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Aí está o tempo por que o urbanita português sempre anelou: uma sucessão ininterrupta de dias de céu azul, que permite desfrutar em pleno de esplanadas e “rooftops”. Acabaram-se as manhãs de bruma e chuvisco e as tardes de ventania rija que obrigavam as tiritantes famílias de veraneantes a retirar da praia, arrastando armas e bagagem num cortejo acabrunhado, evocativo da Grande Armée acossada pelo Inverno russo. Quando o sol mergulha no horizonte, o ar mantém-se imperturbavelmente morno e plácido, não perturbando o desenrolar das “sunset parties” e, à medida que a noite avança e se transforma em madrugada, o único “chill” será o da música chill-out, não o da brisa húmida acariciando a nuca e o pescoço. Não mais haverá “escapadinhas” de fim-de-semana arruinadas por aguaceiros persistentes e a luz invariavelmente límpida e crua que cai do céu será ideal para tirar as “selfies” que comprovarão no “Face” e no “Insta” que estivemos mesmo nos Passadiços do Paiva e nas Aldeias de Xisto (ver E se pudéssemos ter 364 dias de Verão?).

Durante décadas, muitos portugueses sonharam em imitar José Saramago e mudar-se para Lanzarote, não para escrever romances em sossego ou por amuo face ao não-reconhecimento do seu talento pelo país, mas porque a mais oriental das Ilhas Canárias foi abençoada com uma precipitação média anual de 111 mm, apenas 19 dias de chuva por ano e uma temperatura mínima média em Janeiro de 14º C. Agora já temos estas condições sem sair do país.

Hacha Grande, Lanzarote

Haverá alguns inconvenientes neste novo estado de coisas: na sua coluna/estação meteorológica no jornal Público, Miguel Esteves Cardoso terá de arranjar novos assuntos para substituir as objurgações contra a chuva que tem a audácia de fazer a sua aparição no final de Outubro, as queixas sobre a temperatura glacial da água do mar, as arreliações causada pelo vendaval desabrido que o impede de ler na praia a vintena de revistas britânicas que ainda assina em papel, e as reclamações por o clima de Colares não ser mais parecido com o de Palm Springs. Poderá também acontecer que, nas esplanadas, o preço da salada de rúcula e abacate atinja valores exorbitantes (ou – horror! – tenha sido retirada do menu), já que legumes e frutas se tornarão, no “novo normal” climático, um produto de luxo. E é possível que as interdições de “acesso, circulação e permanência no interior de espaços florestais”, decretadas pelo Governo-Big Brother durante períodos de risco de incêndio muito elevado, acabem por evoluir para o encerramento total do interior de Portugal entre 1 de Junho e 30 de Setembro, sendo as (rarefeitas) populações indígenas reinstaladas temporariamente em parques de campismo e pavilhões multi-usos no litoral.

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Um aviso vindo do passado

“Quando me vires, chora” – é esta a agourenta inscrição, em alemão, datada de 1616, numa pedra no leito do Rio Elba, em Děčín (Tetschen para os germanófonos), hoje na República Checa. Há pedras com inscrições similares perto desta e muitas mais espalhadas pelos rios da Europa Central, sobretudo no Elba, mas também no Danúbio, no Reno, no Moselle e no Weser, boa parte delas em territórios que pertenceram ao Sacro Império Germânico e, depois ao Império Alemão e ao Império Austro-Húngaro. É difícil apurar a origem desta tradição, uma vez que a erosão causada pelo rio e o desgaste resultante das actividades humanas a ele associadas apagou as inscrições mais antigas – algumas, já ilegíveis, remontam ao século XV, a maior parte das que hoje sobrevivem são dos séculos XIX e XX. Os textos podem variar, mas a mensagem não: é uma advertência para as gerações futuras, gravada nas pedras deixadas a descoberto pelo rio num ano de seca e é simples de ser entendida – acaso a inscrição volte a emergir, tal implica que se vive um ano extraordinariamente seco e que serão esperadas fracas colheitas, e é por isso que estas pedras são conhecidas como “pedras da fome” (Hungerstein).

Uma das “pedras da fome” de Děčín

Para além das “pedras da fome”, há também inscrições que se limitam a registar a altura das águas, independentemente de o ano ter sido seco ou chuvoso, e que funcionam como um registo climatológico “fóssil”, fornecendo preciosa informação hidrológica numa época em que ainda não se fazia a compilação de dados hidrológicos padronizados.

As “pedras da fome” têm emergido ocasionalmente nas décadas mais recentes, mas só em 2022, em resultado da combinação de um ano invulgarmente seco em toda a Europa com uma “consciência ambiental” das massas mais desperta, se tornaram notícia de relevo e receberam atenção à escala planetária.

Um padrão no meio do caos

A meteorologia é inerentemente instável e cada ano oferece uma diferente sucessão de dias mais ou menos frios, chuvosos, encobertos ou ventosos, o que impossibilita a percepção das grandes tendências do clima se não se estudar, mediante ferramentas estatísticas adequadas, uma longa sucessão de dados anuais. Infelizmente, a linguagem corrente contribui para este obscurecimento, ao usar como equivalentes os termos “meteorologia”, que respeita a fenómenos com a duração de minutos, horas ou dias, e “clima”, que respeita a características mais duradouras, que podem revelar padrões de mudança no longo prazo.

O facto de uma região ter um clima seco não impede que possa experimentar dias chuvosos ou até excepcionalmente chuvosos ou até uma sucessão de dias excepcionalmente chuvosos, tal como uma pessoa de natureza bonacheirona pode ter um acesso de fúria. Por outro lado, se cada região possui um clima característico, tal não significa que este assim se mantenha até ao fim dos tempos, tal como uma pessoa bonacheirona pode tornar-se azeda com a idade. Mas também essa mudança do clima não se dá de forma ordeira e previsível: uma região cujo clima esteja a ficar progressivamente mais árido pode, pontualmente, registar um ou outro ano particularmente chuvoso.

Em 2022, mesmo os portugueses muito distraídos ou cujos rendimentos lhes permitem saltitar entre “bolhas” climatizadas (em casa, no carro, no emprego, no health club) ter-se-ão dado conta de que o mês de Julho foi excepcionalmente quente – na verdade, foi o mais quente desde 1931 e o primeiro semestre do ano foi o 3.º mais quente desde 1931, sendo superado apenas pelos de 2017 e 2020. A precipitação no ano hidrológico de 2021/22 – 419 mm – foi metade da média histórica, o que faz dele o segundo ano mais seco desde 1931 (este dado é provisório, uma vez que o presente ano hidrológico só termina a 30 de Setembro, mas não é provável que ocorra precipitação significativa entretanto).

Imagem composta a partir de oito fotografias, mostrando a evolução de um tonado, Minneola, Kansas, 2016

A aridificação do clima em várias regiões do globo e o aumento da frequência e intensidade dos fenómenos meteorológicos extremos têm vindo a ser associados, no seio da comunidade científica e, depois, nos media e nas conversas quotidianas, ao aquecimento global de origem humana. Porém, quando os jornalistas questionam meteorologistas e climatologistas sobre se um ano invulgarmente seco, um mês de Janeiro com temperaturas primaveris, ou uma tempestade de granizo inusitadamente devastadora são manifestações das alterações climáticas decorrentes da queima de combustíveis fósseis, a maior parte furta-se a estabelecer relações causa-efeito directas – esta relutância não é motivada pela cobardia mas pela extrema complexidade e volubilidade do tempo atmosférico, que torna muito difícil apurar em que medida em que um evento pode ser considerado como causa de outro evento. Para tal muito contribui o facto de a maioria dos fenómenos atmosféricos serem regidos pelo “caos determinístico”, ou seja, são processos em que diferenças ínfimas nas condições iniciais produzem, no final de uma longa cadeia, resultados radicalmente diferentes – é o muito citado (mas nem sempre correctamente compreendido) “efeito borboleta”, em que “o bater das asas de uma borboleta no Brasil pode causar um tornado no Texas”. Não por acaso, a Teoria do Caos, que tem aplicação em múltiplos domínios científicos, foi formulada por Edward Lorenz, em 1961, quando trabalhava em previsões meteorológicas.

Diferenças na temperatura da Terra entre os períodos 2011-21 e 1956-76

O debate em torno do aquecimento global é muito prejudicado por haver, de um lado, quem recuse liminarmente que as actividades humanas possam interferir no clima da Terra e , do outro lado, quem atribua todas as presentes alterações climáticas exclusivamente à acção humana. Ora, mesmo que no planeta não existisse um único Homo sapiens, ou se a humanidade ainda ocupasse esparsamente o planeta e subsistisse apenas mediante a caça, a pesca e a recolecção e tivesse um impacto modesto nos ecossistemas, existiria, ainda assim, uma constante variabilidade climática, em resultado da interacção de correntes marítimas, ventos, diferenciais de pressão atmosférica, temperaturas do ar e temperaturas da água, bem como do funcionamento (ou inactivação) de um imbróglio de colossais mecanismos atmosférico-oceânicos que os meteorologistas e climatologistas baptizaram como El Niño-Oscilação Meridional (ENSO na sigla inglesa), Oscilação do Atlântico Norte (NAO), Dipolo do Oceano Índico (IOD), Oscilação Madden-Julian (MJO), Oscilação Árctica (AO), Oscilação Antárctica (AAO) e um longo etc., que, aos leigos, poderão parecer fantasias rebuscadíssimas arquitectadas por cientistas incapazes de aceitar a aleatoriedade e a imprevisibilidade. A estes fenómenos que dizem respeito aos sistemas atmosférico e oceânico há que somar a actividade tectónica e vulcânica da Terra e factores “externos” como as variações na órbita da Terra (que geram os Ciclos Milankovich), as variações na emissão de radiação e matéria pelo Sol e a queda de meteoritos de grandes dimensões.

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/a/a0/20200324_Global_average_temperature_-_NASA-GISS_HadCrut_NOAA_Japan_BerkeleyE.svg/640px-20200324_Global_average_temperature_-_NASA-GISS_HadCrut_NOAA_Japan_BerkeleyE.svg.png

[Evolução da temperatura média da Terra entre 1850 e o presente, segundo modelos de cinco instituições: NASA, National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), Berkeley Earth e os institutos meteorológicos do Reino Unido (HadCRUT) e Japão (Japan Met)]

O aquecimento do planeta em resultado das actividades humanas representa mais uma camada de complexidade neste intricado jogo de interacções cruzadas que determina se, num dado ano, irá chover torrencialmente na Renânia-Palatinado ou se haverá seca no Sudeste da Austrália, se a Península de Kamchatka terá um Inverno invulgarmente clemente ou se irá nevar no Sul da Florida, o que levaria, provavelmente, o ex-presidente Donald Trump a fazer-se filmar junto das manchas brancas no relvado da sua mansão de Mar-a-Lago, em Palm Beach, increpando os media que difundem “fake news” sobre aquecimento global. Acontece que uma das regiões dos EUA mais ameaçada pela subida do nível do mar é o Sul da Florida e uma das primeiras zonas do estado a ser engolida pela água será a ilha-barreira onde se situa Palm Beach, pois a elevação média do terreno em relação ao nível do mar é aí de apenas 2 metros. Porém, atendendo à natureza escorregadia de Trump, é possível que consiga vender a mansão e o campo de golfe de Mar-a-Lago a um otário antes de o mar reclamar os seus direitos sobre a ilha-barreira.

[Vista aéra de Mar-a-Lago:]

Do que falamos quando falamos de “seca”?

O termo “seca” pode designar fenómenos diferentes: não deve confundir-se seca meteorológica – um período prolongado com precipitação inferior à média – com seca hidrológica – diminuição das reservas hídricas superficiais e subterrâneas – ainda que os dois conceitos estejam intimamente relacionados e a primeira seja causa frequente da segunda. Mas se, mantendo-se a precipitação inalterada, se registar um aumento da temperatura média, daí resultará um aumento da evapotranspiração (evaporação + transpiração pelas plantas), que faz com que parte substancial da precipitação regresse à atmosfera como vapor de água e com que as reservas hídricas declinem – ou seja, temos uma seca hidrológica que não decorre de uma seca meteorológica.

