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Alterações climáticas: A COP27 ergue a tenda em Sharm El Sheikh

De 6 a 18 de novembro, Sharm El Sheikh, no Deserto do Sinai, acolhe o Grande Circo Carbónico, com os “artistas” de sempre a apresentar os números estafados e a fingir fazer tudo para salvar o planeta.

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Durante muito tempo, as marcas humanas em Sharm El Sheikh resumiram-se a cabanas erguidas pelos pescadores artesanais do Mar Vermelho, mas, na década de 1950, a sua posição estratégica, perto do vértice sul da Península do Sinai, junto à entrada do Golfo de Aqaba, levou o Egipto a instalar aí uma base naval. Após a conquista da Península do Sinai por Israel, em 1967, investidores israelitas criaram os primeiros resorts turísticos na região. Estes eram apenas três em 1982, quando Israel devolveu o controlo da península ao Egipto, mas 18 anos depois, graças ao empenho e patrocínio do Governo egípcio, eram já 91, alguns dos quais pertencentes a prestigiadas cadeias hoteleiras como Four Seasons, Hyatt, Le Méridien, Marriott ou Ritz-Carlton.

Praia Dourada, Baía Ras Um Sid, Sharm El Sheikh

Serhio Magpie

A popularidade de Sharm El Sheikh foi abalada por dois atentados perpetrados por fundamentalistas islâmicos: em Julho de 2005, quando três bombas mataram 88 pessoas; e em Outubro de 2015 quando uma bomba fez explodir, sobre o Deserto do Sinai, um voo charter de turistas russos que partira de Sharm El Sheikh com destino a São Petersburgo, matando os seus 224 ocupantes. Todavia, continua a ser um dos principais destinos para turismo e conferências do Médio Oriente.

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[Nota: Este é o primeiro de quatro artigos sobre alterações climáticas e a COP27]

Nadando entre corais e tubarões

Sharm El Sheikh é, por várias razões, uma escolha perfeita como local de acolhimento de mais uma Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas.

A Península do Sinai, cujo nome provém possivelmente (há muitas etimologias em concorrência) de Sin, o deus da Lua em várias religiões da antiga Mesopotâmia, tem paisagens que parecem tão áridas e inóspitas quanto as do satélite da Terra e podem, segundo os augúrios mais pessimistas, prefigurar a paisagem de muitas regiões mediterrânicas lá para o fim deste século.

A cidade de Sharm El Sheikh tem uma precipitação média anual de 7 (sete) mm/ano, uma média de 2.2 (dois ponto dois) dias de chuva por ano e 3800 horas de sol por ano (por comparação, Faro tem “apenas” 3428 horas). A temperatura média do ar é de 23.1º C e mesmo Janeiro, o mês mais frio do ano, tem uma média de 15.6º C; por outro lado, a temperatura da água do mar regista uma média anual de 25.4º C, oscilando as médias mensais entre 22.4º C em Fevereiro e 28.8º C em Agosto. Porém, a secura do clima não implica que o visitante seja confrontado com problemas de escassez de água: quando o dinheiro abunda, nunca falta água para sustentar relvados, palmeiras, piscinas, fontes e cascatas, mesmo que em volta só se lobriguem vastidões desoladas de areia e cascalho. O mesmo pode dizer-se do potencial inconveniente das temperaturas escaldantes: a vida do residente ou visitante de Sharm El Sheikh decorre integralmente em ambiente climatizado ou à beira da piscina ou do mar.

Sharm El Sheikh proporciona os confortos cosmopolitas a que as elites mundiais estão habituadas, mas também corresponde ao ideal climático da classe média ocidental – e, em particular, da portuguesa – que fica abespinhada de cada vez que a chuva ou a viração perturbam o prazer de jantar al fresco e para quem água do mar abaixo de 21º C é ressentida como a violação de um pacto sagrado, e que, não obstante, declara publicamente (e, possivelmente, crê no seu íntimo) estar preocupadíssima com as alterações climáticas (ver E se pudéssemos ter 364 dias de Verão?).

O Coral Sea Resort, um dos empreendimentos turísticos de Sharm El Sheikh

Wikimedia Commons

O facto de a COP27 decorrer num recanto remoto do Deserto do Sinai representa uma grande vantagem em relação à COP26, que teve lugar em Glasgow: os activistas ambientais não têm dinheiro para pagar a viagem e a estadia no luxo de Sharm El Sheikh, pelo que não poderão importunar as pseudo-conversações e os discursos ocos dos líderes mundiais com as suas marchas, farsas, momices e outras tácticas de agit-prop (pela mesma razão o Fórum Económico Mundial escolheu Davos para o seu encontro anual em Janeiro: a arraia-miúda não tem dinheiro para se instalar no luxuoso resort suíço e em Janeiro faz demasiado frio nos Alpes para se dormir ao relento). Para mais, após o atentado terrorista de 2005, as autoridades egípcias ergueram em torno de Sharm El Sheikh uma imponente barreira em betão, que só é acessível em quatro postos de controlo, dotados de câmaras de filmar e scanners. O único risco de um mau encontro que os distintos conferencistas enfrentarão em Sharm El Sheikh poderá surgir nos momentos de descontracção nas águas tépidas do mar – em 2010 registaram-se vários ataques de tubarões, que causaram um morto e quatro feridos graves.

