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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Amadeu Guerra. "Não é possível um retrocesso no combate à corrupção"

O diretor do DCIAP não abre o jogo sobre o seu futuro mas concorda que dois mandatos sem renovação é uma boa solução. Defende a colaboração premiada e diz que está a cooperar com a Justiça angolana.

Os especialistas que estudam a mente humana asseguram que a forma como nos apresentamos perante terceiros diz muito sobre quem somos. Se assim é, a forma como o seu gabinete está imaculadamente organizado e arrumado reflete as ideias claras que sempre regeram a carreira do procurador-geral adjunto Amadeu Guerra. Não gosta de perder tempo com conversas introdutórias. Quando fala, comunica sempre de forma assertiva e rápida. Vai direto ao assunto e diz ao que vem. Com uma postura que pode parecer austera para o exterior, uma marca dos magistrados da sua geração, o “dr. Amadeu”, como é conhecido no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e na Procuradoria-Geral da República (PGR), é visto como sendo o responsável por um aumento de eficiência muito significativo do DCIAP desde 2013.

Escolhido de forma surpreendente pela procuradora-geral Joana Marques Vidal para substituir Cândida Almeida, Amadeu Guerra era essencialmente conhecido pelo seu trabalho na área administrativa. No DCIAP, promoveu a existência de equipas multidisciplinares com procuradores, inspetores da Judiciária e da Autoridade Tributária, técnicos do Banco de Portugal, entre outros especialistas, e transformou o DCIAP num departamento de coordenação nacional e de combate à criminalidade económico-financeira e violenta altamente organizada, assim como ao terrorismo.

A marca dos seus dois mandatos, contudo, são os processos de corrupção. Além de casos óbvios, como a Operação Marquês ou Universo Espírito Santo, há ainda as acusações do caso Vistos Gold, Operação Fizz, caso José Veiga, a conclusão da Operação Furacão ou a sentença do caso principal do BPN que levou à condenação, entre outros arguidos, de Oliveira Costa, o ex-líder do banco, a uma pena de 14 anos de prisão. Ou ainda investigações recentes sobre as quais sabe-se muito pouco, como o caso de Tancos e as investigações ao Benfica, Sporting e a outros clubes de futebol a cargo de uma equipa especial de investigação que funciona no DCIAP.

A pouco menos de cinco meses de completar o seu segundo mandato e a nove meses de estar em condições de se jubilar, Amadeu Guerra não quis abrir o jogo sobre o seu futuro nesta entrevista por escrito que serviu para fazer o balanço dos (quase) seis anos como diretor do DCIAP — futuro esse que analisará com a nova procuradora-geral Lucília Gago. Concorda com uma solução de “dois mandatos de 3 anos para o diretor do DCIAP, não renováveis” mas, consciente de que não existe um limite legal, fala nesta entrevista sobre a sua visão sobre o que deve ser o departamento no futuro e defende a construção de novos instrumentos de combate à corrupção.

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A ideia forte de Amadeu Guerra é simples: o combate à corrupção não vai desacelerar — como alguns julgavam pela não recondução de Joana Marques Vidal. Antes pelo contrário.

“Grande sintonia com Joana Marques Vidal”

Quando tomou posse, em março de 2013, afirmou que a direção do DCIAP seria o maior desafio da sua carreira de mais de 30 anos. Ao fim de quase seis anos, sente que esteve à altura do desafio?
Foi o maior desafio da minha carreira. Como sempre fiz, empenhei-me em fazer tudo o que estava ao meu alcance para prestigiar o cargo que venho exercendo. Não me cabe fazer o balanço da minha atividade, mas sinto-me tranquilo com o meu desempenho e os resultados conseguidos.

Disse igualmente que queria dar o seu contributo para combater “a falta de confiança na Justiça”, até porque, tal como já tinha afirmado em 2012, existia a perceção de que o combate à “corrupção e aos crimes económico-financeiros não têm resultados”. O DCIAP conseguiu combater essa falta de eficácia?
O Ministério Público (MP) fez um grande esforço, nos últimos seis anos, para melhorar a investigação da criminalidade económico-financeira. Desde logo, aprovou um plano de ação de combate à corrupção, no qual foram delineadas novas metodologias no domínio da prevenção e investigação da criminalidade económico-financeira, bem como na aposta na formação especializada. O DCIAP, na linha do plano de ação delineado, organizou-se e criou equipas de magistrados afetos a áreas especializadas, incluindo na área do crime violento e tráfico de droga. No balanço dos últimos anos, cabe-me sublinhar o empenho, dedicação, entrega e coragem dos magistrados do DCIAP, que tudo fizeram para prestigiar o DCIAP e o MP. As situações que culminaram com acusações são públicas e estão disponíveis no site do DCIAP. Aos cidadãos caberá fazer um juízo sobre o trabalho desenvolvido.