Os factores (correlacionados) temperatura e evapotranspiração têm um papel tão influente que fazem com que o indicador precipitação média anual, só por si, não nos permita concluir se uma região é mais húmida do que outra: Birmingham (681 mm/ano), Dublin (758 mm/ano) ou Bruxelas (852 mm/ano), cidades que associamos automaticamente a climas húmidos, recebem menos precipitação do que Coimbra (914 mm/ano); a enfarruscada Manchester (829 mm) é mais “seca” do que a soalheira Nápoles (895 mm/ano); e apesar de Londres se quedar pelos 557 mm/ano, os londrinos ávidos de sol e céu azul costumam acorrer em massa a Lisboa, onde caem 726 mm/ano. O padrão de distribuição da chuva ao longo do ano também é determinante na percepção da “humidade” do clima: Lisboa tem 77 dias de chuva por ano, enquanto Londres tem 109, Nápoles tem 87 dias de chuva, enquanto Manchester tem 143. Não menos relevante é que os dias de chuva em Londres e Manchester se distribuam de forma relativamente homogénea ao longo do ano, enquanto em Lisboa e Nápoles raramente se regista precipitação significativa durante o Verão (e mesmo que chova, como neste período a evapotranspiração é elevada, a maior parte da precipitação regressará rapidamente à atmosfera).

O ecologista alemão Heinrich Walter (1898-1989) concebeu um diagrama, a que deu o nome de “diagrama climático”, que integra a distribuição temporal da temperatura e da precipitação e permite visualizar, de forma compacta, elegante e expedita, quais os períodos em que as plantas atravessam períodos húmidos (a precipitação excede a evapotranspiração) e secos (a evapotranspiração excede a precipitação) e em que há probabilidade de ocorrência de geadas (que são danosas ou letais para muitas espécies). Embora outros factores ecológicos relevantes, como a topografia, o tipo de solo e o regime de ventos também condicionem a disponibilidade de água para as plantas, estes diagramas contêm, na sua aparente simplicidade, uma formidável quantidade de informação e permitem, num relance, avaliar as condições climáticas básicas num local e compará-las com as de outros locais.

Diagrama de clima para Nápoles. A escala da temperatura, à esquerda, faz corresponder 10º C a 20 mm na escala da precipitação, à direita; a duração e intensidade dos períodos de deficit hídrico são dadas pela área pontilhada; a área com sombreado vertical corresponde aos períodos em que a precipitação excede a evapotranspiração; a área a negro acima do sombreado vertical corresponde a condições “persistentemente húmidas”; a barra tracejada na base indica os períodos em que a temperatura mínima absoluta é igual ou inferior a 0º C (ou seja, em que há risco de geadas); uma barra negra na base (que não surge no caso de Nápoles) indica períodos com temperatura mínima média inferior a 0º C; no topo, da esquerda para a direita, após o nome do local, indica-se a sua altitude acima do nível do mar, a temperatura média anual e a precipitação média anual

Há vários factores a condicionar a disponibilidade de água para lá dos valores absolutos da precipitação e temperatura/evapotranspiração. Por exemplo, numa situação em que a temperatura média e a precipitação total anual se mantêm inalteradas mas a precipitação, em vez de se distribuir homogeneamente ao longo do ano, passa a concentrar-se em fortes e breves aguaceiros, as reservas hídricas (e a disponibilidade de água no solo) tendem a diminuir, pois durante os episódios pontuais de precipitação intensa a maior parte da chuva escoa-se directamente para o mar, em vez de se infiltrar e alimentar os aquíferos.

Acontece também que muitos rios têm como relevante fonte de alimentação o degelo dos glaciares e da neve que cai nas regiões montanhosas e o facto de este degelo ser mais intenso no Verão compensa o facto de o saldo precipitação menos evapotranspiração ser negativo durante esse período, o que faz com que o caudal desses rios seja relativamente homogéneo durante o ano. Se o aumento da temperatura fizer diminuir a queda de neve ou a fizer derreter toda logo no início da Primavera, esse “efeito de almofada” desaparece e o rio irá registar maiores diferenças entre os caudais de Inverno e Verão.

O Rio Indo com o Nanga Parbat (a 9.ª montanha mais alta do mundo) em fundo. Boa parte do caudal do Indo (243 Km3/ano) provém das monções, outra parte da fusão do gelo e neve nas cadeias montanhosas onde o rio e os seus afluentes nascem. O Indo, que atravessa todo o Paquistão, de nordeste para sudoeste, tem sido responsável pelas mais devastadoras cheias naquele país

Se uma região sofrer forte desflorestação, mesmo que a temperatura e a precipitação médias anuais se mantenham, a hidrologia de uma região pode alterar-se drasticamente, devido à perda do efeito de “esponja” das florestas, que favorecem a infiltração de parte da precipitação, reenviam outra parte para a atmosfera sob a forma de transpiração e favorecem uma libertação lenta e diferida da precipitação infiltrada. Assim, nas áreas desflorestadas o escoamento superficial torna-se mais contrastado, sendo muito intenso quando caem os aguaceiros e declinando rapidamente quando a chuva cessa.

Em busca da nascente do Tamisa

A nascente do Tamisa (Thames Head) é, tradicionalmente, situada no prado de Trewsbury Mead, perto da aldeia de Coates, no Gloucestershire, mas, na prática, depende do nível freático, o que faz com que, no Verão, o ponto de origem da água se situe algumas centenas de metros a jusante; porém, no tórrido Verão britânico de 2022 (que assistiu à quebra de recordes de temperatura máxima que já tinham 80 anos), quem quisesse encontrar a nascente do Tamisa teria de descer o curso seco do rio por 8 Km, até Somerford Keynes, para encontrar a primeira água corrente.

Thames Head, perto de Coates: A lápide assinala o ponto onde, nos períodos húmidos, o Tamisa inicia o seu percurso, fluindo na direcção do observador

Com os seus 346 Km de extensão e uma bacia hidrográfica de 12.935 Km2, o Tamisa é, à escala europeia, um rio de dimensão modesta, pelo que a “migração” da sua nascente poderia não ser um evento significativo. Porém, também o Danúbio e o Reno, com, respectivamente, extensões de 2850 e 1230 Km e bacias hidrográficas de 801.000 e 185.000 Km2, registaram mudanças dramáticas no Verão de 2022.

No Danúbio, a descida do nível das águas durante o Verão fez com que dezenas de navios ficassem retidos no porto fluvial de Zimnicea (Roménia), aguardando por uma draga que aprofundasse o canal navegável, e revelou, junto a Prahovo (Sérvia), os destroços de dezenas de navios de guerra alemães, que, em 1944, tinham subido o rio desde o Mar Negro e que ali tinham sido deliberadamente afundados.

No Reno, que é uma das principais artérias da indústria alemã e representa 80% do tráfego fluvial no país, o nível das águas no Verão de 2022 reduziu-se, nalguns troços, a cerca de um metro, levando a que algumas embarcações cessassem de operar e outras o fizessem com apenas uma fracção da carga usual, agravando os problemas de disrupção das cadeias de abastecimento que afectam a economia de todo o mundo desde o início da pandemia de covid-19.

O Pó, cujos 682 Km fazem dele o mais longo rio de Itália e possui uma bacia hidrográfica de 74.000 Km2, regista o menor caudal dos últimos 70 anos e, nalguns pontos, é possível atravessá-lo quase sem molhar os pés. A média histórica do caudal do Pó em Ferrara a 1 de Junho é de 1805 m3/segundo, mas a 1 de Junho de 2022 foi de 145 m3/segundo. A produção de trigo no fértil Vale do Pó regista uma quebra de 20-50% e a seca ameaça seriamente a produção de energia em Itália, 40% da qual é hidroeléctrica; para mais, a Rússia, que representou em 2021 40% do gás consumido em Itália, deixou de ser um fornecedor confiável.

Esvaziado pela seca mais grave registada em França desde 1959, o Loire, o rio mais longo do país, com 1000 km de comprimento e uma bacia hidrográfica de 117.000 Km2, pode ser atravessado a vau em vários pontos.

Drought In Chongqing

Confluência dos rios Jialing e Yangtze, em Chongqing, 18 de Agosto de 2022

O definhamento dos grandes rios não se circunscreve à Europa: no Yangtze, o mais longo rio da Ásia (e o 3.º mais longo do mundo), com 6300 Km de comprimento e uma bacia hidrográfica de 1.808.000 Km2 e do qual 500 milhões de chineses dependem para o fornecimento de água, não foi poupado pela seca, levando à suspensão parcial da navegação; no Huangpu, um rio artificial que atravessa Shanghai e desemboca no Yangtze, o nível da água desceu ao mínimo dos últimos 20 anos, bloqueando o tráfego fluvial durante semanas. Os usos da água do Yangtze estão agora sob estrito racionamento, o que causou a redução da produção hidroeléctrica em 40-50%, um corte que afectou sobretudo a província de Sichuan, que é a que mais contribui para a geração de hidro-electricidade no país. A quebra na produção de hidro-electricidade forçou Toyota, Foxxcon e Tesla a encerrar as unidades fabris no Sudoeste da China e levou o Governo chinês a impor severas medidas restritivas do consumo de electricidade, nomeadamente reduzindo a iluminação em transportes e lugares públicos e limitando a abertura dos centros comerciais em Chongqing (que passou duas semanas com temperaturas máximas superiores a 40º C) a cinco horas por dia. Fora dos centros urbanos, a seca e a onda de calor assumem outras formas: na bacia do Yangtze, perderam-se 2.2 milhões de hectares de culturas e irromperam devastadores incêndios florestais. Tal como no Elba e no Danúbio, também no Yangtze a descida das águas trouxe surpresas do passado: em Chongqing, emergiram três estátuas de Buda datadas do século XV.

Monitorização da seca nos EUA, situação a 16 de Agosto de 2022. Código de cores: amarelo, seca fraca; creme, seca moderada; laranja, seca severa; vermelho, seca extrema; castanho, seca excepcional. As letras S e L indicam, respectivamente, efeitos de curto prazo (menos de seis meses) e de longo prazo (mais de seis meses)

No caso do Rio Colorado, que serpenteia ao longo de 2330 Km entre a nascente nas Montanhas Rochosas e a foz no Golfo da Califórnia e possui uma bacia hidrográfica de 640.000 Km2, a culpa não pode ser assacada integralmente ao Verão de 2022, uma vez que a seca que o afecta (denominada pelos climatologistas como “Southwestern North American Megadrought”) já dura há 22 anos e é considerada a mais grave na região desde 800 d.C. Lake Mead, a maior albufeira dos EUA, criada em 1936 quando a Hoover Dam bloqueou o fluxo do Colorado, e que abastece 20 milhões de pessoas, está hoje a 27% da sua capacidade e das suas 20 marinas só uma continua activa, tendo as restantes (mesmo aquelas que já tinham sido relocalizadas numa cota mais baixa) ficado a seco. A culpa não é só da seca meteorológica: os formidáveis volumes de água captados para uso agrícola e urbano e a elevada evaporação inevitável ditada pelo clima desértico contribuem para que o caudal do Colorado na fronteira com o México fosse, em 2021, 1/5 da média histórica; e como os mexicanos também fazem uso generoso da água do rio, o leito deste costuma estar completamente seco a jusante da Barragem Morelos, pelo que o fluxo de água na foz do outrora poderoso Colorado provém, hoje, integralmente dos seus tributários a jusante da Barragem Morelos.

Lake Mead, torres de captação junto à Hoover Dam, Outubro de 2021. O nível usual da água é a linha que separa o cinzento escuro do cinzento claro

Tal como no Sudoeste dos EUA, no Corno de África a seca não começou no Verão de 2022: quase não chove desde o início de 2021 e a combinação do que é a pior seca dos últimos 40 anos naquela região com a subida acentuada do preço dos cereais nos mercados internacionais faz o espectro da fome pairar sobre 22 milhões de pessoas na Somália, Etiópia e Quénia.

Vem aí o Dia do Juízo Final?

Muito longe destes rios reduzidos a charcos lamacentos, na Antártida outro tipo de “rios”, estes feitos de gelo, também é causa de inquietação: o Glaciar Thwaites, um dos maiores daquele continente e também um dos mais instáveis, poderá, de acordo com um estudo publicado na Nature Geoscience no início de Setembro, experimentar períodos mais acelerados de desintegração do que o recuo médio de 1 Km por ano registado na última década. Os glaciologistas há muito que indentificaram o Glaciar Thwaites e a plataforma de gelo que lhe está associada como altamente susceptíveis ao aquecimento global, tendo perdido 600.000 milhões de toneladas de gelo nas últimas quatro décadas, o que levou a que os media passassem a designá-lo como “Glaciar do Dia do Juízo”.