Os recifes de coral de Sharm El Sheikh

Ainda assim, dificilmente um visitante de Sharm El Sheikh resistirá a um mergulho no Mar Vermelho, pois os recifes de coral costeiros albergam uma extraordinária riqueza de espécies, incluindo tartarugas, raias e peixes de cores variegadas, cujas fotos ficam sempre bem no Facebook e no Instagram (de que serve viajar para paragens exóticas se não pudermos fazer inveja a quem ficou em casa?) e que justificam a existência de uma miríade de clubes de mergulho em Sharm El Sheikh.

Acontece que os recifes de coral que sustentam esta exuberante fauna marinha estão entre as primeiras vítimas do aquecimento global, uma vez que este é o principal responsável pelo fenómeno do “branqueamento do coral”, que tem vindo a converter extensas áreas de recifes em ruínas desoladas (ver capítulo “Os homens brincam aos deuses” em Serão estas as perguntas certas sobre o futuro do planeta?). Embora entre as 209 espécies de corais do Mar Vermelho existam algumas que parecem ser mais resistentes do que a média às ondas de calor, os recifes de Sharm El Sheikh já apresentam manchas descoloradas.

Ironicamente, uma das causas primordiais do mal que começa a roer os corais de Sharm El Sheikh são os padrões de consumo das classes possidentes que lá faz em férias, o que inclui as viagens de avião até à estância. Aliás, para lá do avião, não há outra forma expedita de viajar até Sharm El Sheikh, a não ser que, como aconteceu já com Greta Thunberg, tenhamos um amigo que coloque à nossa disposição o seu iate à vela de 4.6 milhões de euros.

Como as “conquistas” da COP26 se volatilizaram

Se, apesar de toda a dramatização e efervescência mediática, da atmosfera “última-oportunidade-para-salvar-o-planeta” e das proclamações optimistas de alguns tontos, a COP26 se limitou, como as COPs anteriores, a produzir declarações de intenções altissonantes e resoluções e acordos vagos, tíbios e insuficientes (ver As alterações climáticas e a conferência das Nações Unidas: O Grande Circo Carbónico), as perspectivas para a COP27 parecem ser ainda mais desanimadoras.

Mal a COP26 terminara e já o aumento da procura por energia, em resultado da retoma económica pós-pandemia, começava a abrir rachas nos compromissos de descarbonização saídos da conferência. Boa parte da política de descarbonização do Ocidente apostou no gás natural como “combustível de transição”, um estratagema habilmente vendido aos decisores políticos pela indústria de combustíveis fósseis, sob o pretexto (factual) de a energia eléctrica gerada pela queima de gás libertar (por unidade de energia) metade do CO2 gerado pela queima de carvão (e também gerar menor quantidade de outros poluentes). Porém, esta aposta acaba por ser uma forma de 1) protelar a (dolorosa) transição para fontes de energia renováveis; 2) permitir aos cidadãos e empresas manter os padrões de consumo energético usuais; 3) permitir à indústria de combustíveis fósseis continuar a escoar os seus produtos; e 4) dar a ideia de que se está a dar um passo relevante em prol da sustentabilidade.

Reservas confirmadas (em 2014) de gás natural no mundo. Os tons mais escuros indicam maiores reservas; a cinzento, países sem gás natural ou que, como Portugal, não querem saber se têm gás natural

Abraçando este enviesado conceito de descarbonização, alguns países desactivaram as centrais térmicas alimentadas a carvão e derivados de petróleo (foi o caso de Portugal), ou desactivaram ou colocaram em hibernação as suas centrais nucleares (foi o caso da Alemanha e Japão), apesar de a sua produção de energia renovável estar ainda muito longe de poder cobrir as necessidades actuais e previsíveis. Ao mesmo tempo, avançava-se a ritmo vivo com a construção do gasoduto Nord Stream 2, para trazer (ainda) mais gás natural russo para a Europa. Uma vez que o consórcio Nord Stream AG tinha (e tem) como presidente do conselho de administração Gerhard Schröder, um amigo próximo de Vladimir Putin, que, enquanto foi chanceler da Alemanha pugnou pela desactivação de centrais nucleares e centrais térmicas a carvão (ver capítulo “Gazprom” em Do Senhor Cinco por Cento ao Nord Stream), mesmo quem não tenha propensão para mundividências conspirativas poderá perguntar-se se a promoção do gás natural como “combustível de transição” não terá contado com um “empurrão” de Putin, com o propósito de aumentar a dependência energética – e, logo, a docilidade política – da Europa em relação à Rússia.