"O anterior projeto de Estatuto do Ministério Público previa dois mandatos de 3 anos para o Diretor do DCIAP, não renováveis – solução legislativa que tem a minha concordância. O meu futuro será, oportunamente, analisado com a senhora Procuradora-Geral da República dr.ª Lucília Gago."

O seu segundo mandato à frente do DCIAP termina em março de 2019. Pelo que julgo saber, estará no próximo verão em condições de requerer a sua jubilação por ter atingido os 40 anos de serviço. Está disponível para continuar à frente do DCIAP para um terceiro mandato?
O trabalho dos últimos seis anos foi muito extenuante, com investigações muito complexas e com elevada exposição pública, situação que exige uma dedicação constante, muitas vezes com prejuízo pessoal e familiar para todos os magistrados do DCIAP. Procurámos responder às expetativas e à pressão do cumprimento dos prazos que, no dia a dia, nos foi colocada. Estou tranquilo em relação ao desempenho do DCIAP. O anterior projeto de Estatuto do Ministério Público previa dois mandatos de três anos para o diretor do DCIAP, não renováveis, solução legislativa que tem a minha concordância. O meu futuro será, oportunamente, analisado com a senhora procuradora-geral da República, dr.ª Lucília Gago.

Ao contrário de outros departamentos de investigação criminal do Ministério Público, o DCIAP foi criado em 1999 como um órgão da Procuradoria-Geral da República. O diretor do DCIAP responde diretamente ao procurador-geral — no seu caso, trabalhou com Joana Marques Vidal.  O seu trabalho no DCIAP teria sido possível com outro procurador-geral?
As relações entre mim e a procuradora-geral cessante foram, sempre, excelentes e de franca cooperação. A troca de pontos de vista era constante e havia, entre nós, um grande consenso e sintonia em relação aos temas da investigação criminal. Não faço conjeturas sobre hipóteses de trabalho, mas devo sublinhar que não estaria disponível para continuar neste cargo se não me tivessem sido dadas as condições de trabalho possíveis e ao alcance do meu superior hierárquico.

Amadeu Guerra com a procuradora-geral Joana Marques Vidal a 11 de março de 2013 -- dia da sua tomada de posse como diretor do DCIAP

Manuel Almeida/LUSA

Joana Marques Vidal solicitou-lhe, aquando da sua tomada de posse, que “prosseguisse todas as investigações, sem excepção (…), sem omitir qualquer diligência necessária à descoberta da verdade, respeitando o segredo de justiça e, intransigentemente, a igualdade do cidadão face à lei.” É esse o consenso a que se refere?
Aceitei o repto da procuradora-geral da República e sempre me senti apoiado e incentivado, tendo havido uma grande sintonia na abordagem da nossa forma de atuação. A dr.ª Joana Marques Vidal tinha, nesse aspeto, o mesmo pensamento que eu – o que facilitou o meu desempenho.

É um magistrado do MP com mais de 40 anos de serviço. Concorda que a aplicação do conceito de autonomia dos magistrados e de autonomia da Procuradoria-Geral da República face ao poder político nunca foi tão longe como nestes últimos seis anos?
Enquanto magistrado, habituei-me a observar as disposições do Estatuto do MP. A nossa atuação deve reger-se por critérios de legalidade, objetividade e autonomia em relação a outros órgãos do poder central, regional ou local. Tanto eu como os magistrados do DCIAP – a quem compete a direção da investigação dos inquéritos – observámos sempre estes princípios e respeitámos, na nossa atuação, o princípio da igualdade dos cidadãos. Sempre que são feitas denúncias é nossa obrigação fazer a sua investigação e levá-la até ao fim, independentemente da qualidade e relevância social das pessoas a investigar. Todos devem ter o mesmo tratamento, em atenção ao princípio da igualdade, com consagração constitucional.