A 15 de Março de 2002, um iceberg, denominado como B-22 e medindo 85 x 65 Km e com uma área de 5490 Km2 (a mesma que o distrito da Guarda), separou-se da plataforma de gelo do Glaciar Thwaites

Mas nem o recuo dos glaciares e a consequente subida do nível dos oceanos, nem o definhamento dos grandes rios, nem as colheitas arruinadas pela falta de água, nem a vaga de fogos florestais que assolou o Verão de 2022, parece capaz de abalar a ignorância presunçosa e a obstinação petulante dos “negacionistas” das alterações climáticas, que medram sobretudo na direita do espectro político e que continuam a interpretar esta constelação de sinais ominosos como uma invenção dos mass media, que retiram o seu sustento de instilar nas massas o temor de catástrofes planetárias causadas pelo “buraco do ozono”, pelo arrefecimento global ou pelo aquecimento global. Mesmo que possa haver algum sensacionalismo no tratamento que os mass media dão a estes assuntos e o Dia do Juízo não esteja para breve, o que os dados objectivos parecem dar como certo é que as alterações climáticas em curso irão trazer morte, sofrimento e privações a centenas de milhões de pessoas, sobretudo entre os mais pobres e desamparados, e irão erodir o bem-estar e o conforto da restante população do planeta.

Quando os hipopótamos nadavam no Sahara

Com a invasão da Ucrânia pela Rússia e as consequentes disrupções no cultivo e transporte dos cereais provenientes da primeira e as sanções impostas à segunda, o receio da escassez de cereais começou a pairar sobre o mundo, uma vez que a Rússia é o 1.º exportador mundial de trigo e a Ucrânia é o 5.º (movimentando em 2021, respectivamente, 7300 e 4700 milhões de dólares). Entre os países que mais dependem da importação de trigo ucraniano (após Moldávia e Líbano) estão a Tunísia (49% de dependência) e a Líbia (48%). Ucrânia e Rússia são as principais fontes do trigo importado pelo Egipto (26% da primeira e 70% da segunda) e são também relevantes para Marrocos (25% da primeira e 11% da segunda); no Norte de África, só a Argélia não está dependente de Ucrânia e Rússia, por importar o seu trigo maioritariamente de França, Alemanha, Canadá e Polónia.

Abstraindo-nos das fontes, é notório que o Norte de África é hoje uma das principais regiões importadoras de trigo, o que contrasta com o facto de ter sido a principal fonte do trigo consumido no Império Romano, há 2000 anos, numa época em que o clima no Norte de África era bem mais húmido do que hoje. Há investigadores que sugerem que a quebra na produção de trigo no Egipto se terá tornado patente no século III d.C., sendo particularmente notória na região de Faiyum (Shedet para os antigos egípcios), que era alimentada por um braço do Nilo e terá sido a mais produtiva do Império Romano, no que ao trigo diz respeito. A causa do declínio de Faiyum terá sido uma alteração do padrão das monções na África Oriental, que reduziu a precipitação na região superior da bacia hidrográfica do Nilo e, logo, o caudal do rio; a área cultivada em Faiyum continuou a minguar nos séculos seguintes e o que em tempos fora uma vasta e próspera região agrícola é hoje um modesto oásis.

“Medinet El-Fayoum”, por Jean-Léon Gérôme, c.1868-70

Apesar de o século III ter sido um ponto de viragem no clima do Norte de África, a verdade é que representou apenas mais um degrau num longo processo de aridificação que afectou também a Península Arábica e se iniciou há cerca de 5500-5000 anos; o período anterior, a que os paleoclimatologistas designam como “Período Húmido Africano”, terá durado cerca de 10.000 anos e é atestado pela abundância de pólen de espécies de plantas de climas húmidos e pela escassa presença de poeiras em antigos sedimentos depositados ao longo da hoje árida costa da Mauritânia, e por vestígios de uma rede de cursos de água e lagos onde hoje só há areia, cascalho e rochas, incluindo um antecessor do Lago Chade que teria 160 metros de profundidade máxima e cobriria um milhão de Km2. Quando os primeiros exploradores o cartografaram em 1823, o Lago Chade era uma pálida sombra desse antepassado, mas ainda era um dos maiores lagos do mundo; porém, o seu declínio intensificou-se em tempos recentes – perdeu 95% da área entre 1963 e 1998 – e ocupa hoje apenas 1540 Km2 (uma média que oscila consoante a pluviosidade do ano), a sua profundidade máxima é de 11 metros e a profundidade média de 1.5 metros.

Onde hoje existe o Ténéré, uma região hiper-árida no já de si árido Sahara, existiram lagos que albergavam hipopótamos, crocodilos, tartarugas e percas do Nilo. A riqueza faunística do Sahara pré-aridificação – hipopótamos, girafas, rinocerontes e grande variedade de antílopes e bovídeos – não só é atestada pela paleontologia como está patente nas pinturas e petróglifos que os habitantes da região deixaram em grutas e superfícies rochosas.

Petróglifo com girafas, Dabous, norte do Níger

Há cerca de 5500 anos uma alteração da inclinação do eixo da Terra (pelo menos é o que sugerem os paleoclimatologistas) terá causado o recuo da monção para sul e a diminuição da precipitação no Norte de África, causando alterações que estão documentadas nas pinturas e petróglifos pré-históricos, com imagens de dromedários a sobreporem-se aos rebanhos de bovinos de épocas mais antigas. À medida que a aridez crescia e os recursos definhavam, as populações foram abandonando o território que é hoje o Sahara e concentrando-se junto ao Nilo e à orla mediterrânica do continente africano – porém, como vimos, a partir da fase final do Império Romano, também estas regiões viram a sua pluviosidade decrescer e tornaram-se menos produtivas.

A gruta de Manda Guéli, no nordeste do Chade, é um repositório de vários séculos de arte rupestre. Nesta imagem, um artista acrescentou dois dromedários aos bovinos pintados pelos seus antecessores

A lente da História

A História pode fornecer narrativas diferente consoante a focagem que usarmos: se recuarmos 2000 anos, discernimos um panorama de aridificação crescente da orla mediterrânica de África; se recuarmos mais 5000 anos, perceberemos que a pujança agrícola das províncias africanas de Roma era, afinal, o que restou de um Norte de África ainda mais luxuriante. Mas se recuarmos 20.000 anos encontraremos um Norte de África tão árido como o de hoje – e se recuarmos ainda mais no tempo, veremos que o Norte de África conheceu 230 alternâncias entre períodos húmidos e áridos durante os últimos 8 milhões de anos.

A lição a retirar deste exercício é que o clima varia, o que está longe de ser uma novidade mas é algo que tendemos a esquecer. Este “esquecimento” tem várias causas: uma é a arrogância intelectual – o ser humano gosta de imaginar-se como o pináculo da evolução e cada geração tende a ver-se como “o fim da História” e a referência por que tudo se mede; assim, a maioria das pessoas é incapaz de se ver como um episódio passageiro num interminável devir e entende que o mundo deveria permanecer indefinidamente tal qual como se habituou a conhecê-lo.

Guanyin Pavilion Reappears From Underwater In Ezhou

O Pavilhão Guanyin, perto da cidade de Ezhou (província de Hubei), é uma construção do século XIV no meio do Rio Yangtze. Usualmente, apenas a construção emerge sobre as águas, mas a seca de 2022 colocou a sua base rochosa à vista, como mostra esta foto de 20 de Agosto. A escadaria talhada na pedra sugere que não foi a primeira vez que o nível do Yangtze desceu tão baixo

Outra causa é a conveniência: a civilização foi construída sobre uma determinada base de pressupostos do mundo físico e se estes se alteram, os “interesses instalados” são perturbados – os agricultores lamentam que já não haja água suficiente para os seus pomares, os pescadores queixam-se de que as sardinhas migraram para norte, quem construiu uma mansão e um clube de golfe sobre uma ilha-barreira angustia-se ao vê-la evoluir ao sabor das correntes, os ornitólogos alertam que uma dada espécie de aves deixará de visitar o país por terem secado as zonas húmidas onde nidificava, os habitantes das cidades geométricas e desoladas, feitas de betão, vidro e asfalto, suam em bica durante os Verões cada vez mais quentes e perguntam-se se será possível a vida sem ar condicionado.

Os sistemas naturais são muito mais flexíveis e resistentes do que as civilizações e, sejam quais forem as condições de temperatura, humidade, luminosidade ou salinidade que a dinâmica planetária imponha, apresentarão um solução ajustada, mais ou menos luxuriante e com maior ou menor biodiversidade. Retomando a ilha-barreira como metáfora, também a vegetação dunar será capaz de ajustar-se às configurações que os sedimentos forem assumindo em função do incessante jogo do vento e das ondas, enquanto as edificações erguidas sobre a areia serão implacavelmente desfeitas.

A História está juncada com as ruínas de civilizações que colapsaram devido a alterações climáticas, um assunto que Brian Fagan tratou no revelador livro Foods, famines and emperors: El Niño and the fate of civilizations, datado de 1999, numa altura em que Greta Thunberg ainda não tinha nascido e Al Gore ainda não descobrira uma nova e lucrativa vocação como pregador ambientalista (a “iluminação” só o atingiu após perder as eleições presidenciais de 2000, contra George W. Bush). Entre os muitos exemplos possíveis desses “colapsos climáticos”, está o império acádio, que prosperou no que é hoje o Iraque entre os séculos XXIV e XXII a.C. e conduziu numerosas campanhas vitoriosas sobre os reinos vizinhos, mas acabou por ser derrubado, no seu apogeu, por um período de grande aridez que terá durado quase um século – na Mesopotâmia há indícios de que, há cerca de 4200 anos, os terrenos agrícolas foram cobertos por areias e poeiras transportadas pelo vento e sofreram processos de salinização, o gado morreu devido a privações extremas e as cidades foram abandonadas pelos seus habitantes.

Estela triunfal do rei acádio Naram-Sin (reinado 2254-2218 a.C.)

A civilização maia atingiu o seu maior esplendor entre os séculos IV e VIII, mas entrou em rápido declínio a partir da segunda metade do século VIII, em resultado de uma sucessão de secas que assolou a Península do Yucatán, segundo indicam estudos arqueológicos e paleoclimatológicos. As cidades maias foram esvaziando-se, a população foi dispersando-se e o nível de sofisticação civilizacional foi regredindo, de forma que quando os conquistadores espanhóis chegaram ao Yucatán, no início do século XVI, as cidades maias tinham há muito sido engolidas pela selva e assim permaneceram até os primeiros exploradores e arqueólogos as terem redescoberto na segunda metade do século XIX.

Deve realçar-se que, enquanto a queda do império acádio parece dever-se a um fenómeno de aridificação à escala global, conhecido como “Evento climático de 4200 BP” (4.2 Kiloyear BP Aridification Event), o declínio da civilização maia, de acordo com a hipótese ventilada em Colapso: Ascensão e queda das sociedades humanas (2005), de Jared Diamond, terá resultado da combinação de quatro períodos de acentuada quebra na precipitação (por volta dos anos 760, 810-20, 860 e 910), com a sobre-exploração dos aquíferos e a expansão da agricultura a terrenos inadequados, na tentativa de sustentar uma população que excedia a capacidade de carga da região.

Templos da cidade maia de Tikal em 1882, após a expedição liderada pelo arqueólogo britânico Alfred Percival Maudslay ter removido parcialmente a vegetação que os cobria havia nove séculos

O Homo sapiens do século XXI poderia ter retirado alguns ensinamentos do destino dos acádios e dos maias, mas está tão envaidecido pelos formidáveis progressos tecnológicos e organizacionais logrados desde a Revolução Industrial que se julga pairar acima da Natureza e ter resolvido todos os grandes problemas que atormentaram a Humanidade durante milénios (ver Quer tornar-se num deus? Pergunte-lhe como e “A Natureza nem sempre é amiga”: Vírus, livros e metáforas), não se dando conta de que a civilização cresceu tão desmesuradamente, tornou-se tão disfuncional, dissipadora e ávida de recursos, e habituou-se a funcionar de forma tão interconectada e interdependente e num ritmo tão frenético, que qualquer contrariedade ou imprevisto é capaz de a abalar – em 2000, uma cegonha, ao ser electrocutada num cabo de alta tensão, deixou metade de Portugal sem energia eléctrica durante horas; em 2021, um navio porta-contentores encalhou no Canal de Suez e criou ondas de pânico na economia mundial; em 2022, uma guerra de atrição nas planícies do Dnieper e do Dniester faz pairar o espectro da fome sobre os países pobres do Norte de África e do Médio Oriente, gera agitação social na Europa  e espoleta tumultos e derruba governos no Sri Lanka

O funcionamento da civilização do século XXI pressupõe modelos novos de iPhone de dois em dois anos, a estreia de 200 séries televisivas por ano (só nos EUA) e a adição semanal de 2900 novos artigos de “moda descartável” ao catálogo online da Shein, mas requer um mundo físico estático e vacila quando o mundo físico começa a alterar-se de forma perceptível e imprevisível – em resultado dos subprodutos, detritos e desmandos dessa mesma civilização. Ao longo da História, várias sociedades tiveram de fazer face a mudanças no clima, no solo e na disponibilidade de recursos hídricos, mas estas costumavam ser lentas, o que facilitava a adaptação dessas sociedades – ainda assim, muitas sucumbiram. Mas os efeitos do frenesim que se vive desde a Revolução Industrial parecem estar a induzir mudanças rápidas, com as quais é mais difícil lidar – e uma das mudanças com maior potencial disruptivo é a diminuição da precipitação em várias regiões do globo.