Curto-circuito geopolítico: O traçado do Nord Stream é conveniente para alemães e russos, pois permite abastecer a Alemanha com gás russo, sem passar por países com razões para desconfiar da Rússia

Os últimos meses desta história são conhecidos de todos: a invasão da Ucrânia pela Rússia e a subsequente escalada de sanções, contra-sanções, ameaças e atritos envolvendo a Rússia e o mundo ocidental, deixaram os mercados energéticos em polvorosa e quando o endeusado “combustível de transição”, que no final de 2021 custava 68 euros/MWh (no mercado holandês TTF, que serve de referência na Europa), atingiu, a 27 de Agosto de 2022, os 337 euros/MWh, e os consumidores domésticos e industriais se viram confrontados com contas de energia astronómicas (que inviabilizam, inclusive, sectores industriais de alta intensidade energética, como a produção de aço, alumínio, vidro e cerâmica), a “descarbonização” da economia e da sociedade tornou-se numa prioridade secundária face à premência de obter energia, de qualquer tipo, seja ela poluidora ou não.

Há um ano, havia líderes europeus a falar da “transição energética” e do European Green Deal como se fossem provas já superadas e a apresentar a União Europeia como paradigma do desenvolvimento sustentável; hoje estão em vigor regulamentos que limitam a iluminação de lojas e monumentos e as temperaturas do ar condicionado e águas sanitárias em edifícios públicos, há autarquias a anunciar que este ano não haverá iluminação de Natal nas ruas (seria bom que também nos poupassem à música de Natal) e pondera-se, inclusive, a suspensão da laboração da indústria e cortes regulares no abastecimento de electricidade, enquanto os media especulam sobre quantas pessoas poderão morrer de frio durante o próximo Inverno por não terem meios para pagar o aquecimento.

Paris à noite, vista da Estação Espacial Internacional, fazendo jus ao epíteto de “Cidade-Luz”. Seria desejável que a crise energética servisse, ao menos, para repensar a sobre-iluminação das cidades

Dos sopés dos Himalaias às planícies alentejanas

Nos últimos anos, tornou-se evidente, mesmo para os portugueses mais distraídos, que os padrões de imigração sofreram uma apreciável alteração. Por exemplo, os nepaleses, cuja presença no país era nula até ao final do século XX e que não chegava ao milhar de indivíduos no final da primeira década do século XXI, atingiu em 2021 os 21.500 indivíduos. Também os imigrante indianos, que pouco ultrapassavam um milhar no final da primeira década do século XXI, eram já 30.000 em 2021. Estes dados referem-se a quem possui estatuto legal de residente, mas recorrendo a outras fontes de informação, há quem estime que só nos últimos três ou quatro anos terão entrado em Portugal cerca de 50.000 imigrantes nepaleses, a maior parte dos quais não estão legalizados. Este afluxo recente de imigrantes naturais da Índia e Nepal (bem como do Bangladesh, Paquistão e Tailândia) tem, maioritariamente, como pólo de atracção a agricultura de regadio no Alentejo (e, em menor escala, no Algarve), onde, como se tornou patente, trabalham por salários ínfimos e vivem em condições sub-humanas. Tudo isto tem sido amplamente noticiado, mas sem que se faça a pergunta: o que fez os habitantes dos sopés dos Himalaias atravessar meio mundo para procurar trabalho na agricultura portuguesa?

Acontece que nos sopés dos Himalaias, de onde provêm muitos destes trabalhadores, a agricultura deixou de ser viável, devido à alteração dos padrões das monções nos últimos anos. A época de chuvas tornou-se mais curta e a distribuição da chuva no tempo e no espaço tornou-se mais irregular: umas vezes as culturas perdem-se devido à falta de água, outras devido ao excesso de água.

Arrozais em terraços, Nepal

Kabir Uddin

Em África, e sobretudo na África sub-sahariana, as alterações climáticas têm contribuído para que as secas se tenham tornado mais frequentes. Após dois anos extremamente secos, a Oxfam estima que na África Oriental – Etiópia, Somália, Sudão do Sul, Quénia – 30 milhões se encontrem actualmente à beira da fome.

