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[Este é o último de três artigos sobre a origem da terminologia do mundo do petróleo e a história das suas marcas comerciais mais conhecidas. A primeira parte pode ser lida aqui, a segunda aqui]

Shell

Durante os primeiros tempos da indústria petrolífera a principal região petrolífera da Eurásia foi Baku, no Cáucaso. Mas o afloramento de petróleo no arquipélago indonésio era conhecido há muito e em Aceh, no século XVI, os portugueses até já tinham sido recebidos com dispositivos incendiários de base oleosa.

A primeira perfuração holandesa na Indonésia, em 1871, não produziu resultados significativos, mas em 1883, o petróleo começou a jorrar em Pangkalan Brandan, na ilha de Sumatra e, para o explorar, foi fundada, em 1890, a N.V. Koninklijke Maatschappij tot Exploratie van Petroleum in Nederlandsche-Indië (Companhia Real Holandesa para a Exploração de Petróleo nas Índias Orientais Holandesas), cujo nome seria depois alterado para Koninklijke Nederlandse Petroleum Maatschappij (Companhia Real Holandesa de Petróleo). A principal rival desta era a britânica Shell Transport and Trading Company, fundada em 1897 por Marcus Samuel Jr. e o seu irmão Samuel Samuel (sic), e as duas empresas acabaram por concluir que em vez de se digladiarem fariam melhor em fundir-se: em 1907 nascia a Royal Dutch Shell.

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O nome e o logótipo da empresa dos irmãos Samuel era uma alusão ao primeiro negócio do seu pai, Marcus Samuel Sr.: este fizera fortuna como importador e exportador dos mais diversos produtos, mas começara, modestamente, a comprar artigos exóticos aos marinheiros que desembarcavam em Londres e a revendê-los a coleccionadores – e o artigo que, nessa altura, tinha mais procura eram as conchas. O vínculo à conchas ficou também expresso nos nomes – Murex, Conch, Clam, Cowrie – com que foram baptizados os primeiros petroleiros da Shell Transport and Trading Company.

Doca da Royal Dutch Shell em Tarakan, Bornéu, nas Índias Orientais Holandesas, c.1925

A Royal Dutch Shell tornou-se num protagonista de escala global, sobretudo depois de adquirir, em 1912, a parte da família Rothschild no petróleo de Baku, a que seguiram campos de petróleo na Roménia, que emergira como a principal região petrolífera da Europa. A I Guerra Mundial reforçaria a posição da Shell, cujo petróleo foi essencial para a operacionalidade do Corpo Expedicionário Britânico em França e para a Royal Navy, que, por iniciativa de Winston Churchill, então Lord do Almirantado, fizera a conversão do tradicional carvão para os derivados de petróleo como combustível dos navios de guerra britânicos. Em 1919, os interesses da Shell alargaram-se ao México, com a aquisição da Compañía Mexicana de Petróleo El Águila SA, sendo esse ramo mexicano baptizado em 1921 como Shell-Mex.

No século XXI, a Royal Dutch Shell é, no ramo dos petróleos, a 5.ª maior empresa do mundo e a maior da Europa.

BP

Em 1901, o shah Mozaffar al-Din, que estava falido e precisava de dinheiro para sustentar o seu luxuoso trem de vida, vendeu, por uma quantia modesta, a concessão da exploração de petróleo na Pérsia ao milionário britânico William Knox D’Arcy. Este contratou os serviços do engenheiro Charles Reynolds, que liderou uma longa e árdua campanha de prospecções, que enfrentaram o calor, a poeira, as doenças, o banditismo e as imposições e caprichos dos senhores tribais e não produziram nada, pelo que D’Arcy, que estava a ficar sem dinheiro, teve de buscar um sócio. Encontrou-o na Burmah Oil, fundada em Glasgow, Escócia, em 1886, com o objectivo de explorar petróleo no Sudeste Asiático, o que explica o seu nome original: Rangoon Oil, a partir do nome da maior cidade da Birmânia, a que os anglófonos dão o nome de Burma (hoje Rangoon chama-se Yangon, e Birmânia deu lugar a Myanmar).