“Senhores passageiros, temos pela frente uma zona de turbulência”

Em Portugal, quando se fala de alterações climáticas é frequente associar univocamente estas a um clima mais quente e seco – é essa a tendência que se tem registado nas últimas décadas na Europa mediterrânica e é previsível, dizem-nos os especialistas, que venha a intensificar-se. Porém, as alterações climáticas terão expressões diferentes em diferentes regiões do mundo: na verdade, a subida das temperaturas médias globais do ar e da água traduzir-se-á em maior evaporação, maior volume de água na atmosfera e, logo, maior precipitação a nível global. Só que essa água “extra” na atmosfera não será redistribuída de forma homogénea no espaço e no tempo: o aumento da temperatura faz com que o ar seja capaz de armazenar mais humidade e durante um período mais longo, mas acabará por libertá-la, por vezes de forma abrupta.

O que está em curso é uma reconfiguração global do clima, com algumas regiões, já de si relativamente secas, a receberem menos precipitação, e outras regiões, já de si húmidas, a receberem mais precipitação – ou seja, a distribuição de precipitação irá tornar-se mais desequilibrada geograficamente.

Previsão da variação na precipitação anual para a Terra, entre o início e o fim do século XXI. O acréscimo de precipitação (em polegadas, 1 polegada = 25.4 mm) é indicado por tons azuis, o decréscimo por tons amarelos, a intensidade da variação é proporcional à intensidade da cor; a previsão foi realizada pela National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), o equivalente americano do IPMA

No Verão de 2022, enquanto os europeus viam os seus rios minguarem aflitivamente, ocorreram cheias de dimensão inaudita no Paquistão, superando as já de si catastróficas cheias de 2010: o terço sul do país ficou inundado, o número de mortos ultrapassou um milhar, há 400.000 pessoas desalojadas e estima-se que 35 milhões de paquistaneses tenham sido afectados; mas, antes das chuvas, houve calor escaldante, com os termómetros a ascender a inéditos 49º C.

O Verão de 2022 trouxe também cheias históricas em lugares usualmente áridos, como o Sudão, onde 90 pessoas morreram e 150.000 ficaram desalojadas, o Yemen, onde a precipitação foi quatro vezes superior à média, a Mauritânia, onde morreram 14 pessoas e 30.000 foram desalojadas, o Irão, onde morreram pelo menos 70 pessoas, e os estados norte-americanos de Arizona, Novo México e Nevada – em Agosto, Las Vegas, em pleno Deserto de Mojave, onde a precipitação média anual é de 110 mm, foi atingida por cheias-relâmpago que inundaram os casinos e causaram dois mortos. No norte do Texas registaram-se cheias-relâmpago, em resultado da queda, em apenas 24 horas, de 385 mm de precipitação, isto é, apenas menos 34 mm do que choveu em média em Portugal ao longo de todo o ano de 2021/22.

O continente australiano, apesar de, no cômputo global, ser árido e estar em processo de aridificação, registou, em Fevereiro de 2022, cheias históricas no sudeste, com a região de Brisbane a receber 677 mm de chuva em apenas três dias; em Julho foi a vez de Sydney e de outras partes do estado de Nova Gales do Sul, nomeadamente a zona de Illawarra, onde caíram 700 mm de chuva em apenas três dias. O mais inquietante é que, na região ocidental de Sydney, as cheias de Julho de 2022 foram as quartas cheias severas ocorridas num período de apenas dois anos.

[Aspectos (comprimidos no tempo) das inundações de Fevereiro de 2022 no estado de Queensland, no sudeste da Austrália:]

Em 2022 também choveu em excesso em climas húmidos, como sejam a Indonésia (154 mm em 24 horas em Bengkalu, Sumatra; 600 mm entre 21 e 24 de Agosto na província de Papua Ocidental), a República Democrática do Congo, a região de Petrópolis, no Brasil (258 mm em três horas, a 22 de Fevereiro, causando deslizamentos de terras que mataram pelo menos 231 pessoas), os estados de Assam e Meghalaya, no nordeste da Índia (matando 100 pessoas e inundando milhões de habitações) e Bangladesh (150 mortos, 9 milhões de desalojados).

O facto de o clima no Sul e Centro da Europa estar a tornar-se mais árido não é incompatível com o facto de a incidência das cheias na Europa estar a aumentar – todos terão ainda presentes as que no Verão de 2021 devastaram a Europa Central (sobretudo Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Alemanha, Áustria, Suíça, Itália e Croácia), causando 243 mortos e prejuízos estimados, por baixo, em 10.000 milhões de euros.

Estragos causado pelas cheias de Julho de 2021 em Pepinster, Bélgica

O acentuar dos desequilíbrios já existentes na distribuição geográfica da precipitação está a ser acompanhado por um desequilíbrio na distribuição temporal, com tendência para que 1) chova mais nos períodos já de si chuvosos e menos nos períodos já de si secos e 2) a precipitação ocorra em episódios breves e intensos, que alternam com longos períodos sem chuva. Este fenómeno insere-se numa tendência generalizada, um pouco por todo o planeta, da ocorrência de eventos meteorológicos extremos: o futuro, prognosticam os climatologistas, será mais turbulento e terá mais e mais intensos tornados, ciclones, tempestades de granizo, “downbursts”, ondas de frio e calor, secas e inundações.

Nalgumas regiões, as alterações climáticas poderão sobrepor vários desequilíbrios: por exemplo, em certas regiões da Índia, irá, segundo alguns modelos, cair mais chuva na estação das monções (quente e húmida), na mesma altura do ano em que as temperaturas mais elevadas aceleram o degelo dos glaciares nos Himalaias – o resultado desta conjugação será uma intensificação das cheias. A agravar a tendência para que algumas regiões passem a alternar entre secas e chuvas torrenciais está a possibilidade de, nas regiões tropicais, a seca prolongada endurecer o solo e diminuir a sua permeabilidade, o que fará com que, quando chegarem as chuvas fortes, estas, em vez de se infiltrarem, se escoem superficialmente, o que aumenta o risco de cheia.

Previsão da alteração na precipitação total (chuva + neve) na Terra, entre os períodos 1981-2000 e 2081-2100, considerando o cenário mais grave (RCP8.5), em que não será feito esforço para conter as emissões de CO2 e em que, no final do século XXI, as emissões globais atingirão 15-20 gigatoneladas de carbono por ano e a concentração de CO2 na atmosfera atingirá 1200 partes por milhão. O acréscimo de precipitação é indicado por tons violeta, o decréscimo por tons laranja, a intensidade da variação é proporcional à intensidade da cor; a previsão é uma síntese das previsões de 38 modelos climáticos diferentes

Demasiado seco e quente para cactos

Um acaso e o poder dos media americanos fizeram com que a imagem que a palavra “cacto” evoca, um pouco por todo o mundo, seja usualmente a do saguaro (Carnigea gigantea), por estes serem presença assídua no décor dos westerns, fosse onde fosse que a narrativa ficcional tivesse lugar, da Califórnia ao Texas. O protagonismo cinematográfico dos saguaros era quase sempre uma invenção dos directores de arte, uma vez que os saguaros apenas crescem espontaneamente no Deserto de Sonora, que cobre parte do estado americano do Arizona e do estado mexicano de Sonora. Em 1933, foi criado no Arizona o Saguaro National Monument, depois expandido e convertido no actual Saguaro National Park, que cobre 37.000 hectares, divididos por duas áreas, Tucson Mountain District e Rincon Mountain District, e cujo principal fito é a preservação desta icónica planta carnuda em forma de candelabro e que pode atingir 12 metros de altura (“icónico” é um adjectivo hoje usado até à náusea e em circunstâncias despropositadas, mas justifica-se neste caso) e que é uma espécie-chave no ecossistema do deserto, fornecendo alimento e abrigo a centenas de espécies de aves, mamíferos e insectos.

Rincon Mountain District, c.1935

No Tucson Mountain District, mais árido do que o Rincon Mountain District, a precipitação média anual é de 298 mm e a temperatura média anual é de 21º C, mas estas médias ocultam a real dureza do clima: as temperaturas máximas médias de Junho a Julho são de 37-38º C, as temperaturas mínimas médias de Dezembro e Janeiro rondam os 4º C e a precipitação concentra-se em Dezembro-Março, por vezes sob a forma de neve, nas partes mais elevadas, e em Julho-Agosto, sob a forma de aguaceiros muito intensos e breves.

Os saguaros adaptaram-se a estas duras condições, mas as alterações climáticas – que, no Deserto de Sonora, se manifestam, nomeadamente, como um aumento na temperatura média de 2.2º C entre 1900 e 2010 – parecem estar a dificultar a renovação do cacto, com os indivíduos jovens a registarem uma baixa taxa de sobrevivência. Mais do que o aumento de 2.2º C na temperatura média, o que está a matar os jovens cactos será possivelmente o aumento de frequência de dias com temperaturas acima de 38º C; a disseminação de espécies invasoras de gramíneas que servem de rastilho e combustível a incêndios (potenciados pelo aumento da temperatura e diminuição da precipitação) é outra ameaça – e uma para a qual as espécies do deserto não estão preparadas. A Tucson Audubon Society tem promovido a plantação de milhares jovens saguaros em locais menos expostos às agruras do clima, mas não é seguro que desta espécie não reste senão uma memória preservada nos cenários dos westerns clássicos.

Saguaro National Park

Dias a fio de céu azul no Club Med

O clima mediterrânico, que, além da orla do Mar Mediterrâneo, tem expressão relevante na Califórnia, Chile, extremo sudoeste de África e costa sudoeste da Austrália, é visto como uma bênção pelos veraneantes, mas coloca um desafio às plantas e a quem gere os recursos hídricos, uma vez que os meses de temperatura elevada registam pouca ou nenhuma precipitação. A pressão sobre as plantas e os recursos hídricos é reforçada por os modelos climatológicos serem praticamente unânimes em prever que, nestas regiões, a quantidade total de precipitação irá diminuir, a temperatura irá aumentar e os Verões tenderão a ser mais secos, quentes e longos.

Distribuição das regiões de clima mediterrânico pelo planeta: a amarelo, regiões com Verão quente, a verde, regiões com Verão temperado

O Verão de 2022 parece confirmar estas previsões: 98% da Califórnia está actualmente em seca severa, sendo o episódio de seca de 2020-22 o terceiro deste século, após os de 2007-09 e 2011-17. O historial de aumento da incidência da seca na Califórnia é corroborado pela comparação da evolução entre 1900 e 2020 do Índice Padronizado de Precipitação e Evapotranspiração (SPEI na sigla inglesa), um indicador estatístico análogo ao mais difundido PDSI (Palmer Drought Severity Index), que combina dados de precipitação e evapotranspiração para dar ideia da disponibilidade hídrica: todo o território da Califórnia regista diminuição significativa do SPEI, o mesmo acontecendo no Sudoeste dos EUA e na Florida.

Variação no Índice Padronizado de Precipitação e Evapotranspiração (SPEI) nos EUA, entre 1900 e 2020

Portugal, que se encontra integralmente na área de clima mediterrânico, tinha, no final de Julho de 2022, 55% do território em seca severa e 45% em seca extrema, uma situação cuja gravidade só foi superada no Verão de 2005; se considerarmos os seis anos de maior gravidade da situação de seca no final de Julho – 1945, 1995, 2005, 2012, 2017, 2022 – torna-se evidente que as secas estão a tornar-se mais frequentes.