A amarga ironia é que as principais vítimas das alterações climáticas são os países menos desenvolvidos e que menos contribuem para elas, assimetria tem levado estes últimos a pretender que os países mais desenvolvidos e com maiores emissões de gases de efeito de estufa os indemnizem pelos prejuízos que estão a sofrer – esta pretensão ganhou forma durante a COP26 com a constituição do Diálogo de Glasgow entre as Partes, ou Diálogo de Glasgow sobre Perdas e Danos, uma plataforma que propôs criar um mecanismo financeiro cuja receita seria utilizada para ressarcir os países menos desenvolvidos e mais vulneráveis dos prejuízos resultantes das alterações climáticas. Na COP26, enfrentou a oposição dos países desenvolvidos, mas os países menos desenvolvidos e os grupos ambientalistas estão a exercer pressão para que seja reapresentada na COP27. Este “mecanismo financeiro climático” está ainda numa fase muito incipiente de discussão: não se sabe se o financiamento assumirá a forma de uma taxa sobre produtores e utilizadores de combustíveis fósseis ou de um sistema de donativos/contribuições dos países desenvolvidos, sobre que actividades a taxa irá incidir, como se fará o rateamento da receita entre os países beneficiários, ou se o financiamento será gerido pelas máquinas estatais ou se será entregue directamente às populações afectadas.

Deve sublinhar-se que a assimetria nas emissões de carbono que existe em 2022 entre os países desenvolvidos e os países mais pobres e vulneráveis se torna ainda mais gritante – e injusta – quando se considera o registo acumulado de emissões, pois a maioria dos países desenvolvidos já o eram no final do século XIX e já então eram os principais emissores de carbono. Resta saber se o “mecanismo financeiro climático” incidirá apenas sobre as “malfeitorias” presentes (e futuras) ou se dirá respeito a todo o cadastro de emissões do país.

Emissões acumuladas de CO2, 1850-2021. Fracção correspondente a combustíveis fósseis e indústria cimenteira a cinzento, uso do solo (agricultura, silvicultura, etc.) a verde

Porém, é muito provável que os países contribuintes voltarão a opor-se à criação de qualquer “mecanismo financeiro climático”, até porque os seus cidadãos estarão pouco disponíveis para pagar os prejuízos que gente de paragens remotas sofre em resultado de desastres naturais cuja conexão causal com o estilo de vida dos países desenvolvidos é extremamente nebulosa e discutível.

A verdade é que, para a esmagadora maioria dos que vivem no conforto climatizado e acolchoado da Europa Ocidental, as principais preocupações com as alterações climáticas se prendem, para já, com efeitos locais e directos: o desconforto que lhes causam as ondas de calor, a eventual falta de água nas suas torneiras durante o Verão. Porém, é possível que as alterações climáticas acabem por bater à porta dos cidadãos dos países desenvolvidos por outras vias e formas. A crescente inviabilidade da agricultura no sopé dos Himalaias pode ter como consequência que, numa outrora modorrenta aldeia alentejana, o afluxo de migrantes nepaleses e indianos faça com que os locais se tornem numa minoria e sintam a sua identidade ameaçada. Os cidadãos do Ocidente abastado podem não querer compensar os países pobres com dinheiro – mas acabarão, por portas travessas, por pagar com o sentimento de insegurança e a sensação de estarem a tornar-se estranhos na sua própria terra. E haverá sempre partidos políticos dispostos a explorar estes desconfortos e temores e é previsível que surjam cada vez mais oportunidades para exaltar os ânimos contra os “invasores”, uma vez que, à medida que as alterações climáticas tornarem mais árdua a vida em vastas regiões da Ásia e África, longas colunas de “migrantes climáticos” irão tomar o caminho da Europa.

Portugal, um país afortunado

Entre os países europeus, Portugal tem gozado de uma situação privilegiada face às alterações climáticas. Até agora, os “migrantes climáticos” têm entrado na Europa sobretudo através da Grécia, Itália e Espanha e, embora se desloquem dentro do continente europeu, tendem a fixar-se em países setentrionais, onde as remunerações são mais altas e o Estado social mais generoso.

Outro aspecto favorável é o facto de o clima português ser invulgarmente ameno, pelo que qualquer arquitecto competente e sensível às questões ambientais deveria ser capaz de conceber edifícios capazes de proporcionar conforto térmico através de métodos passivos, sem recurso a tecnologias de climatização consumidoras de energia, salvo (eventualmente) durante alguns dias por ano. Já no Centro e Norte da Europa é inevitável que as facturas energéticas de residências, empresas e edifícios públicos sejam sobrecarregadas com os custos do aquecimento durante os meses frios – nestes climas mais agrestes, a climatização activa não é uma questão de conforto mas de sobrevivência.

No que toca às energias renováveis, o potencial do país é elevado. Veja-se o caso da hidro-electricidade: metade do caudal dos rios que desaguam na costa portuguesa provém de chuva caída em território espanhol (ver capítulo “As contas da água” em Temperaturas recorde, fenómenos extremos, seca global: Seremos capazes de mudar o nosso comportamento?). Há países na Europa que recebem um bónus hídrico ainda maior: é o caso da Holanda, em que 88% do caudal dos seus rios provém de outros países; porém, enquanto a Holanda é um país essencialmente plano, sem locais viáveis onde erguer barragens, os troços portugueses da maioria dos rios que nascem em Espanha desenvolvem-se em regiões de topografia acidentada, propícia à construção de aproveitamentos hidro-eléctricos – o que explica que estas tenham sido em 2021 a principal fonte renovável de electricidade em Portugal, com 27% da produção total, seguida de perto pela energia eólica, com 26%, e a grande distância pela energia da biomassa (7%) e pela energia fotovoltaica (3.5%).