Porém, as prospecções continuaram a revelar-se infrutíferas, pelo que em 1908, D’Arcy e a Burmah Oil, já em sérios apuros financeiros, ordenaram a Reynolds que suspendesse os trabalhos, só que as comunicações entre as Ilhas Britânicas e o deserto iraniano eram então muito lentas e enquanto a carta fazia o seu caminho, Reynolds descobriu finalmente petróleo – e em quantidade. Para o explorar, em 1909 a Burmah Oil criou a Anglo-Persian Oil Company (APOC), que em poucos anos estenderia a sua actividade para lá das fronteiras persas e se tornaria numa das mais importantes empresas mundiais do ramo.

Em 1912, o empresário arménio Calouste Gulbenkian (1869-1955), negociante exímio e um bom conhecedor do Próximo Oriente, criou a Turkish Petroleum Company, com o fito de explorar petróleo na Mesopotâmia, que era então uma província do Império Otomano.

Calouste Gulbenkian, na casa dos vinte anos

Com a derrota otomana na I Guerra Mundial, a Grã-Bretanha e a França disputaram quem ficaria com mandato sobre as antigas províncias otomanas, onde ainda não fora encontrado petróleo, mas no qual se depositavam expectativas elevadas. Pela Conferência de San Remo, em 1920, a Grã-Bretanha acabou por ficar com a parte de leão, assumindo, pelo acordo de Sykes-Picot, o controlo das regiões da Palestina e de Mosul (o Iraque) e cabendo à França a Síria e o Líbano, mais 25% do (hipotético) petróleo de Mosul. As gigantes petrolíferas americanas tentaram obter um quinhão no petróleo da Mesopotâmia e foram rechaçadas, mas voltaram à carga pouco depois. A renhida luta pelo controlo da Turkish Petroleum Company e do petróleo do Iraque, astutamente mediada por Gulbenkian, prolongou-se durante anos, só tendo desfecho a 31 de Julho de 1928: resultou na salomónica partição de 23.75% para a britânica Anglo-Persian Oil Company, 23.75% para a anglo-holandesa Royal Dutch Shell, 23.75% para a Compagnie Française des Pétroles (CFP), 23.75% para o consórcio americano Near-East Development Company (NDEC) e 5% para o “arquitecto de negócios” (era assim que Gulbenkian se via), que, a ser proprietário ou concessionário fosse do que fosse, preferia ficar com uma quota de 5% nos negócios em que entrava. As negociações foram tão demoradas que, entretanto, tinha ficado comprovado que as potências e as empresas não estavam a disputar uma quimera: a 14 de Outubro de 1927, em Baba Gurgur, perto de Kirkuk, um furo de prospecção emitiu um formidável jorro de petróleo, que debitou um caudal de 95.000 barris/dia até ser controlado, oito dias depois.

Jorro de petróleo em Baba Gurgur, Kirkuk, Iraque, c.1932

No início da década de 1930, a Pérsia forçou a Anglo-Persian a renegociar o contrato de 1901 (que era francamente desvantajoso para o país) e obteve uma participação de 25% no capital da APOC. Pouco depois, esta sofreu uma mudança de nome: apesar de a designação “Pérsia” (ou similar) ser corrente no mundo ocidental desde a Antiguidade Clássica, Persis era apenas uma das províncias da nação que se designava a si mesma por “Irão” e em 1935, o shah Reza Palahvi solicitou à comunidade internacional que passasse também a empregar esta designação, o que fez com que a Anglo-Persian Oil Company fosse rebaptizada como Anglo-Iranian Oil Company. Em 1951, o Irão, dispôs-se a nacionalizar toda a indústria petrolífera, projecto que foi abortado em 1953 quando os EUA promoveram o derrube do primeiro-ministro Mohammad Mosaddegh (ver capítulo “Irão, 1953”, em A história dos EUA enquanto polícia do mundo). No ano seguinte, a Anglo-Iranian Oil Company foi rebaptizada como British Petroleum.

Anúncio à British Petroleum, década de 1950

A British Petroleum comprou a Standard Oil of Ohio em 1978, fundiu-se com a Amoco em 1998 e adquiriu a ARCO e a Burmah-Castrol (herdeira da Burmah Oil) em 2001, convertendo-se na 3.ª maior empresa mundial no ramo. Também em 2001, para fazer esquecer os pouco recomendáveis registos da empresa no domínio do ambiente e da segurança (nomeadamente o naufrágio, em 1967, do petroleiro Torrey Canyon, ao largo da Cornualha, com o derramamento de 110.000 toneladas de crude) e para saltar para o comboio da sustentabilidade e da protecção do ambiente, as letras BP passaram a significar Beyond Petroleum (“para lá do petróleo”) e o tradicional escudo da BP deu lugar a uma bela flor/sol. A nova BP fez fortes investimentos nas energias renováveis, mas o curriculum em termos de segurança e ambiente não melhorou: em 2010, um acidente na plataforma Deepwater Horizon, no Golfo do México, gerou o maior derrame de petróleo da história: 4.9 milhões de barris ou 780.000 m3, ao longo de 87 dias, afectando 180.000 Km2.