De acordo com um artigo publicado em Julho de 2022 na Nature Geoscience (Twentieth-century Azores High expansion unprecedented in the past 1,200 years, por Cresswell-Clay et al.), a diminuição da precipitação na Península Ibérica nos anos mais recentes está associada à dimensão do anticiclone dos Açores, que regista grandes oscilações de ano para ano e é o principal factor que controla a precipitação Península Ibérica durante o Inverno – quando o anticiclone tem menor desenvolvimento, as massas de ar húmido vindas do Atlântico descarregam precipitação mais abundante na Península Ibérica, quando o anticiclone está mais dilatado, bloqueia as massas de ar húmido e a precipitação na Península sofre uma quebra, que pode atingir 1/3 (c.35 mm/mês) nos Invernos em que o anticiclone atinge a dimensão máxima. Os investigadores, recorrendo a modelos de simulação da circulação atmosférica e da precipitação desde o ano 850 até ao presente, concluíram que a área média ocupada pelo anticiclone dos Açores tem registado um aumento significativo desde 1850, e em particular desde 1980, o que, segundo os investigadores, é compatível com a hipótese de o fenómeno estar associado ao aquecimento global de origem antropogénica.

Esta situação é tanto mais preocupante por, na orla mediterrânica, os cultivos tradicionais, adaptadas a um Verão quente, seco e longo, terem sido substituídas por cultivos mais rentáveis mas mais exigentes em água, e por ter ganho grande relevância a indústria turística, que faz afluir anualmente à região mediterrânica cerca de 300 milhões de turistas. Este afluxo, que faz triplicar ou quadruplicar a população nas regiões mais apetecidas, incide maioritariamente nos meses de Verão, em que há menos água disponível. O cenário é ainda agravado pelo facto de o turista-padrão ter um consumo médio diário de água superior ao do indígena-padrão – para começar porque, não sendo o turista a pagá-la, não tem qualquer incentivo a moderar o seu consumo. Finalmente, nalgumas regiões – como é o caso do Algarve –, as principais propostas de lazer usadas para seduzir turistas consomem grandes volumes de água: campos de golfe, piscinas, parques de diversões aquáticas.

Slide & Splash, Estômbar, Algarve: 10 hectares de fantasias aquosas numa região cada vez mais seca

Um macio tapete verde

O golfe teve origem no século XV, na Escócia, e ganhou tal popularidade entre os escoceses que, em 1457, Jaime II da Escócia interditou a sua prática, por esta desviar os mancebos da prática, bem mais útil ao reino, do tiro ao arco. O golfe só começou a ter expressão significativa fora das fronteiras da Escócia na segunda metade do século XIX – Inglaterra passou de 12 campos em 1880 para 50 em 1887 e 1000 em 1914 –, mantendo-se circunscrito a regiões de clima húmido, precipitação distribuída homogeneamente ao longo do ano e Verões frescos.

“Os rapazes MacDonald jogando golfe”, por Jeremiah Davison (c.1695-c.1750)

A moda do golfe implantou-se rapidamente nos EUA e em 1900 já existiam no país cerca de 1000 clubes de golfe, quase exclusivamente em áreas de clima adequadamente húmido. Depois, com a expansão do golfe para zonas áridas dos EUA (Califórnia, Nevada, Arizona, Utah, Novo México), Austrália e África do Sul, houve que encontrar espécies de relva adaptadas a climas mais quentes e secos e começar a regar generosamente os greens e a aplicar quantidades colossais de fertilizantes e pesticidas.

De perversão em perversão, chegou-se ao ponto de o mais importante centro da indústria do golfe nos EUA (quiçá do mundo) ser hoje o Coachella Valley, na Califórnia, que faz parte do Deserto do Colorado, embora o vale também possa ser considerado como uma ramificação noroeste do Deserto de Sonora (sim, o dos saguaros). O clima uniformemente quente e seco de Coachella Valley explica que este se tenha também convertido no local favorito (a par da Florida) para as classes possidentes americanas gozarem a reforma ou passarem o Inverno, o que faz com que a população de Palm Springs, o principal núcleo urbano do vale, triplique entre Novembro e Março. O Coachella Valley alberga hoje 125 campos de golfe (14% do total de campos da Califórnia), apesar de registar uma precipitação média anual de apenas 117 mm e de as temperaturas durante o Verão rondarem os 40-44º C durante o dia. Uma vez que o consumo médio de água num campo de golfe na Califórnia ronda os 400.000 m3/ano, pode inferir-se que este será bem maior no particularmente árido Coachella Valley. O formidável consumo de água da “Meca do Golfe” é alimentado em boa parte por águas desviadas do Rio Colorado, o que ajuda a perceber por que é hoje o rio uma sombra do que foi.

Ironwood Country Club, Coachella Valley

Entretanto, na Europa, também os países da orla do Mediterrâneo foram invadidos por campos de golfe. No território português, a única região com clima apropriado a campos de golfe seriam os Açores, mas a indústria turística tem vindo a criá-los sobretudo em volta de Lisboa e no Algarve. Os empresários turísticos, muitas vezes tendo como aliados autarcas – como Macário Correia, que, após ter sido secretário de Estado do Ambiente, se converteu em paladino dos campos de golfe, argumentando que estes não eram mais do que “pastagens melhoradas” – têm pugnado para fazer do Algarve o Coachella Valley da Europa, um Éden para reformados estrangeiros abastados, em que os “indígenas” desempenham os papéis de “caddies”, jardineiros, empregados de bar e pessoal da limpeza.

Dado que a maioria dos utilizadores dos campos de golfe são estrangeiros, no Algarve o campo de golfe vem invariavelmente associada uma componente residencial, adequadamente guarnecida de piscinas, jacuzzis, relvados, jardins e outros sorvedouros de água. Quiçá interpretando o alastramento dos greens pela paisagem como sinal de progresso civilizacional, também as autarquias têm feito proliferar os relvados nos espaços públicos, cuidando de os regar nas horas de maior calor. Talvez influenciados por estes exemplos, também os particulares se têm empenhado em dotar as suas moradias de verdejantes relvados, sinalizando a quem os veja que o proprietário é suficientemente abastado para contrariar a natureza (ver capítulo “Um relvado no deserto” em Urinar no duche não adia o fim do mundo).

O inimigo: o abacate

Uma vez que 1) os problemas ambientais são extremamente complexos e 2) ninguém quer assumir que tem a sua quota-parte de responsabilidade neles, é necessário encontrar um bode expiatório, que 1) seja fácil de identificar e susceptível de protagonizar uma “narrativa” maniqueísta e simplória e que 2) carregue com as culpas de todos os intervenientes e permita, assim, que não se mexa nas causas estruturais. Em Portugal, escolheu-se para vilão da “tragédia dos fogos florestais” o eucalipto e para vilão da “tragédia da seca” o abacateiro. O primeiro, pela forma como tem sido explorado e pela vastíssima área que ocupa, criou, com efeito, uma estrutura “florestal” aberrante, mas o pinheiro-bravo, se for explorado em regime análogo, não é menos obnóxio; já o alarido em torno do abacateiro parece ter escasso fundamento.

Esta árvore de fruto é acusada de ser “não ser nossa” e de ser ávida de água, mas talvez o verdadeiro motivo da hostilidade que suscita seja uma embirração (não confessada) por o fruto ser o centro de mais uma tola voga alimentar e de os “socialites”, os “influencers” (e os que aspiram a ser uma ou outra coisa) inundarem o Instagram e o Facebook com fotos das tostas de abacate, saladas de abacate, smoothies de abacate, panquecas de abacate e bruschette de abacate que ingerem ao longo do dia e que pretendem sugerir que se leva uma vida modernaça, desafogada, saudável, descontraída, “trendy” e, acima de tudo, invejável.

O abacate, nas mais diversas preparações e apresentações, tornou-se numa vedeta da “food porn” que grassa nas redes (ditas) sociais

É verdade que, como indica o seu nome científico, o abacateiro (Persea americana) não é “nosso”, pois provém do Sul do México (ver De onde vêm os nomes do que comemos? Parte 1: Dos limões-pomposos às pêras-jacaré), mas esta forma de xenofobia frutícola é pueril e revela desconhecimento: a esmagadora maioria das “nossas” árvores de fruto são exóticas, já que foram trazidas de paragens distantes, como a Anatólia, o Cáucaso, as montanhas da Ásia Central, a China, a Índia e a América Central e do Sul. Se nos restringíssemos a comer frutos “nossos”, ficaríamos talvez reduzidos ao medronho e à azeitona.

Embora o consumo de água das culturas hortofrutícolas dependa do clima, do tipo de solo e das práticas agrícolas (especialmente do método de irrigação adoptado), pode considerar-se que, em clima mediterrânico, o abacateiro tem exigências de água similares (ou até ligeiramente inferiores) aos dos “nossos” citrinos. Tomando como referência o Algarve, que é a região do país onde o cultivo do abacateiro mais se tem expandido (e mais polémica tem suscitado), os consumos anuais de água para as espécies frutícolas mais comuns são os seguintes (de acordo com o documento Rega das culturas/Uso eficiente de água, da Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Algarve):

  • Nogueiras 8600-9000 m3/ha
  • Amendoeiras 7500-7900
  • Diospireiros 6800-7200
  • Citrinos 6400-7600
  • Romãzeiras 6300-6500
  • Abacateiros 5600-6600
  • Figueiras 5500-5800

Os consumos médios de água apurados na Califórnia para o abacateiro, embora sendo genericamente mais elevados (dado que grande parte da Califórnia é mais árida e quente do que o Algarve), revelam uma hierarquia e proporção de consumos entre espécies semelhante.

Convém também colocar a “invasão de Portugal pelo abacateiro” em contexto: em 2019, existiam em Portugal c.2000 hectares de abacateiros, dos quais 1815 no Algarve, repartidos por 568 explorações agrícolas, o que dá uma dimensão média de 3.2 hectares por exploração e desmente a ideia de que o abacate está associado a poderosos gigantes da agro-indústria (no Alentejo existiam duas explorações totalizando 162 hectares). Admitindo que esta área será capaz de produzir 10.000-15.000 toneladas de fruto, Portugal figuraria no ranking de produtores por volta do 33.º ou 34.º lugar. Espanha, que foi em 2019 o 16.º maior produtor mundial (e o primeiro da Europa), com c.100.000 toneladas (1% da produção mundial), dispunha em 2020 de 16.000 hectares de abacateiros, 12.400 dos quais na Andaluzia. A produção mundial de abacate está em expansão acelerada, arrastada pelo “hype” que o endeusa como “super-alimento”, tendo sido em 2020 de 8 milhões de toneladas, 40% acima do valor de 2016; a produção portuguesa representará, numa estimativa generosa, 0.2% da produção mundial.

Neste mapa da distribuição da produção de abacate no mundo em 2020, Portugal não é contabilizado, mas deveria entrar na categoria 10.000-25.000 toneladas

É provável que estes factos nada façam por atenuar a aversão ao abacateiro fomentada pelo “ambientalismo-tofu”, uma difusa nuvem ideológica com afinidades com a “esquerda-caviar”, e que como esta, tem forte implantação nas classes média e média-alta das zonas urbanas e costuma ser favoravelmente tratada pela comunicação social. O ambientalismo-tofu caracteriza-se 1) pela rejeição liminar da agricultura intensiva (e até da agricultura de regadio), 2) pela desconfiança em relação às explorações agrícolas com dimensão superior à da pitoresca horta familiar (uma versão moderna e pseudo-ecológica da animosidade contra o kulak promovido pelo stalinismo), 3) pela execração do Grande Capital (e, no limite, de qualquer actividade económica que gere lucro), 4) pela concepção “disneyficada” e ingénua dos mundos rural e natural e 5) por uma robusta ignorância nos domínios da biologia, ecologia e agronomia.

Pauta-se também por uma convicção de superioridade moral, que habilita os ambientalistas-tofu não só a tentar impingir, em tom paternalista, as suas escolhas alimentares ao resto da população, como a tentar impor aos agricultores o que deverão plantar e como o deverão fazer (sempre em prol da salvação do planeta). Não lhes ocorre que, no Sul de Portugal, a agricultura de sequeiro tradicional em regime de minifúndio dificilmente permite rendimentos acima do patamar da subsistência e que as alterações climáticas ameaçam torná-la ainda mais inviável; que o regadio permite obter produtividades por hectare várias vezes superiores ao sequeiro; que um hectare de abacateiros permite hoje ao agricultor português obter receitas várias vezes superiores a um hectare de citrinos (sendo as despesas similares); e que os produtos das micro-explorações familiares, provenientes de variedades “tradicionais” e cultivados sem intervenção de maquinaria ou “químicos”, podem ser mais saborosos, mas também podem ter uma pegada ecológica superior à dos produtos análogos da agro-indústria (ver capítulo “Poupar no farelo, gastar na farinha” em Como a pequena Greta salvou o planeta).