Barragem de Picote, no Rio Douro

No que toca à energia eólica, Portugal também está bem posicionado: sendo um país essencialmente litoral (embora se queixe amargamente de problemas de “interioridade”), a maior parte do território está exposta aos ventos marítimos; e o país tem apostado no aproveitamento desta energia, ocupando actualmente o 9.º lugar no ranking da União Europeia, com uma potência instalada de 5612 MW (dados de 2021). Já os países “interiores” dificilmente conseguirão alcançar uma geração eólica significativa – é o caso da República Checa ou da Hungria, o que explica que a sua capacidade eólica instalada seja de apenas 337 e 329 MW, respectivamente. E, até agora, Portugal limitou-se a instalar turbinas em terra – está por explorar todo o vasto potencial eólico da nossa (proporcionalmente) extensa área marítima, onde os ventos são mais fortes e regulares do que em terra.

Parque eólico, Lousã

Mas alguma desta fortuna pode ser ilusória: em anos de seca a produção hidro-eléctrica fica comprometida (nos primeiros nove meses de 2022, a EDP reportou uma quebra de produção de 53% nas suas barragens ibéricas) e como as perspectivas dos climatologistas apontam para uma redução da precipitação na Península Ibérica (como noutras regiões de clima mediterrânico), é previsível que o volume armazenado nas barragens ibéricas tenda a definhar e que Espanha, incapaz de prover às necessidades de água internas, se sinta tentada a fazer transvases entre bacias hidrográficas para acudir às faltas mais prementes e a deixar de cumprir a Convenção de Albufeira, que regulamenta a entrega de caudais por Espanha nos rios transfronteiriços – já se registam situações de incumprimento e é previsível que aumentem de frequência e gravidade, à medida que as alterações climáticas se tornarem mais evidentes. Em Setembro de 2022, os agricultores espanhóis, que vêem a sua actividade comprometida pela falta de água, organizaram manifestações exigindo ao Governo espanhol que as barragens espanholas não libertem nem mais um metro cúbico água para Portugal e que a Convenção de Albufeira seja revista de forma a ajustar-se a um clima mais árido. Porém, a retórica dos agricultores espanhóis é capciosa: o clima na Península Ibérica não mudou assim tanto desde a assinatura da convenção, em 1998 – o que aumentou extraordinariamente desde então foi a área irrigada em Espanha e, em particular, nas bacias dos rios que drenam para Portugal. Seja como for, a conjugação de conflitos crescentes entre os vários usos do caudal dos rios – energia, irrigação, abastecimento público, navegabilidade e manutenção de ecossistemas – e a tendência de decréscimo da precipitação na região mediterrânica, irá, inevitavelmente, criar fortes constrangimentos à produção hidro-eléctrica portuguesa.

Olival intensivo, Extremadura, Espanha

O facto de, em anos com condições atmosféricas favoráveis, Portugal ter conseguido assegurar, durante algumas horas, toda a sua produção eléctrica só com fontes renováveis, e a bazófia do Governo sobre o pioneirismo luso neste sector, não conseguem disfarçar que a dependência energética de Portugal face ao exterior tenha sido em 2019 de 74.2%, enquanto a média da União Europeia é de 57.8%. Em 2020, a dependência energética portuguesa caiu para 65.3%, o que foi motivo de regozijo para os que se esqueceram (ou quiseram esquecer) de que uma parte substancial de 2020 foi passada com a população em confinamento, as ruas e estradas sem tráfego e as fábricas e estabelecimentos turísticos encerrados. É de sublinhar que, embora esta dependência do exterior seja quase total no que se refere ao gás natural (99.3%) e ao petróleo (97.6%), a maioria dos portugueses não quer sequer ouvir falar da prospecção destas matérias-primas (ou quaisquer outras) em território nacional, quanto mais da sua extracção (ver capítulo “Não no meu quintal”, em Como a pequena Greta salvou o planeta).

Quanto à amenidade do clima, embora seja absolutamente factual, não parece reflectir-se no conforto térmico dos edifícios, já que 88% dos portugueses se diz desconfortável com a temperatura em casa e há quem sugira que o frio mata centenas de portugueses por ano. O paradoxo de o país com um dos mais benignos climas da Europa ser também um dos países cujas casas são mais desconfortáveis termicamente é por vezes explicado com os baixos rendimentos dos portugueses; outra justificação possível é os portugueses serem um povo particularmente piegas; outra ainda é as nossas casas serem terrivelmente mal concebidas e construídas, mas assumir isto conduzir-nos-ia a outro paradoxo, pois Portugal costuma orgulhar-se de possuir os melhores arquitectos e engenheiros civis do mundo.