"Não estaria disponível para continuar neste cargo se não me tivessem sido dadas as condições de trabalho possíveis e ao alcance do meu superior hierárquico.  A dr.ª Joana Marques Vidal tinha, nesse aspeto, o mesmo pensamento que eu – o que facilitou o meu desempenho."

O combate à corrupção não vai desacelerar

A detenção de um ex-primeiro-ministro, investigações que visaram o banqueiro mais poderoso do país e alguns dos gestores mais premiados dos últimos anos — estes são apenas alguns dos exemplos de um trabalho que é visto pela opinião pública como representando o fim da impunidade. O que contribuiu mais para essa evolução?
O MP, quer no DCIAP quer nos DIAP, fez o seu caminho e apostou na especialização, numa investigação mais pragmática, apoiada na cooperação com os órgãos de polícia criminal – em particular com a Polícia Judiciária (PJ) – e num modelo de cooperação judiciária internacional muito mais eficiente (com aproveitamento de todos os mecanismos existentes), no envolvimento de entidades externas que tenham disponibilidade para nos apoiar e na melhoria das ferramentas tecnológicas vocacionadas para o apoio à análise de grandes quantidades de informação. Os magistrados, face à complexidade dos inquéritos, procuraram apoios especializados (quer no interior do Ministério Público quer externamente) que lhe permitissem avaliar, com mais rigor, a prova apreendida e compreender melhor alguns fenómenos criminais. Se continuarmos este caminho temos razões para estar otimistas.

Acha possível que o caminho de intensificação na luta contra a corrupção possa conhecer um retrocesso ou uma desaceleração?
Não me parece. Os magistrados continuam determinados e a tendência é para melhorar a nossa organização e reforçar a cooperação entre o DCIAP e os DIAP. Ainda podemos melhorar o nosso desempenho, pois considero que é possível fazer melhor com os recursos de que dispomos. Porém, a melhoria e evolução da qualidade e celeridade das investigações passa, necessariamente, pelo reforço urgente de meios técnicos e humanos da PJ. Esta medida é muito urgente e merece especial atenção se quisermos ser mais céleres e eficazes no combate à criminalidade económico-financeira e crime violento. Por outro lado, não existe ao nível do Governo ou do Parlamento, um plano estratégico que faça o elenco de medidas e meios concretos a afetar à luta contra a corrupção, situação que o Conselho da Europa tem vindo a referenciar. Talvez fosse desejável ponderar a elaboração de um plano onde os aspetos do “direito premial” fossem incluídos.

Lucília Gago, a nova procuradora-geral da República, manifestou plena confiança no trabalho de Amadeu Guerra como diretor do DCIAP.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Tem sido muito debatida a possível introdução de uma justiça negociada nos crimes económico-financeiros, que costuma ser apelidada de colaboração premiada. Qual é a sua visão sobre este tema?
Os mecanismos legais previsto na lei da droga (art. 31.º), na lei relativa à prevenção criminal (art. 8.º) ou na lei relativa à corrupção no comércio internacional (artigo 5.º) são um bom ponto de partida para se encontrar um regime mais estruturado, realista e eficaz em relação à pouca aplicação das disposições atualmente vigentes. A principal preocupação é encontrar uma solução jurídica coerente e apelativa, relativamente ao “direito premial”, sobre a qual é necessário legislar. O regime legal vigente não garante àqueles que estão disponíveis para cooperar na fase de inquérito, em toda a sua amplitude, a obtenção de benefícios no caso de colaborarem na recolha de provas decisivas à investigação. A questão que se levanta é a de saber se, em termos de direito a constituir, a colaboração relevante e decisiva com a investigação pode proporcionar a dispensa da pena/suspensão provisória do processo (sempre com intermediação judicial) ou a atenuação especial da pena na sequência de julgamento. Este regime poderia ser aplicável à criminalidade económico-financeira, corrupção e criminalidade conexa ou a outro tipo de criminalidade a definir pela Assembleia da República.