O que é paradoxal na campanha anti-abacateiro é que, ao pretender banir o cultivo do abacateiro no país, só deixa aos portugueses apreciadores de abacate – e apenas aos mais abastados – a alternativa de adquirir os que são importados por via aérea a partir do México, Brasil ou República Dominicana, o que seria uma grave infracção ao mandamento “consumir local”, um dos mais zelosamente promovidos pelo ambientalismo-tofu.

Em 1927 foi dado um passo significativo na conquista do mundo pelo abacate, com a primeira remessa do fruto por via aérea, entre o aeroporto de Los Angeles e a Exposição Nacional Canadiana, em Toronto

Mas talvez o que o que se pretenda é que o abacate, a manga, a papaia, a anona e outras frutas “exóticas” sejam banidas da dieta dos portugueses – no ambientalismo-tofu há uma facção puritana e ascética que se dedica ao escrutínio da vida dos cidadãos em busca de actos pecaminosos e cujo objectivo último é a regressão para um modo de vida medieval, minimalista, tacanho e acabrunhado, obcecado com a virtude (carbónica) e assombrado pela culpa (“Fazes ideia de quantos litros de água são necessários para produzir essa barra de chocolate que acabaste de comer?”). Tal como acontece com as Religiões do Livro, a facção fundamentalista do ambientalismo-tofu dedica particular atenção à codificação da dieta alimentar, mas enquanto judaísmo, cristianismo e islamismo possuem um corpo fixo de interdições e regras, o ambientalismo-tofu todas as semanas desencanta um pecado novo, pelo que mesmo quem está empenhado em levar um vida virtuosa pode descobrir-se em pecado.

“A Queda do Homem” (c.1628-28), por Peter Paul Rubens, a partir de Tiziano Vecelli. O Fruto Proibido tem sido identificado, ao longo dos séculos, com a maçã, o figo ou a romã, mas no século XXI descobriu-se que a causa da Queda do Homem foi, afinal, o abacate

É desejável que a monocultura seja desincentivada, que o uso da água seja racionalizado, que os recursos hídricos sejam judiciosamente alocados aos diversos usos, que a aplicação de fertilizantes e pesticidas seja minimizada e que a preparação dos terrenos e as práticas agrícolas sejam o menos lesivas possível para a vida selvagem, minimizem a erosão e assegurem a fertilidade do solo no longo prazo. Mas também é preciso compreender que 1) não é possível alimentar 8000 milhões de pessoas sem recurso a regadio e sem algum grau de intensividade e que 2) o “exótico” abacateiro não tem impactes sobre o ambiente e os recursos naturais substancialmente diferentes das árvores de fruto “tradicionais”.

As contas da água

Considera-se, em geral, que o requisito mínimo de água é de 50 litros por pessoa e por dia (18 m3/ano), considerando água para beber, preparação de alimentos, higiene pessoal, lavagem de roupas e limpeza. Na Europa, os consumos são bem mais elevados e são genericamente mais altos nos países da orla mediterrânica – 52 em Espanha, 98 em Chipre, 107 na Grécia – e mais baixos no centro e norte do continente – 31 na Bélgica, 34 na Polónia, 42 na Dinamarca, 43 na Alemanha (dados de 2020).

Fonte Wallace, Paris, 1911. O milionário e filantropo Richard Wallace decidiu dotar Paris, cidade onde tinha residência, de uma rede de fontanários que servisse de alternativa à água de qualidade duvidosa oferecida pelos vendedores ambulantes e o modelo de fontanário por si patrocinado e desenhado pelo seu amigo Charles-Auguste Lebourg, conhecidas como Fontes Wallace, tornaram-se numa imagem emblemática da capital francesa

O consumo de água global tem aumentado a uma taxa anual de 2.2% nos últimos 60 anos, em resultado do efeito combinado do aumento da população e do aumento do consumo per capita. A população portuguesa tem-se mantido relativamente estável nas décadas mais recentes mas o consumo per capita tem vindo a aumentar: era, segundo a Pordata, de 52 m3/ano em 1995 (o Eurostat indica 35 m3/ano) e foi de 65 m3/ano em 2019. Estes valores dizem respeito apenas ao consumo doméstico, havendo que considerar também o consumo na agricultura, indústria e serviços.

A agricultura representa em Portugal 75% do consumo de água, cabendo ao consumo doméstico 20% e à indústria 5%. A fracção destinada a consumo agrícola fica acima da média mundial (69%) e muito acima da média da União Europeia (24%), o que poderá dar ensejo a atacar a agricultura portuguesa como dissipadora de recursos. O uso da água pelos agricultores portugueses estará longe de ser um modelo de eficácia e racionalidade, mas é preciso considerar que, ao contrário do que se passa na Europa Central e do Norte, obter uma produtividade agrícola competitiva em clima mediterrânico requer rega frequente, pelo que Espanha e Grécia, com condições edafo-climáticas similares, têm proporção de consumo de água na agricultura também elevada e até superior à de Portugal (79% e 81%, respectivamente).

Mapa da percentagem dos terrenos agrícolas no mundo que são irrigados, dados de 2015. Note-se que em países de grande dimensão e que abrangem diversos tipos de clima, como os EUA, a média oculta enormes discrepâncias entre regiões

Na comparação entre os consumos dos diferentes sectores, há ainda que considerar que a maior parte do consumo agrícola diz respeito a água que seria imprópria para consumo humano. Seja como for, os dados de consumo agrícola em Portugal devem ser encarados como estimativas grosseiras, já que 75% das explorações agrícolas não estão dotada de contadores, sendo muita da água extraída, sem contabilização, de charcas e pequenas represas particulares.

Os países da Europa meridional enfrentam actualmente um triplo problema: 1) têm elevados consumos de água nos sectores urbano, agrícola e turístico, 2) possuem menores disponibilidades de água e 3) prevê-se que estas sejam diminuídas em resultado das alterações climáticas. Portugal encontra-se na posição privilegiada de 50% dos seus recursos hídricos renováveis provirem de Espanha (na Europa, Hungria e a Holanda estão ainda em posição mais ainda mais favorável, ao receberem, respectivamente, 93 e 88% dos recursos hídricos de países vizinhos), mas uma vez que Espanha se defronta com o mesmo triplo problema que Portugal e tem em curso ou planeadas operações de transvase entre bacias hidrográficas, é previsível que os caudais nos rios provenientes de Espanha decresçam acentuadamente.

O Guadiana junto à povoação abandonada de Calatrava la Vieja, na comarca de Campo de Calatrava, na comunidade autónoma de Castilla-La Mancha. Nesta região da bacia hidrográfica do Guadiana, a média histórica de precipitação anual é de apenas 350 mm – mais baixa do que em qualquer região de Portugal

A solução: A dessalinização

Tal como é reconfortante poder resumir o novelo da escassez de recursos hídricos a meia dúzia de inimigos “externos” claramente identificados e que lavam as nossas culpas, é também tentador depositar a sua resolução numa soluções tecnológica inovadora que nos dispense de fazer alterações nos nossos padrões de consumo e no nosso estilo de vida.

A solução miraculosa mais entusiasticamente promovida pelos opinadores portugueses (profissionais e amadores) é a dessalinização. A tecnologia para o efeito – quer recorrendo a processos térmicos (através da destilação) quer a osmose reversa (hoje a mais empregue) – tem provas dadas em 16.000 centrais espalhadas pelo mundo, que produzem 100 milhões de m3 por dia. Destilação e osmose reversa têm o inconveniente de produzir uma salmoura a que é preciso dar destino (e que poderá ter efeitos negativos pontuais nos ecossistemas costeiros) e, sobretudo, de consumir grande quantidade de energia. Este apetite por energia explica que 71% das centrais de dessalinização se situem em países ricos e que os maiores utilizadores do processo sejam as petro-monarquias do Golfo, cujos recursos hídricos são irrisórios mas onde o petróleo e o gás natural abundam – a Arábia Saudita representava em 2021 22% da produção mundial de água dessalinizada e a maior central de dessalinização do mundo fica em Jebel Ali, nos Emiratos Árabes Unidos.

Uma das muitas centrais de dessalinização da Arábia Saudita

Também Israel, quase tão desprovido de recursos hídricos quanto a Península Arábica e com perspectivas de quebra na precipitação de 10-15% em meados do século XXI, em resultado das alterações climáticas, recorre maciçamente à dessalinização, que assegura metade do consumo de água no país. Em Israel, a dessalinização está integrada num dos mais avançados e abrangentes sistemas de gestão de recursos hídricos do mundo, que inclui a reciclagem para uso na irrigação de 90% das águas residuais, e que, em breve, permitirá ao país gerar um superavit de água que será exportado para países vizinhos (embora, ao mesmo tempo, na Faixa de Gaza, apenas um em cada dez pessoas tenham acesso a água potável – a água é uma arma que os israelitas têm usado com cínica eficácia no conflito com os palestinos).

A dessalinização é também uma das principais fontes de água potável em micro-estados insulares e nalgumas regiões da Austrália e EUA. 17% da água consumida pelos dois milhões de habitantes da área metropolitana de Perth, na Austrália Oriental, cujo clima mediterrânico proporciona 730 mm de chuva por ano (em Portugal a média é 756 mm), provém de uma central de dessalinização que produz anualmente 45.000 m3 de água e consome 2/3 da energia produzida pelas 48 turbinas do parque eólico de Emu Downs. Outra central de dessalinização, em Binningup, fornece 20-30% da água consumida na área metropolitana de Perth, recorrendo, também ela, apenas a energia renovável.

A central de dessalinização de Binningup

Será Perth um modelo a seguir por Portugal? A Austrália é rica em urânio (46% das reservas mundiais), carvão (possui 6% das reservas mundiais e é o maior exportador mundial) e gás natural (2% das reservas mundiais) e, embora importe petróleo, é, indubitavelmente, um exportador líquido de energia; para mais, embora esteja ainda atrasada nas energias renováveis (que representam apenas 7% da produção eléctrica e 5% do consumo de energia), foi contemplada com vastíssimos territórios desabitados e uma costa com uma extensão de 36.000 Km, onde é possível instalar parques eólicos e solares com conflitos mínimos com outros usos. Não é, de todo, o caso de Portugal.

É preciso ter cautela ao apontar as fontes renováveis como resposta a todas as necessidades de energia eléctrica em Portugal. Em 2021, as fontes renováveis representaram 59% da geração eléctrica no país (26% eólica, 23% hídrica, 7% biomassa, 3% solar), mas não pode esperar-se grande contributo da energia hídrica nos anos secos, que se tornarão cada vez mais frequentes – e é nos anos secos que será necessário dessalinizar maiores volumes de água.

Não podemos esquecer-nos de que a transição energética prevista no sector dos transportes fará com que os veículos com motor de combustão interna sejam progressivamente substituídos por veículos eléctricos. A Agência Europeia de Ambiente estima que a fracção do consumo de energia eléctrica usado no recarregamento de veículos, que era de 0.03% em 2014, seja de 4-5% em 2030 (assumindo que a electrificação do parque automóvel europeu será, nessa data, de 30%) e de 9.5% em 2050 (assumindo que a electrificação do parque automóvel europeu será, nessa data, de 80%), o que requererá uma produção adicional de electricidade de 150 GW.

A União Europeia prevê a interdição da venda de veículos com motor de combustão interna a partir de 2035

Por outro lado, é necessário ponderar que a descarbonização em curso no sector da produção de electricidade prevê a progressiva desactivação das centrais que queimam combustíveis fósseis, e ainda que as alterações climáticas implicarão o recurso cada vez maior à climatização. Serão as energias renováveis – estruturalmente inconstantes – capazes de, em 2050, ano em que a União Europeia prevê atingir a neutralidade carbónica, alimentar na íntegra e com segurança uma rede eléctrica onde estarão “pendurados”, para lá dos consumos presentes, milhões de veículos, milhões de aparelhos de ar condicionado, centrais de dessalinização e ainda o número crescente de gadgets electrónicos da domótica e da Internet das Coisas que começam a invadir o nosso quotidiano?