O petróleo derramado pela Deepwater Horizon chega à costa da Louisiana, 2010

Saudi Aramco

A empresa pública de petróleo – a 6.ª maior empresa do mundo, em termos de receitas – tem origem na concessão feita, em 1933, pelo governo saudita à SoCal (Standard Oil da Califórnia) para explorar petróleo no seu território. Para este propósito foi criada a California Arabian Standard Oil Company ou Casoc, rebaptizada em 1944 como Arabian American Oil Company ou Aramco. Em 1950, o rei Abdulaziz bin Saud ameaçou a Aramco com a nacionalização, caso não aceitasse rever a repartição de lucros para uma proporção 50/50. A Aramco acedeu, mas em 1973 o governo saudita iniciou um processo de nacionalização que foi concluído em 1976 – em 1988 a designação da empresa foi alterada para Saudi Aramco.

A Arábia Saudita tem a particularidade de ter recebido o seu nome da dinastia que governa o país: no rescaldo do desmembramento do Império Otomano, Abdulaziz bin Saud (1875-1953) culminou a campanha expansionista, que iniciara em 1902, com a conquista dos reinos de Hejaz (em 1922) e de Nejd (1925), seguida, em 1932, pela fusão formal dos seus territórios sob o nome de Reino da Arábia Saudita. Mais do que uma conquista, os Saud entenderam esta operação como uma reconquista, uma vez que viam (e vêem) o Reino da Arábia Saudita como herdeiro do Emirato de Diriyah, que dominou a Península Arábica entre 1744 e 1818, ano em que foi derrotado pelo Império Otomano.

Total

A Total – 5.ª maior empresa do sector petrolífero, com 16.000 estações de serviço em todo o mundo – tem origem na Compagnie Française des Pétroles (CFP), fundada em 1924 com o fito de gerir a quota de 25% no petróleo do Iraque que fora outorgada ao Estado francês pela Conferência de San Remo. Abriu a primeira refinaria em 1933, na Normandia, e lançou a marca Total em 1954, para comercializar gasolina. A popularidade desta justificou que em 1985 a empresa fosse rebaptizada como Total CFP, que, em 1999, por fusão com a Petrofina (Compagnie Financière Belge des Pétroles, fundada em 1920) deu origem à TotalFina. No ano seguinte, nova fusão, agora com a Elf-Aquitaine, deu origem à presente Total SE.

Sede da Total, Paris

A Elf-Aquitaine remonta a 1966, quando uma operação de fusão da Régie Autonome des Pétroles (RAP, fundada em 1939), da Societé National des Pétroles d’Aquitaine (SNPA, fundada em 1941) e do Bureau de Recherche de Pétrole (BRP, fundado em 1945), deu origem à Enterprise de Recherches et d’Activités Pétrolières (ERAP), que, em 1976, adquiriu a Antar Pétroles de l’Atlantique, para fazer surgir a Societé National Elf-Aquitaine (SNEA), sendo Elf o acrónimo de “Essences et Lubrifiants de France”.

A Elf-Aquitaine esteve envolvida em imbróglios assaz “oleosos”: em 1979, investiu 200 milhões num novo método para detecção de petróleo no subsolo que veio a revelar-se uma impostura; e em 1994 veio a lume um mega-escândalo político-financeiro, que ficou conhecido como “Affaire Elf”, um tenebroso emaranhado de desvios de fundos, corrupção e trocas de favores, envolvendo a fina flor das classes política e empresarial de França.

Agip

Em 1924 foi tornado público que a companhia petrolífera americana Sinclair obtivera do Ministério da Economia italiano um contrato de concessão por 50 anos para prospecção em Itália, que foi considerado danoso para o interesse público – um dos deputados da oposição que denunciou o escândalo foi assassinado, o que veio adensar as suspeitas sobre o negócio. O governo de Mussolini retirou do “caso Sinclair” a conclusão de que o sector petrolífero era demasiado importante para ser deixado à iniciativa privada – e, menos ainda, a empresas estrangeiras – e fundou a Azienda Generale Italian Petroli (Empresa Geral Italiana de Petróleos) ou Agip.

