos. O país pode ser “apanhado em contrapé”? Talvez não, responde João Ferreira do Amaral. Se se confirmar que a Alemanha (e, possivelmente, outros países europeus) caem em recessão, “é melhor que tenhamos o nível de emprego que temos e o relativo equilíbrio orçamental que existe”, afirma o académico.
Porém, ressalva, “a situação estrutural é sempre muito débil, temos uma estrutura produtiva que não se deu bem com a globalização e, além disso, temos uma dívida pública grande” que será um constrangimento caso seja necessário acudir à economia com medidas de estímulo. Quando António Costa fala em “vendavais”, esta “dramatização” é salutar, defende João Ferreira do Amaral, admitindo que esta é uma mensagem com fundamento genuinamente económico (e não apenas político).
“Chorar nunca levou ninguém a lado nenhum”
Mas quem disse que uma recessão na Alemanha — desde que moderada — tem, necessariamente, de ser uma péssima notícia para Portugal e para a economia portuguesa? Bruno Bobone, presidente da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (CCIP), tem uma outra perspetiva. Ao Observador, o responsável reconhece que “é claro que a Alemanha é um grande importador dos nossos bens, pelo que, por essa via, existirá um efeito que pode ser imediato”.
“Mas também temos de perceber que não podemos estar sempre dependentes dos mesmos mercados”, sublinha Bruno Bobone. Aliás, recorda, quando a crise se abateu sobre a economia europeia foi “graças à adaptação dos empresários portugueses, que foram em busca de novos mercados”, mesmo os que não tinham isso como prioridade. O resultado foi um aumento das quotas de exportação em vários mercados.
“Temos de deixar de estar, como estamos muitas vezes, a encontrar razões para não conseguir atingir os nossos objetivos” — e se a Alemanha, terceiro maior mercado de exportação portuguesa, passar a comprar menos a Portugal, a solução passa por encontrar outras geografias onde vender os produtos. “Esta questão de estar na Europa… estamos a falar de países independentes, com prioridades próprias e interesses próprios”, sublinha.
Menos preocupado está, também, João Duque, professor catedrático e presidente do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG). Pelo facto de Portugal ter a AutoEuropa em Palmela, é expectável que possa existir algum impacto da recessão alemã — “Mas temos de pensar que os carros que são feitos em Palmela não são só para o consumidor alemão, são para vender em todo o mundo”. Por essa razão, embora um arrefecimento nunca seja uma boa notícia, não se pode assumir automaticamente que uma recessão na Alemanha seja uma má notícia para Portugal e, neste caso, para os portugueses que dependem da AutoEuropa.
Aliás, tendo em conta que cresce a pressão sobre o governo alemão para ajudar na modernização do setor industrial, até que ponto é que isso não poderá significar mais investimento na AutoEuropa? E quem diz a AutoEuropa, diz as dezenas ou centenas de empresas portuguesas que produzem peças para a indústria automóvel alemã. João Duque diz que “é impossível saber se as nossas exportações para a Alemanha podem ou não ser abaladas, até certo ponto irá depender da capacidade dos nossos empresários em encontrar as oportunidades que esta recessão pode trazer”.