Os estudiosos destes assuntos cunharam a hedionda expressão “pobreza energética” (prontamente abraçada pelos políticos e pelos media) para descrever esta situação, mas uma inspecção superficial a uma amostra de habitações da classe média alta e alta basta para apurar que o desconforto térmico nas casas portuguesas resulta tanto da falta de dinheiro como da falta de discernimento e de um enviesado sentido de prioridades.

“Pobreza energética” na Europa em 2019: Percentagem da população incapaz de manter a habitação adequadamente aquecida

Pesadelo em ar condicionado

O Estado português tentou melhorar o lamentável desempenho térmico do parque habitacional com a instituição da certificação energética dos edifícios – porém, o que seria uma medida bem intencionada, acabou minada por erros crassos, como seja o de bonificar os edifícios equipados com ar condicionado. Quem concebeu e aprovou estes regulamentos parece ignorar que o ar condicionado representa 10% do consumo global de electricidade (20% segundo outras estimativas) e 4% das emissões globais de CO2, libertando anualmente para a atmosfera o equivalente a 1950 milhões de toneladas de CO2. Com legislação pró-climática deste jaez, o clima da Terra nem precisa de outros inimigos…

Do total de emissões de gases com efeito de estufa associados ao ar condicionado, 531 milhões de toneladas correspondem a electricidade gasta em arrefecimento, 599 milhões de toneladas a electricidade gasta em desumidificação e os restantes 820 milhões de toneladas decorrem do fabrico e transporte dos equipamentos de ar condicionado e das fugas de fluidos refrigerantes resultantes da operação e descarte dos ditos aparelhos. Acontece que a maior parte dos fluidos refrigerantes consiste, hoje, em hidroclorofluorocarbonos (HCFCs) e hidrofluorocarbonos (HFCs), que, embora sejam menos lesivos para a camada de ozono do que os clorofluorocarbonos (CFCs) banidos pelo Protocolo de Montreal, produzem um efeito de estufa muito mais poderoso (até 2000 vezes) que o do CO2, pelo que existe pressão – e alguns acordos vagos – para que também os HCFCs e HCFs sejam substituídos por compostos com menor repercussão no efeito de estufa.

No clima subtropical húmido de Hong Kong, a vida sem ar condicionado pode ser penosa, sobretudo no Verão, mas o preço por arrefecer os interiores pode ser a criação de “ilhas de calor” no exterior

Independentemente de o ar condicionado ser ou não promovido por políticas oficiais desassisadas, o aquecimento global fará com que cada vez mais residências, empresas e edifícios públicos a ele recorram – ainda no Verão passado, a vaga de calor que assolou a Grã-Bretanha desencadeou no país uma procura sem precedentes por aparelhos de ar condicionado. Um estudo pela Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla inglesa) realizado em 2018, quando existiam no mundo 1600 milhões de aparelhos de ar condicionado e se vendiam anualmente 100 milhões de aparelhos, estimava que o consumo de electricidade associado ao ar condicionado irá triplicar até 2050 – o ano em que alguns optimistas incuráveis crêem que se atingirá a “neutralidade carbónica”. A relação do ar condicionado com o aquecimento global afigura-se como um circuito de retroacção positiva (positive feedback loop) do qual é difícil escapar: quanto mais quente o clima, maior a necessidade de ar condicionado, o que produz mais emissões de gases de efeito de estufa, o que intensifica o aquecimento global.

O incremento na percentagem de residências equipadas com ar condicionado será pouco relevante nos EUA, pela simples razão de ele já ser omnipresente, mas será muito significativo entre a classes de rendimentos altos e médios da maior parte do mundo. O estudo “Air conditioning and global inequality” (2021), realizado por Lucas Davis et al. e abrangendo 16 países muito diversos em termos de clima e nível de rendimentos, intitulado, mostra que existe uma fortíssima correlação entre o recurso ao ar condicionado e o rendimento do agregado familiar, independentemente do clima – ou seja, quem tem ar condicionado não é quem precisa, é quem pode.

Correlação entre percentagem de residências com ar condicionado (eixo vertical) e rendimento anual do agregado familiar (eixo horizontal), segundo Lucas Davis et al.

Maré alta em Jakarta

A Indonésia prepara-se para mudar a sua capital de Jakarta, na ilha de Samatra, para Nusantara, uma cidade-modelo que está a ser construída de raiz na ilha de Bornéu (província de Kalimantan Oriental) e que se prevê que seja inaugurada em Agosto de 2024. O nome Jakarta provém do sânscrito “jayakarta” = “vitorioso”, que foi atribuído à cidade em 1527 pelas forças do Sultanato de Demak, após terem derrotado e escorraçado os portugueses – antes a cidade chamava-se Sunda Kelapa e chamar-se-ia depois Batávia entre 1619 e 1942, sob domínio holandês, antes de regressar ao nome dado em 1527. No período colonial, a cidade cresceu rapidamente, decuplicando a população entre 1870 e 1945, ano em que a Indonésia proclamou a independência, e hoje é uma megalópole de 10 milhões de habitantes.