O célebre logótipo do cão de seis patas só surgiu em 1953, quando a Agip foi incorporada no recém-formado grupo Eni (Ente Nazionale Idrocarburi = Entidade Nacional de Hidrocarbonetos) e resultou de um concurso nacional de ideias promovido pela empresa. A proposta que triunfou, da autoria de Luigi Broggini, é puramente arbitrária e desprovida de significado e foi escolhida apenas por ser visualmente apelativa. A marca Agip foi extinta em 2008, mas o cão de seis patas continua a fazer parte do logótipo da Eni.

Anúncio à Agip, 1939

Repsol

A Repsol teve origem na CAMPSA (Compañía Arrendataria del Monopolio de Petróleos SA), um monopólio estatal do sector petrolífero criado em 1927 pelo governo autocrático e nacionalista do general Miguel Primo de Rivera, através da nacionalização das empresas petrolíferas multinacionais que então dominavam o mercado espanhol (Shell e Standard Oil). A nacionalização, concebida pelo Ministro das Finanças de Rivera, José Calvo Sotelo, e inserida numa política nacionalista e proteccionista, suscitou reacções enérgicas da Shell e da Standard Oil, que embargaram de fornecimento de petróleo a Espanha. Este bloqueio foi torneado pela celebração de contratos entre a ditadura nacionalista espanhola e a URSS (!) e os EUA e a Grã-Bretanha retaliaram através da promoção da instabilidade política em Espanha, o que resultou na queda da ditadura de Primo de Rivera em 1930.

O assassinato de Calvo Sotelo em 1936, por uma milícia socialista, fez dele um mártir dos fascistas espanhóis, pelo que em 1942, já sob o governo de Francisco Franco, foi dado o seu nome a outra empresa estatal do sector: a Empresa Nacional Calvo Sotelo de Combustibles Líquidos y Lubrificantes (ENCASO).

O gabinete de Miguel Primo de Rivera em Dezembro de 1925: Calvo Sotelo é o 3.º a contar da esquerda, Primo de Rivera é o 5.º

Em 1948 foi criada a REPESA (Refinería de Petróleos de Escombreras SA), cuja primeira refinaria começou a operar em Escombreras, perto de Cartagena, em 1951; em 1968, este empresa começou a comercializar combustível sob a marca Repsol. Em 1974, a REPESA, a ENCASO e a ENTASA (Empresa Nacional de Petróleos de Tarragona SA) foram fundidas na ENPETROL e, dez anos depois, todas as empresas petrolíferas espanholas com participação estatal foram fundidas numa única empresa, que recebeu o nome Repsol.

Cepsa

Foi fundada em 1929, em Madrid, por Francisco Recasens, mas o seu crescimento foi coarctado pelo facto de o Estado espanhol deter o monopólio do sector petrolífero, o que forçava a Cepsa a só poder instalar refinarias fora da Espanha peninsular (ou seja, nas Canárias e em Gibraltar) e a vender toda a produção à CAMPSA. À medida que o monopólio estatal foi afrouxado, a Cepsa adquiriu parte das estações de serviço da CAMPSA e apostou na internacionalização.

A partir de 1988, parte do capital da Cepsa foi sendo adquirido pela IPIC (International Petroleum Investment Company, do Abu Dhabi) e da Elf-Aquitaine, processo que culminou, em 2011, com a tomada total do controlo da empresa pela IPIC.

Galp

Tem origem na SONAP (Sociedade Nacional de Petróleos), fundada em 1933, e na SACOR (Sociedade Anónima de Combustíveis e Óleos Refinados), fundada em 1937. Estas empresas, mais a Petrosul e a Cidla (que comercializava gás butano) e menos os ramos angolano (ANGOL) e moçambicano (Moçacor), que foram nacionalizados pelas respectivas ex-colónias, foram fundidas, em 1976, na Petrogal (Petróleos de Portugal), que é hoje parte do grupo Galp.