Concorda que é necessário criar um novo crime de enriquecimento ilícito?
As várias tentativas para legislar sobre esta matéria e os acórdãos do Tribunal Constitucional evidenciam uma grande dificuldade em encontrar um regime que se harmonize com a presunção da inocência, com o princípio da não autoincriminação do arguido ou com a escolha de uma solução compatível com a inversão do ónus da prova, que se compagine com o direito ao silêncio do arguido. Na impossibilidade de se encontrar uma solução jurídica, que passe pelo crivo do Tribunal Constitucional, sou favorável a soluções encontradas no âmbito do direito fiscal (pela via da verificação dos património congruente com o rendimento) ou do direito civil, ainda que se pudesse recorrer a critérios similares aos estabelecidos no artigo 7.º n.º 1 da Lei n.º 5/2002 com amplos meios de prova a favor do cidadão para comprovar a origem lícita dos bens. De qualquer forma, a solução legislativa passa pela Assembleia da República e é aí que deve ser feita a ponderação das soluções jurídicas a considerar.

Qual o inquérito que considerou o maior desafio destes últimos seis anos? E porquê?
O maior desafio é sempre o “próximo” inquérito no qual nos envolvemos, na medida em que quando terminamos um inquérito – com a elaboração do despacho final – as nossas preocupações e desafios já estão centradas numa outra investigação em curso, tanto ou mais complexa que as anteriores, dada a imprevisibilidade e complexidade das investigações aqui pendentes. Estes seis anos foram um desafio constante e quem ambicionar ter um posto de trabalho sossegado, tranquilo e previsível, não tem lugar no DCIAP.

"Estes seis anos foram um desafio constante e quem ambicionar ter um posto de trabalho sossegado, tranquilo e previsível, não tem lugar no DCIAP."

Os mega-processos e a sua inevitabilidade

Já teve oportunidade de dizer publicamente que “também odeia mega-processos”. Foi uma ironia da sua parte face às críticas que costumam ser feitas a inquéritos com acusações demasiado extensas e complexas. Que medidas devem ser tomadas pelo legislador para tornar mais céleres os julgamentos de casos complexos de criminalidade económico-financeira?
Quando se fazem críticas contra os mega-processos é suposto que as pessoas conheçam os inquéritos a que se referem e comprovem que há outras linhas ou metodologias de investigação e formas alternativas de apurar os factos – por exemplo, separando processos – sem prejudicar a função do inquérito: investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes, a responsabilidade deles e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação ou arquivamento. Nem todos os inquéritos podem ser separados em ‘miniprocessos’ sob pena de ser quebrada a coerência e visão de conjunto da atuação criminal dos arguidos. Lembro, por outro lado, que a separação de processos potencia, de igual forma, o arrastamento dos julgamentos – a realizar nos vários inquéritos separados – pois a separação de processos ou extração massiva de certidões implica a elaboração sucessiva de despachos finais em anos sucessivos.  Tal metodologia também implica a sujeição sucessiva dos arguidos a vários julgamentos.

É inevitável que certos casos, como a Operação Marquês, o Universo Espírito Santo ou outros, se arrastem no tempo?
A complexidade dos inquéritos pode resultar de vários fatores: da multiplicidade de arguidos, da muita documentação para analisar, do relacionamento de condutas e acordos entre vários arguidos no momento da prática dos factos, bem como as ligações de movimentos financeiros ou prática de factos em vários países, quer dentro quer fora da União Europeia. A discussão sobre esta temática seria matéria para uma única entrevista. Se quisermos fazer investigações complexas em prazos mais curtos temos que alterar, de forma estrutural, o quadro atual em termos de recursos técnicos e de assessoria do MP e, particularmente, da PJ.

Colaboração premiada? "A principal preocupação é encontrar uma solução jurídica coerente e apelativa, relativamente ao “direito premial”, sobre a qual é necessário legislar. O regime legal vigente não garante àqueles que estão disponíveis para cooperar na fase de inquérito a obtenção de benefícios no caso de colaborarem na recolha de provas decisivas à investigação."