Boa parte de Jakarta foi implantada sobre regiões pantanosas costeiras e terrenos conquistados ao mar, que começaram a afundar – ao ritmo de 5 a 25 cm/ano, consoante a zona da cidade – sob o efeito combinado do peso dos edifícios e da extracção desregrada de água do subsolo. Somando este fenómeno – que faz de Jakarta a cidade do mundo com mais rápido ritmo de afundamento – ao facto de a altitude média da cidade ser de apenas oito metros, de parte substancial da cidade estar abaixo do nível do mar e de este se encontrar em ascensão devido ao aquecimento global, o Governo indonésio, após investir rios de dinheiro em medidas de engenharia destinadas a suster o avanço do mar, acabou por assumir que a derrota da “cidade vitoriosa” pelas águas era inevitável e decidiu erguer uma nova capital em Nusantara, cujo investimento inicial irá rondar os 33.000 milhões de dólares.

High Tide Submerges Parts Of Jakarta's Sinking Coastline

A maré alta nas ruas de Jakarta tem menos charme do que a acqua alta em Veneza

Getty Images

Nusantara foi apresentada como uma smart city ecológica, o que sugere que, na prática, será uma cidade elitista e dissipadora de energia e recursos. As injustiças já começaram a afectar as populações residentes no local de implantação de Nusantara, cujas terras, da qual dependem para a subsistência, estão a ser expropriadas pelo irrisório preço de 2 dólares/m2, quando os preços especulativos desses terrenos rondam já os 1300 dólares/m2, ainda antes de a construção ter começado a sério.

O presidente indonésio Joko Wiwodo (à esquerda) e o governador da província de Kalimantan Oriental visitam o local da nova capital, 17 de Dezembro de 2019

O que é irónico na submersão de Jakarta é que a Indonésia é um dos principais responsáveis pelo aquecimento global, uma vez que é o 2.º maior exportador de carvão (21.6% do total mundial, 26.500 milhões de dólares em 2021) e também ocupa o 2.º lugar no pouco invejável ranking da desflorestação, tendo feito desaparecer 264.000 Km2 de florestas (maioritariamente tropicais) entre 1990 e 2020, o que representa uma perda de 22% da sua área florestal. Segundo outras fontes, a perda de floresta terá sido de 286.000 Km2 só entre 2001 e 2021, o que seria equivalente à emissão de 19.7 gigatoneladas de CO2. Para evidenciar o completo desnorte das políticas “ambientais” em curso pelo mundo, deve notar-se que parte da desflorestação na Indonésia se destina à plantação industrial de palmeiras produtoras de óleo, que é incorporado nos combustíveis usados na União Europeia, no que passa (em cabeças transtornadas) por ser uma medida em prol da sustentabilidade e do combate às alterações climáticas (ver capítulo “A parte de baixo do mundo” em As alterações climáticas e a conferência das Nações Unidas: O Grande Circo Carbónico).

Verde-vivo por fora, negro-carvão por dentro

Tal como a queima de formidáveis quantidades de carvão pela China (86 exajoules em 2021, representando 54% do consumo mundial) e Índia (20 exajoules, representando 12.5% do consumo mundial) faz subir as águas nas ruas de Jakarta, também faz ascender Gautam Adani no ranking de bilionários. Em meados de Setembro, Adani tornou-se notícia ao ultrapassar Jeff Bezos (o Sr. Amazon) e tornar-se no segundo homem mais rico do mundo (ou o primeiro, dado que está por provar que Elon Musk seja humano). O património líquido estimado de Adani aumentou de 84.000 milhões em 10 de Março de 2021 para 150.000 milhões de dólares a 20 de Setembro (embora, desde então tenha caído para 120.000 milhões de dólares, o que o remeteu para o 4.º lugar do ranking de bilionários). Boa parte da dilatação da fortuna de Adani resulta da avassaladora subida dos preços da energia, já que o império erguido por este bilionário indiano assenta no carvão (e, secundariamente, na operação portuária). Adani é dono de uma das maiores minas de carvão do mundo – a Charmichael, na Austrália –, de um dos maiores terminais de carvão – Abbot Point, também na Austrália – e da Adani Power, que opera várias centrais térmicas da Índia, boa parte delas alimentadas a carvão e cuja potência combinada de 4620 MW faz da empresa a maior produtora privada de electricidade do país.