Mas, bem antes de termos de preocupar-nos com a viabilidade do recurso maciço à dessalinização num futuro assombrado por blackouts, há que pôr outra questão, bem mais premente e prosaica: de que serve investir em centrais de dessalinização se a água produzida por estas for injectada numa rede de distribuição que tem, em média, perdas de 25%, que podem atingir 80% nalguns concelhos? O volume de água que seria fornecido por um dispendioso sistema de dessalinização poderia ser obtido, por uma fracção do custo, através da reparação e renovação da rede já existente (ver Mais investimento na rede de abastecimento pouparia água para fornecer 865.000 pessoas), que, na verdade, só chegou ao estado lastimoso actual porque a água ainda é demasiado barata e é vista como um recurso ilimitado.

A situação dos sistemas de rega agrícola não é muito diferente – por exemplo, aquele que é alimentado pela barragem de Santa Clara, no Rio Mira, e que, ao longo de 500 Km de condutas, irriga (potencialmente) 12.000 hectares nos concelhos de Odemira e Aljezur, tem perdas de 40%, em resultado da evaporação e de um modelo de gestão anacrónico e pouco eficaz. Note-se que estas perdas colossais não decorrem de rupturas ou avarias, 40% de perdas é a “linha de base” de operação do sistema, uma ineficiência que se explica por o sistema de Santa Clara, tal como boa parte dos empreendimentos hidro-agrícolas do país, ter sido construído há muitas décadas, com base em conceitos e tecnologias que se tornaram completamente obsoletos.

Albufeira da barragem de Santa Clara

É possível que dentro de algumas décadas, a concretizarem-se as preocupantes previsões para a evolução do clima da Península Ibérica, não nos reste alternativa senão recorrer maciçamente a centrais de dessalinização, mas antes de se chegar a esse ponto, há muitas medidas pragmáticas, expeditas e com baixo custo energético que podem ser tomadas: além das acima referidas, acabar com os relvados nos espaços públicos e fomentar a criação de espaços verdes adaptados ao clima mediterrânico; interditar a criação de novos campos de golfe e obrigar os já existentes a usar água residual reciclada; reaproveitar as águas residuais urbanas para irrigação, lavagem de ruas, veículos e instalações e recarga de aquíferos; criar pequenas barragens nas zonas rurais e bacias de infiltração nas zonas urbanas, de forma a reduzir a escorrência superficial e recarregar aquíferos; tornar os tarifários municipais ainda mais progressivos, de forma a desincentivar os particulares de atestar piscinas e regar copiosamente jardins e relvados com água da rede pública; assegurar que espelhos de água e fontes ornamentais no espaço urbano funcionam em circuito fechado. Além, claro, de tentar inculcar nos consumidores domésticos a ideia de que a água deve ser usado com parcimónia.

A maior parte destas medidas não envolve tecnologias revolucionárias e são propostas há décadas pelos especialistas, sem encontrar receptividade das autoridades competentes nem despertar a atenção dos media. A verdade é que estes só despertam para o problema dos recursos hídricos em ano de seca excepcional, ocasião em que relatam o panorama desolador nos campos e nas albufeiras, se alvoroçam por “os furos hertzianos privados [estarem] com falta de água” (sic, in Público de 16.08.2022), prodigalizam conselhos para os cidadãos pouparem água nas suas rotinas quotidianas e denunciam as percentagens inadmissíveis das perdas de água nas redes de distribuição. Todavia, nada disto parece ser interiorizado por quem escreve, por quem lê e por quem decide e bastará que o ano seguinte registe precipitação regular para tudo ser lixiviado da memória. Até que venha um novo ano de seca e as imagens de leitos de rio ressequidos regressem em lúgubre cortejo, as recomendações de frugalidade no consumo sejam reproduzidas e as mesmas percentagens relativas a perdas nas redes sejam noticiadas com estardalhaço, sendo acolhidas pelo público com pasmo e indignação, como se as ouvisse pela primeira vez.

Dança da chuva: Giga do Ministro

Se os media e as massas parecem irremediavelmente condenados a uma amnésia permanente e abrangente (que só deixa de fora as competições de ludopédio), o Estado português continua, sobretudo no que respeita a políticas de ambiente, manietado pela inércia, pela incapacidade para pensar no longo prazo e pela procrastinação das decisões importantes (embora seja lesto a adoptar medidas “folclóricas” ou que lhe gerem receita fiscal adicional) e a principal competência que aperfeiçoou em todos estes anos foi a de ocultar a sua descorçoante inoperância atrás de uma cortina de tagarelice entorpecedora.

O discurso do Ministro do Ambiente e da Acção Climática, Duarte Cordeiro, a 27 de Junho de 2022, em Lisboa, na abertura do Simpósio de Alto Nível sobre Água (inserido na Conferência dos Oceanos da ONU), foi uma demonstração exemplar dessa “competência”.

Fontanário polivalente em Toronto, concebido para dessedentar simultaneamente alimárias (à esquerda) e pessoas (à direita). Este tipo de fontanário, que proliferou em Toronto na viragem dos séculos XIX/XX, foi depois removido por ser considerado um risco para a saúde (das pessoas)

Para começar, revelou-nos Duarte Cordeiro que “em Portugal, a seca não é conjuntural, é estrutural”, adjectivo que serve, no português do século XXI, para alijar toda e qualquer responsabilidade que se tente “colar” ao Governo ou ao Estado e carrega consigo uma aura inelutável, fatídica, que costuma ser bem aceite num país cuja música nacional é o fado. Se é estrutural, não pode fazer-se nada, apenas nos resta a resignação, até porque um ministro que tenha a temeridade de tentar resolver um problema estrutural descobrirá, muito rapidamente, que tem pela frente uma teia de interesses inamovíveis e ficará com o lugar em risco.

Prosseguiu Duarte Cordeiro: “A água e a sua gestão exigem uma agenda política clara, não de uma forma circunstancial, mas permanente, exige reflexão, concertação e negociação […] Num cenário de emergência climática é necessário melhorar a governança deste recurso a nível local, nacional, transnacional […] Este simpósio é uma oportunidade única para reflectir sobre estas questões cruciais do ciclo da água”. Em Portugal pode escassear a água nas torneiras e estar em baixo o nível dos reservatórios, mas nunca faltarão simpósios de alto nível e também comissões, gabinetes, grupos de trabalho e observatórios, bem fornidos de peritos, académicos e investigadores, versados em “reflexão, concertação e negociação” e habituados a analisar as incidências “a nível local, nacional, transnacional”, mas cujas doutas reflexões, recomendações e propostas (no caso de serem produzidas, o que não é, de todo, garantido) tendem a ser ignoradas pelo Governo que as solicitou (e a ser definitivamente sepultadas pelo Governo que lhe suceder, pois, em Portugal, nenhum Governo que se preze quererá partir do trabalho realizado durante a governação de outro partido).

No remate de uma intervenção feita exclusivamente de lugares-comuns e inanidades, Duarte Cordeiro tentou injectar uma nota de optimismo: “A água é essencial, a água é escassa, a água é preciosa, temos de a tratar mais e melhor, é esse esforço que se exige, é esse esforço que temos feito, é esse esforço que saudamos”. Note-se: ainda nenhum resultado positivo foi obtido – pelo contrário, as necessidades de água do país aumentam e os recursos hídricos minguam –, talvez nem sequer uma medida “estrutural” tenha sido tomada, mas o ministro já saúda os esforços empreendidos, como se os problemas se resolvessem automaticamente no momento em que se reconhece a sua existência e se anuncia a vontade do Governo em fazer-lhes frente.

Talvez por ser o único país do mundo cujo dia nacional está vinculado não a uma proclamação de independência, à coroação de um monarca, ao derrube de um regime visto como iníquo ou ao dia do santo patrono no calendário litúrgico, mas à morte de um poeta, os governantes portugueses depositam tal fé nas palavras que crêem que elas podem, desde que proferidas em tom grave e assertivo, sobrepor-se aos factos e erguer uma realidade alternativa que se sustente, pelo menos, até ao fim do seu mandato.

Dança da chuva entre os índios Mandan, por George Caitlin, c.1837-39

Dança da chuva: Minueto do Comendador

Outro eloquente testemunho sobre a forma como temos sido governados e, em particular, da forma como os governantes entendem as alterações climáticas foi a entrevista a Luís Capoulas Santos, realizada pela Antena 1 e Jornal de Negócios, a 12 de Fevereiro de 2022. Capoulas Santos não é um governante qualquer, é a pessoa mais influente na política agrícola portuguesa do último quarto de século, pois foi Secretário de Estado da Agricultura em 1995-98, Ministro da Agricultura em 1998-2002 e 2015-19 e membro da Comissão de Agricultura do Parlamento Europeu e relator da Política Agrícola Comum no período em que foi eurodeputado, entre 2004-14; o país e o mundo parecem ter ficado reconhecidos pelos serviços prestados à agricultura e ao mundo rural por Capoulas Santos, uma vez que foi distinguido com a Grão-Cruz da Ordem do Mérito Agrícola pela República Portuguesa e com a Comenda do Mérito Agrícola pela República Francesa.

Quando confrontado com a seca que, já à data, afligia Portugal, declarou que “temos de relativizar o problema: há registos históricos de secas prolongadas, particularmente no Sul do país, desde o século XV-XVI, portanto não é um fenómeno novo. E os dados estatísticos revelam que, em cada ciclo de 10-13 anos, há normalmente um período de seca de dois, três ou até mais anos; no passado mais recente parece que esse ciclo tem vindo, ligeiramente, a encurtar-se. Mas não estamos confrontados com um fenómeno novo”. Saltou da relativização da seca que aflige todo o território português para a apresentação do “mega-reservatório” de Alqueva (uma obra em que esteve envolvido enquanto governante) como resposta adequada à ameaça de escassez de água e garantiu que aquele tem, “neste momento, disponibilidades hídricas que permitem garantir uma actividade normal na agricultura e no abastecimento às populações nos próximos três anos, mesmo que a seca persista”.

Barragem de Alqueva, vista de montante

Em seguida, retomou a relativização da seca, “um fenómeno da Natureza com o qual os portugueses e os agricultores estão confrontados desde sempre. Como sabe, a actividade agrícola é, talvez mais do que qualquer outra, uma actividade de elevado risco, precisamente porque é realizada a céu aberto e nós não podemos controlar as geadas, não podemos controlar os ciclones, não podemos controlar as secas, não podemos controlar as inundações. Nessa matéria, muito tem sido feito para combater a seca: fez-se o maior investimento público que alguma vez foi feito em Portugal […] Uma parte substancial do Alentejo terá os seus problemas resolvidos […] Nunca nenhum ser humano, nenhum poder político alguma vez conseguirá controlar os fenómenos da natureza […] Não há soluções mágicas para os evitar ou para eliminar a 100% os seus efeitos”.

Sempre em toada melíflua e tranquilizadora, mas muito firme, sublinhou que as colheitas deste ano não estavam ainda perdidas, uma vez que poderia ainda vir a chover o suficiente para as salvar e apoiou esta tese neste “facto”: “o período das chuvas no clima português normalmente ocorre numa primeira fase no Outono-Inverno, nos meses de Outubro-Novembro e depois numa segunda fase na Primavera, o povo diz até ‘Abril, águas mil’, a Primavera é o período mais chuvoso”.

Ora, como é evidente no gráfico abaixo, a precipitação em Portugal Continental concentra-se nos meses de Novembro a Fevereiro, com Outubro e Março a registar precipitação moderada e Abril, Maio e Setembro a quedar-se por valores modestos.