Já houve casos em que o DCIAP optou pela separação de processos. Recordo-me da Operação Furacão.
No âmbito da “Operação Furacão” (que foi classificado como “megaprocesso”) foram instaurados 164 inquéritos e constituídos 792  arguidos. O MP deduziu acusação em oito destes processos, tendo acusado 160 arguidos e aplicado a suspensão provisória do processo numa centena e meia de inquéritos. Como se verifica, não obstante a separação de processos, só foi possível, por razões várias que não interessa aqui detalhar, terminar as investigações muito recentemente.  Os processos mais complexos exigem, simultaneamente, equipas em dedicação exclusiva, com formação especializada, apoios técnicos e humanos ao nível de magistrados, oficiais de justiça, órgãos de polícia criminal, apoio de assessores que a matéria exige (independentemente dos custos a suportar), capacidade instalada na PJ que responda, com celeridade, às perícias informáticas, financeiras, bem como a afetação de investigadores suficientes em função da quantidade de prova a analisar. Na maioria dos casos, a celeridade do inquérito está também condicionada pelo tempo de resposta a pedidos de cooperação judiciária internacional, cujos prazos de cumprimento não dominamos.

No caso dos julgamentos, há o exemplo do caso BPN que durou seis anos e meio — só na primeira instância.
O MP tem feito um esforço no sentido de assegurar que, nos processos mais complexos, a acusação e a produção da prova seja feita com recurso a ferramentas informáticas que permitam sistematizar a prova a produzir e facilitar a sua apreensão pelo tribunal, de forma mais ágil. Porém, deve manter-se em aberto – caso a caso – a afetação de assessores, com formação especializada nas matérias em análise e a designação de magistrados a tempo inteiro para assegurar o julgamento. Tem sido feito um esforço no sentido de o magistrado que fez a investigação poder, também e sempre que possível, intervir na fase do julgamento.

Ricardo Salgado (ex-presidente executivo do BES), Henrique Granadeiro (ex-chairman da Portugal Telecom) e Zeinal Bava (ex-CEO da PT) são alguns dos principais arguidos da Operação Marquês

Jorge Amaral

A especialização, o Tribunal Central e um tribunal especial para julgar casos de corrupção

O Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) foi criado para acompanhar o nascimento do DCIAP em 1999. Recentemente, o conselheiro Henriques Gaspar (ex-presidente do STJ) defendeu a extinção deste tribunal de competência especializada e de competência territorial alargado. Concorda?
Não me compete apreciar, nem considero oportuno participar nessa discussão. Apenas posso dizer que o DCIAP tem vindo a trabalhar com o TCIC e com os Tribunais de Instrução Criminal de diversas comarcas. A ideia que esteve subjacente à criação do TCIC era assegurar que os juízes aí em funções tivessem formação especializada na investigação dos “crimes de catálogo”. Penso que é muito importante, face à complexidade e tecnicidade dos inquéritos pendentes no DCIAP, que os magistrados judiciais que participam na fase do inquérito ou instrução tenham formação especializada. O TCIC tem cumprido o papel que esteve subjacente à sua criação. Não obstante, não posso deixar de referir que os juízes de instrução criminal das várias comarcas com quem temos trabalhado (em particular do TIC de Lisboa) têm demonstrado conhecimentos e sensibilidade na apreciação das questões que lhes têm sido suscitadas.

O Ministério Público fez uma aposta histórica nos anos 90 na especialização para combater não só a criminalidade económico-financeira, como também outros tipos de criminalidades. Sem especialização, o DCIAP teria conseguido investigar casos como a Operação Marquês, Universo Espírito Santo, BPN, Furacão, etc?
A formação e especialização dos magistrados tem sido uma preocupação do MP nos últimos anos. Nos últimos seis anos, que acompanhei mais de perto, houve uma aposta na reflexão sobre novas formas de estruturar a investigação, tendo algumas dessas reflexões sido expressas no documento “O Ministério Público Contra a Corrupção”. A criação de uma nova estrutura do DCIAP, a afetação de inquéritos a equipas de investigação (que podiam integrar magistrados de outras jurisdições), a designação de um magistrado como ponto de contacto para a cooperação judiciária internacional e para a recuperação de ativos, a generalização da formação especializada a 60 magistrados afetos à investigação da criminalidade económico-financeira, bem como o recurso a ferramentas informáticas de análise e seleção da prova recolhida, o relacionamento estreito entre os magistrados e os órgãos de polícia criminal foram decisivos para a melhoria da eficácia da investigação.

Por outro lado, a criação de condições para assegurar a cooperação de pessoas com conhecimentos especializados (de entidades públicas e privadas), bem como a realização de perícias ou pareceres a entidades externas em aspetos muito específicos, acabou por se revelar muito útil em matérias técnicas que os magistrados do MP não dominam.