O terminal carbonífero de Abbot Point, Bowen, Austrália

Ao longo dos anos, o usualmente discreto Adani foi emitindo opiniões condizentes com o seu papel de mogul do carvão – em 2019, por exemplo, asseverou que o desenvolvimento da economia indiana teria sido impossível sem recurso maciço ao carvão – mas, mais recentemente, o bilionário tem vindo a acompanhar a diversificação das suas actividades (nomeadamente aos aeroportos, telecomunicações e centros de dados) com uma exuberante campanha mediática para se afirmar como “cavaleiro verde”, proclamando que “para a Índia, a combinação da energia solar e eólica, combinada com o hidrogénio verde abre possibilidades nunca vistas” e anunciando investimentos de 70.000 milhões de dólares em infra-estruturas energéticas “verdes” até 2030, de forma a tornar-se no maior produtor mundial de energia “limpa”.

Poderia depreender-se daqui que Adani teria tido a sua revelação-na-Estrada-de-Damasco e teria decidido consagrar o resto da vida a reparar as malfeitorias ambientais que antes promovera, mas a verdade é que, em 2022, 1) o carvão continua a representar 62% das receitas do Adani Group, 2) o carvão comercializado pelo grupo representa 3% das emissões globais de CO2, e 3) o Adani Group continua a expandir a sua actividade no sector do carvão na Austrália e Índia, tendo, nomeadamente, anunciado o objectivo de incrementar em 50% a produção da mega-mina de Carmichael. Afinal de contas, desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, o carvão tem sido transaccionado a valores rondando os 400 dólares por tonelada, quando nos anos precedentes oscilara entre os 50 e os 130 dólares por tonelada. Há que aproveitar a oportunidade, pois ninguém sabe durante quanto tempo mais o preço do carvão se manterá em valores extravagantes, e o sol e o vento irão sempre andar por aí, pelo que a transição energética pode esperar…

Preço do carvão, em dólares por tonelada, 2009-2022

Adani é, pois, o paradigma do empresário astuto e calculista, que usa as questões ambientais em função das suas conveniências e não tem rebuço em desdizer-se, mudar de discurso e arvorar-se em paladino da luta contra as alterações climáticas se aí vir oportunidade para pingues lucros, até porque confia (justificadamente) na fraca memória da opinião pública.

Pesadelo em ar condicionado (parte 2)

O título do capítulo “Pesadelo em ar condicionado” foi pedido emprestado a The air-conditioned nightmare, um livro que Henry Miller publicou em 1945 e que relata as impressões de um périplo que o escritor fez pelos EUA entre 1939 e 1942, após alguns anos de estadia na Europa. Miller é conhecido sobretudo pelos seus romances parcialmente-auto-biográficos, com linguagem crua e descrições explícitas de cenas de sexo, mas O pesadelo em ar condicionado tem natureza diversa: é um olhar sociológico sobre o país que Miller encontrou e as diferenças para o país que conhecera alguns anos antes. O resultado não é nada lisonjeiro, como se depreende da sinopse da Antígona, que reeditou em 2021 a tradução de Fernanda Pinto Rodrigues para a Livros do Brasil: “sobre as ruínas do sonho americano, erguem-se indústrias hipócritas e cidades aberrantes, mecas de negócios, ganâncias e bugigangas, mortos-vivos enterrados em crédito e preconceitos, gente de cifrões nos olhos”.

Capa da 1.ª edição (1945) de The air-conditioned nightmare

Escreve Miller que os EUA do início da década de 1940 são “um mundo feito para os monomaníacos obcecados com a ideia de progresso – mas um falso progresso, que fede. É um mundo atravancado com objectos inúteis que os homens e as mulheres, a fim de serem explorados e degradados, são ensinados a olhar como úteis […] Tudo o que não se preste a ser vendido, seja no mundo das coisas, das ideias, dos princípios, dos sonhos ou das esperanças, não tem nele lugar”. Considera Miller que “chamar a isto uma sociedade de pessoas livres é uma blasfémia. O que temos para oferecer ao mundo para lá do copioso saque que irreflectidamente arrancamos à Terra, arrebatados pela ilusão maníaca de que essa insana actividade representa progresso e esclarecimento? A Terra da Oportunidade tornou-se na terra da labuta insensata e a finalidade de todos os nossos esforços há muito foi esquecida”.

É uma análise que não só não perdeu actualidade nos 80 anos entretanto decorridos, como se ajusta ainda com maior propriedade aos EUA de 2022. Já a afirmação de Miller de que “em nenhum outro lugar do mundo o divórcio entre homem e natureza é tão completo” não resistiu, infelizmente, à passagem do tempo: o “American way of life”, a sobranceria do homem que se julga acima da natureza, o frenesim dissipador de recursos e a subjugação da vida a uma agitação histérica e sem propósito, alastrou por todo o lado. Os EUA, tão eficazes a vender ficções e narrativas, impingiram, sob o rótulo de “Sonho Americano”, um pesadelo ao mundo e mesmo quem está de fora aspira a fazer parte dele.

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