Petronas

A primeira exploração de petróleo na Malásia fora realizada em 1910 pela Royal Dutch Shell, mas a actividade só ganhou algum ímpeto na segunda metade da década de 1960, através de concessões a empresas americanas. A ascensão vertiginosa do preço do crude, em 1973, em resultado dos conflitos no Médio Oriente, levou o governo malaio a decidir que o negócio dos petróleos deveria ficar sob controlo estatal: assim nasceu, em 1974, a Petronas (de Petroliam Nasional Berhad = Petróleo Nacional Lda.).

A Petronas explora campos petrolíferos na Malásia, Vietnam, Myanmar e Tailândia e tem operações em 33 países. Em 1999, a empresa inaugurou a sua nova sede nas Petronas Towers, em Kuala Lumpur, que detiveram o recorde de edifício mais alto do mundo até 2004.

Petronas Towers

Gazprom

Aqui, no extremo ocidental da Europa, com invernos amenos e a muitos milhares de quilómetros da fronteira russa, a Gazprom é um nome relativamente remoto, apesar de ser a maior companhia de gás do mundo e a maior empresa da Rússia (em termos de receitas).

Os campos petrolíferos de Baku desde cedo fizeram da Rússia um actor no mercado mundial de hidrocarbonetos, mas o país tornar-se-ia ainda mais relevante com a descoberta, nas décadas de 1970 e 1980, de colossais reservas de gás natural na Sibéria. Em 1989, com o fim da URSS, o Ministério Soviético da Indústria do Gás foi convertido numa empresa estatal, a Gazprom. Assim que subiu ao poder, em 2000, Vladimir Putin, tratou de colocar na direcção da empresa “gente de confiança” e em 2006 atribuiu à Gazprom o monopólio da exportação de gás natural. Apesar do seu nome, a actividade da Gazprom não se circunscreve ao gás: a sua subsidiária Gazprom Neft é a 3.ª maior empresa petrolífera da Rússia.

Campo de gás da Gazprom em Zapolyarnoye, Península de Yamal, Rússia

A Gazprom é um dos principais “campeões nacionais”, um conceito lançado por Putin e que designa empresas estatais operando em sectores estratégicos, cujo propósito não é somente a obtenção de lucro, mas também contribuir para a promoção dos interesses russos. Assim, a Gazprom tem sido um decisivo instrumento de política externa russa, uma vez que a empresa representa 39% do gás consumido na Europa, percentagem que é bem mais elevada nalguns países da Europa Central e de Leste. Em 1999, o chanceler alemão Gerhard Schröder anunciou o desinvestimento em centrais nucleares e a carvão, em favor do gás russo; em 2005, poucas semanas antes do fim do seu mandato, Schroeder aprovou a construção do gasoduto Nord Stream, para transportar esse gás através do Báltico, torneando a Polónia e a Ucrânia (que têm, tradicionalmente, relações crispadas com a Rússia), bem como um financiamento (secreto) de 1000 milhões de euros à Gazprom para a sua execução. Poucos meses depois de deixar o Governo, Schröder foi nomeado presidente do conselho de administração do consórcio que gere a construção e operação do Nord Stream, a Nord Stream AG, que é detida em 51% pela Gazprom. A Rússia parece ter ficado satisfeita com o desempenho de Schröder, pois em 2017 foi também nomeado para a administração da empresa estatal russa de petróleo Rosneft.

O Nord Stream começou a operar em 2011 e, nesse mesmo ano, a Nord Stream AG começou a estudar a construção do Nord Stream 2, que levará à duplicação da capacidade de transporte – atingindo 110.000 milhões de metros cúbicos por ano – e cujo trajecto é, em boa parte, paralelo ao Nord Stream 1.

Rede de gasodutos entre a Rússia e a Europa

O projecto Nord Stream tem estado, desde o início envolvido em polémica, dadas as suas implicações ambientais – fomenta a continuação da dependência de combustíveis fósseis – e geopolíticas – deixa a segurança energética da Europa Central e de Leste nas mãos da Rússia. A fim de contrariar a má imprensa que a Nord Stream lhe granjeou, a Gazprom se afirmasse, desde 2006, num dos mais generosos patrocinadores do futebol. A Gazprom não vende gás a consumidores individuais, trabalha à escala nacional, pelo que gastar milhões para ter o nome em camisolas de jogadores de futebol poderia parecer um puro desperdício, mas o propósito da Gazprom não é publicitar o seu gás, é fazer esquecer os aspectos mais sombrios e retorcidos da sua actuação. Talvez seja uma motivação similar que leva as petro-monarquias do Golfo Pérsico a investir maciçamente em clubes de futebol, ainda que não directamente através de empresas petrolíferas, recorrendo antes a outras empresas estatais (como companhias de aviação) ou a fundos soberanos – a cegueira induzida pela “futebolite” leva a que os adeptos ponham de parte qualquer reserva relativa à origem do dinheiro que permite comprar jogadores e treinadores por preços exorbitantes e confere uma aura de respeitabilidade aos “investidores”.