E já que estamos a confrontar afirmações de Capoulas Santos com factos, a tese das secas a “cada ciclo de 10-13 anos” não é corroborada pelo dados climatológicos – em Portugal, como no resto do mundo, a ocorrência de secas é recorrente, mas distribui-se aleatoriamente, não segue um padrão cíclico (caso contrário seria previsível). Por outro lado, a insistência de Capoulas Santos no facto (incontestável e incontestado) de a seca não ser um fenómeno novo é um pífio artifício retórico destinado a desviar a atenção do facto de a seca ser um fenómeno cada vez mais frequente, como pode depreender-se dos rankings dos anos hidrológicos com maior e menor precipitação em Portugal Continental:

Anos hidrológicos com menor precipitação (mm):

  • 2004/05 409.9
  • 2021/22 416.1 (provisório: o ano hidrológico só termina a 30 de Setembro)
  • 1944/45 469.5
  • 2008/09 541.4
  • 2011/12 554.1
  • 1980/81 572.1
  • 1998/99 582.6
  • 1991/92 590.9
  • 2007/08 610.9
  • 2016/17 621.6
  • 2018/19 635.7

Anos hidrológicos com maior precipitação (mm):

  • 1935/36 1583.7
  • 1965/66 1405.2
  • 1959/60 1380.9
  • 2000/01 1358.0
  • 1968/69 1342.1
  • 1955/56 1289.3
  • 1978/79 1287.8
  • 1940/41 1266.5
  • 1995/96 1253.3
  • 1963/64 1251.6

A seca de 2022 fez baixar o nível da albufeira do Alto Lindoso, deixando à vista a aldeia galega de Aceredo, junto à fronteira portuguesa

Uma velha anedota dos anos finais da União Soviética coloca num compartimento de comboio Lenin, Stalin e Brezhnev – a dada altura a composição detém-se no meio de nenhures, sem razão evidente, e Lenin ergue-se e diz que vai averiguar o que se passa. Regressa passado um quarto de hora, ao mesmo tempo que o comboio retoma a marcha, e explica que os maquinistas tinham entrado em greve mas que ele, através de um discurso galvanizador, os convencera de que, por justas que fossem as suas reivindicações, era um desígnio patriótico que o comboio chegasse ao destino dentro do horário. Decorridos alguns quilómetros, o comboio volta a parar e desta vez quem se propõe tomar o assunto em mãos é Stalin; o comboio retoma a marcha poucos minutos depois e Stalin regressa ao compartimento, elucidando que os maquinistas tinham voltado a apresentar reivindicações e que ele ordenara de imediato o seu fuzilamento e a requisição de alguém que desempenhasse as suas funções. Pouco depois, o comboio detém-se pela terceira vez e Brezhnev diz que, desta vez, será ele a tratar do assunto: ergue-se, fecha a cortina da janela do compartimento e anuncia: “Já estamos a mover-nos”.

Em Portugal, já estamos habituados a que a governação recorra sistematicamente ao método Brezhnev. Quando ocorre uma falha ou alguém alewrta para um problema potencial, logo um membro do Governo ou do partido que o sustenta se ergue lestamente para cerrar as cortinas: proclama com inabalável convicção que vivemos no melhor dos mundos, que não há motivo para os cidadãos se inquietarem, que os nossos mais robustos e lúcidos talentos tomaram todas as providências que era humanamente possível tomar e que, se alguns problemas persistem, é porque são “estruturais” e a sua resolução “exige reflexão, concertação e negociação” e não precipitação.

Ainda assim, é desconcertante ouvir, em 2022, alguém com o curriculum e as responsabilidades (pretéritas) de Capoulas Santos negar o fenómeno das alterações climáticas, minimizar a segunda seca mais grave que o país conheceu desde 1931, elogiar a sua própria actuação enquanto ministro e sustentar a sua argumentação não em factos mas em provérbios.

Anomalias na precipitação anual em Portugal Continental entre 1931 e 2019, tomando como referência a média 1971-2000

A ligeireza e displicência com que Capoulas Santos minimiza a seca e o discurso de água-chilra de Duarte Cordeiro são típicos de uma governação que vive no ambiente climatizado dos gabinetes de Lisboa e Bruxelas e é alheia à angústia de quem não sabe já como alimentar os seus animais ou vê a colheita perder-se. O facto de, na vox populi, pairar a suspeita de que a governação está minada pela corrupção, faz com que o combate à corrupção assuma papel de relevo no debate político (sendo mesmo o tema favorito dos partidos populistas), mas devemos interrogar-nos sobre se os malefícios resultantes da indiferença e alheamento dos governantes em relação aos governados não suplantarão largamente os malefícios da corrupção.

Percentagem do território de Portugal Continental nas classes de seca severa e extrema do PDSI (Palmer Drought Severity Index), entre 1941 e 2019

“Isto parece-lhe um deserto?”

A indiferença e alheamento das elites em relação às angústias, receios e aspirações da gente comum não se limita aos governantes, pois também os grandes empresários vivem numa bolha de privilégio e exclusividade que fomenta a sobranceria e a prepotência. Estão habituados a ter razão e a não ser contrariados (já que se rodeiam exclusivamente de gente aquiescente) e a lograr os seus intentos e satisfazer os seus caprichos, e o seu poder tem vindo a crescer desmedidamente nas últimas décadas, sobrepondo-se por vezes ao dos governantes. Quando, na alocação de recursos hídricos escassos, o interesse público colide com os interesses dos grandes empresários da indústria, da agricultura ou do turismo, os segundos, alegando estar a criar emprego e riqueza, ficam quase sempre com a parte de leão e o interesse público e as comunidades locais com as sobras, se as houver.

Tome-se como exemplo a Tesla Gigafactory Berlin-Brandenburg, em Grünheide, Alemanha, uma fábrica de automóveis eléctricos cujos primeiros exemplares foram entregues em Março passado e que se prevê que produza 280.000 veículos em 2023 e atinja uma “velocidade de cruzeiro” de meio milhão de veículos/ano em 2025.

Tão volumosa produção poderá requerer, quando a fábrica estiver a funcionar em pleno, até 3.3 milhões de m3 de água por ano e gerar quantidade proporcional de águas residuais, o que causou inquietação na comunidade local, por 1) se tratar de uma das regiões menos pluviosas da Alemanha (515 mm/ano, apenas mais 7 mm do que em Faro); 2) a região ser pouco dotada de aquíferos subterrâneos e os níveis destes estarem em queda desde o início da década de 1980; 3) existir risco de contaminação das águas superficiais e subterrâneas que abastecem a região de Berlim (o que é potenciado por o plano da Tesla Gigafactory incluir uma unidade de fabrico de baterias); e 4) a aprovação da Tesla Gigafactory pelas autoridades ter sido precipitada e ter atropelado os trâmites legais, ficando a construção concluída antes de ter sido elaborado o necessário estudo de impacte ambiental.

Se os receios e reservas da comunidade local e dos ambientalistas e das entidades responsáveis pela investigação e defesa do ambiente e vida selvagem merecem consideração, no outro prato da balança é preciso colocar os numerosos postos de trabalho altamente qualificado, o efeito de indução na economia da região, com o expectável florescimento de fabricantes de componente automóveis, e a perspectiva de a produção em massa de veículos eléctricos ser um meio para a promoção da mobilidade eléctrica e (supostamente) para a transição para uma sociedade descarbonizada e sustentável. A conciliação destes interesses deveria ser alvo de ponderação e negociação, mas as autoridades alemãs, deslumbradas com a perspectiva de um “giga-investimento”, aplanaram o caminho para a toda-poderosa Tesla.

Quando, em Agosto de 2021, Elon Musk, o auto-proclamado Tecno-King da Tesla, foi confrontado, numa visita à fábrica de Grünheide, então ainda em construção, por uma jornalista que lhe perguntou o que tinha a dizer perante as acusações de que a Tesla estava a roubar água à comunidade local, Musk, em vez de rsponder com factos e argumentos racionais, deu largas às suas conhecidas facetas de bully e histrião e ridicularizou a jornalista: “Esta região tem tanta água!”, retorquiu, numa casquinada, como se a questão só pudesse ter sido formulada por uma completa idiota. Prosseguiu, sem conseguir conter o riso e o escárnio, “Olhe à sua volta! Está completamente enganada, aqui há água por todo o lado! Isto parece-lhe um deserto?”, e rematou o seu número grotesco com “É ridículo!”.

[Excerto do encontro de Elon Musk com jornalistas, Grünheide, Agosto de 2021: o trecho pertinente começa nos 0’30:]

A forma como Elon Musk encara o conceito de escassez de água é típico da atitude ignara e arrogante do capitalismo predador e da mentalidade dos desbravadores do Oeste Selvagem, que partem do princípio de que os recursos naturais são ilimitados e foram colocados no mundo para serem apropriados pelos que forem mais espertalhões e atrevidos e tiverem advogados mais astutos e expeditos ao seu serviço. Ao contrário dos “baron robbers” de outras eras, que assumiam sem rebuço ser movidos pela ganância e tinham pelas questões ambientais o mais profundo desprezo, Musk tem apresentado a Tesla como um projecto altruísta e nobre, que irá salvar o planeta, ao evitar que o sector dos transportes continue a queimar quantidades colossais de combustíveis fósseis. Porém, este episódio, aliás perfeitamente coerente com o historial de Musk enquanto empresário e troll do Twitter, mostra que o Tecno-Rei não só não está preocupado com a “salvação do planeta”, como é alheio ao conceito de bem comum, sobretudo se este se interpuser no caminhos dos seus planos megalómanos.

A quem pertence a água?

A questão do “bem comum” remete-nos para uma das falhas essenciais na alocação de recursos hídricos: a regulação do direito a extrair água do subsolo.

Em Portugal, o consumidor de água da rede pública não só paga a água que consome, como a paga de forma “progressiva”, uma vez que as tarifas estão desenhadas de forma a penalizar os escalões de consumo mais elevado. Os beneficiário dos sistemas de rega pagam a água que consomem à entidade que gere o sistema e estão, no caso de a água escassear, sujeitos a medidas de racionamento ou até ao corte total. Porém, quem consegue obter das entidades competentes uma licença para abrir um furo no seu terreno pode, na prática, dele extrair toda a água que queira e que o furo seja capaz de produzir. Ora, o furo poderá pertencer a quem é proprietário do terreno e pagou a sua abertura, mas a água dele extraída é, indubitavelmente, um bem público e, como tal, o seu custo para o dono do furo não pode ser meramente o da electricidade consumida pela respectiva bomba e a sua extracção não pode ser determinada apenas pelas necessidades e interesses do proprietário.

De pouco ou nada serve que, no Verão de 2022, para fazer face à seca, as autarquias portuguesas cortem na rega dos espaços verdes públicos e encerrem temporariamente as piscinas municipais, se prossegue a rega dos jardins particulares e continuam activas dezenas ou centenas de milhares de piscinas particulares, umas recorrendo a água da rede, outras a furos particulares. Este raciocínio é válido para qualquer outro uso da água: de pouco serve impor restrições aos consumidores ligados à rede municipal, se um grande número de particulares pode continuar a usar livremente a água dos seus furos e que, em última análise, provém do mesmo aquífero onde é captada a água da rede pública (ainda que algumas redes públicas recorram também – ou até exclusivamente – a águas superficiais).

O sonho da “vida no campo” não dispensa hoje piscina e relvado verdejante

Como agravante, há que considerar que, mesmo que fosse exercido controlo eficaz sobre os volumes de água extraídos dos furos licenciados, pouco pode ser feito em relação aos furos clandestinos, que são difíceis de rastrear. Por exemplo, na área do Parque Nacional de Doñana, uma zona húmida no delta do Guadalquivir que está classificada no Património da Humanidade da UNESCO, estima-se que existam cerca de mil furos clandestinos, uma vez que Doñana é também uma das principais áreas de agricultura intensiva de Espanha, com c.6000 hectares de estufas consagrados aos morangos, que são responsáveis por 60% da produção espanhola deste fruto,. Em resultado da excessiva extracção – legal e ilegal – de água do subsolo, os níveis freáticos em Doñana têm vindo a cair acentuadamente, fazendo com que a zona húmida se reduza e a vida selvagem esteja em declínio – em 2022, a contagem de anfíbios revelou uma quebra de 20 para 1 em relação ao ano transacto.

O entendimento dos direitos sobre as águas subterrâneas varia muito de país para país e até dentro de cada país (como é o caso dos diferentes estados dos EUA). No Reino Unido, por exemplo, nem sequer é requerida uma licença no caso de não se extrair do furo mais de 20 m3/dia. Nalguns países e estados, a legislação limita-se a fazer considerações bem-intencionadas e desconsoladoramente vagas e subjectivas sobre a necessidade de a água extraída ter um uso benéfico, ou de a exploração de um furo não ser prejudicial para furos próximos ou para o conjunto do aquífero.

Se as previsões dos climatologistas quanto às alterações climáticas estão correctas, a seca de 2022 não é, pelo menos na Península Ibérica e restante Europa meridional, uma situação episódica – é a realidade com que teremos de viver pelo menos durante todo este século, pois, mesmo que, num esforço improvável, fossemos capazes de atingir as metas de descarbonização anunciadas, os mecanismos responsáveis pelo aquecimento global têm uma grande inércia. E se os recursos hídricos, subterrâneos e superficiais, não forem integralmente colocados sob o controlo e gestão de uma agência reguladora estatal, prevalecerá a “tragédia dos comuns”: quando os utilizadores individuais têm acesso livre a um bem comum, tenderão a agir exclusivamente em função do seu próprio interesse e a explorá-lo desinibidamente, só se detendo quando o bem tiver sido completamente esgotado.