FC Schalke 04 - SV Sandhausen

O FC Schalke 04, de Gelsenkirchen, na Alemanha (na foto, num jogo em casa, a 27 de Novembro de 2021), é um dos clubes de futebol patrocinados pela Gazprom

Note-se que os aspectos menos recomendáveis da actuação da Gazprom não se ficam pelo caso Nord Stream: na verdade, como muitas outras empresas estatais russas, cuja administração está confiada a amigos, ex-colegas de escola e de trabalho no KGB/FSB e antigos empregadores/subordinados de Putin, a Gazprom não está ao serviço do Estado russo ou do povo russo, mas dos interesses pessoais do czar Novichok I e da sua corte, como pode inferir-se dos fluxos de dinheiro que saem destas empresas e entram, através de circuitos financeiros deliberadamente complexos e obscuros, nas empresas e contas bancárias da elite no poder.

Nos últimos dois anos, as tensões em torno da Nord Stream 2 têm vindo a agravar-se: a sua entrada em operação estava prevista para 2021, mas, embora boa parte das obras estejam já concluídas, a contestação ao projecto tem vindo a intensificar-se e a ganhar novas dimensões e tornou-se num dos temas mais escaldantes das relações entre a Rússia e a União Europeia. Em resultado das pressões exercidas pela administração Biden e das objecções levantadas pelo regulador energético alemão e pelos Governos da Polónia e Ucrânia (cuja relação com a Rússia se degradou seriamente desde 2014 e está hoje perto de um estado de guerra não-declarada), a data de entrada em operação do novo gasoduto tem vindo a ser adiada e, com a entrada em funções, no final de 2021, de um novo governo alemão, liderado pelo social-democrata Olaf Scholz e que deu indícios de ir praticar uma política menos contemporizadora com a Rússia, é até possível que o Nord Stream 2 seja rejeitado e não entre em funcionamento. A oposição ao Nord Stream deve parecer incompreensível e injusta a Gerhard Schröder, que, numa entrevista em 2004, classificou Putin como um “democrata irrepreensível”, e não parece ter tido, nos anos entretanto decorridos, encontrado razões para mudar de opinião sobre o líder russo.

[A Gazprom é um dos principais patrocinadores da Champion’s League de 2021/22, e a final deste certame terá lugar, a 28 de Maio, na Gazprom Arena, o estádio do Zenit de São Petersburgo, clube que não só é patrocinado pela Gazprom, como é, desde 2005, propriedade desta empresa:]

Rosneft

A Rosneft é a 2.ª maior empresa estatal russa (só fica atrás da Gazprom) e a 3.ª maior empresa do país e o seu nome provém de “Rossiyskaya Neft”, que significa “Petróleo Russo”. Foi fundada em 1993 e em 2006 tornou-se na maior empresa petrolífera da Rússia, ao absorver a maior parte dos activos da Yukos. A Yukos fora fundada em 1993 por Mikahil Khodorkovsky, e, em apenas dez anos, tornou-se na maior empresa petrolífera da Rússia, representando 20% da produção nacional, e o seu proprietário tornou-se na pessoa mais rica da Rússia e na 16.ª pessoa mais rica do mundo. Porém, Khodorkovsky não percebeu (ou não quis aceitar) algumas leis não-escritas que regulamentam os negócios na Rússia de Putin, nomeadamente a não-interferência em assuntos políticos e a obrigação de prestar vassalagem a Putin, pelo que em 2003 foi preso, acusado de evasão fiscal e condenado, sendo a sua empresa desmembrada e liquidada.

Sede da Rosneft, Moscovo

Se os negócios da Rosneft têm, pois, um substrato sujo, a sua actuação no mundo real não o é menos, sendo responsável, devido às sua práticas negligentes, por uma média de 10.000 derramamentos de petróleo por ano.