"A melhoria e evolução da qualidade e celeridade das investigações passa, necessariamente, pelo reforço urgente de meios técnicos e humanos da Polícia Judiciária. Esta medida é muito urgente e merece especial atenção se quisermos ser mais céleres e eficazes no combate à criminalidade económico-financeira e crime violento."

Quanto mais complexos são os processos de criminalidade económico-financeira, maior é o fosso de conhecimento que existe entre o MP e os tribunais. Enquanto os procuradores que investigam são especializados, os juízes de julgamento são generalistas. Concorda que se crie um tribunal de julgamento de competência especializada que dê seguimento à arquitetura iniciada com a criação do DCIAP e do Tribunal Central de Instrução Criminal — seguindo o exemplo da Audiência Nacional em Espanha?
Em relação à existência de tribunais especializados para o julgamento temos que ser cautelosos em relação ao modelo a adotar e à sua compatibilização com a Constituição da República. Por outro lado, é importante avaliar se o modelo a escolher se compagina com estrutura do nosso mapa judiciário e que impacto a sua criação tem em termos de quantidade de recursos humanos de juízes. Deste modo, estamos perante opções legislativas que não me compete abordar. De qualquer forma, considero que muitos dos juízes que realizam julgamentos se preparam, neste momento, para a complexidade das causas que lhe são apresentadas. Apostam na sua formação, tal como os magistrados do Ministério Público. De sublinhar que a legislação vigente permite a designação de pessoas especializadas para, no decurso do julgamento, coadjuvarem os juízes.

À semelhança do que acontece com o MP (que dispõe do Núcleo de Apoio Técnico da Procuradoria-Geral da República), considero que deveria ser operacionalizado — nas comarcas — o recurso a peritos e assessorias, às quais os juízes podiam recorrer na fase de instrução e julgamento. Tal modelo de assessoria não deveria dispensar a possibilidade atual de requisição de coadjuvação.

Amadeu Guerra está em condições de jubilar no verão de 2019, após 40 anos de serviço no Ministério Público

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Para chegarmos a investigações como a Operação Marquês, o Universo Espírito e tantos outros casos, o que foi mais importante: a especialização do MP, uma evolução muito significativa da legislação (bancária e de outra natureza) que facilitou o acesso a mais informação ou a melhoria também ela muito significativa na cooperação judiciária internacional?
Foi percorrido um caminho difícil e todos os fatores indicados foram decisivos. A evolução gradual da legislação, muitas vezes imposta por regras estabelecidas pela União Europeia ou organizações internacionais foi muito importante. A evolução legislativa ao nível da utilização dos meios especiais de prova, da possibilidade de utilização de ações encobertas, bem como ao nível da recuperação de ativos, constitui uma evolução também ela muito significativa.

Por outro lado, tem existido uma estratégia que aponta no sentido de se iniciarem os inquéritos, de forma precoce e imediatamente ao registo das denúncias ou do conhecimento da prática dos factos. O objetivo será realizar as investigações em data contemporâneas com a data da prática dos factos, situação que facilita a recolha da prova. Porém, os resultados obtidos decorrem, igualmente, do empenho, perseverança e dedicação dos magistrados, oficiais de justiça, órgãos de polícia criminal e técnicos, que se mobilizaram – cada um na sua função – para darem o seu melhor.

Seria possível existir uma Operação Marquês sem a cooperação internacional?
A questão da cooperação judiciária internacional é fulcral em todos os inquéritos em que haja prova a recolher fora de Portugal e não é exclusiva para o inquérito “Marquês” ou o inquérito do “Universo Espírito Santo”. Estamos cientes de que é imprevisível estabelecer, no início ou no decurso da investigação, quantos pedidos de cooperação são necessários e quais os países a quem devemos solicitar apoio. Isto porque o cumprimento de um pedido gera, não raras vezes, pedidos complementares aos mesmos ou a outros países, na medida em que o mundo em que vivemos é globalizado e os fluxos financeiros estão ao alcance de um clique. Por isso, os atrasos no cumprimento dos prazos de inquérito estão sempre muito dependentes de pedidos de cooperação, cujos prazos não controlamos. Essa é a nossa obrigação legal, enquanto titulares do inquérito. É preciso que esta realidade seja compreendida quando somos criticados pelo tempo que as investigações demoram.

Porém, também temos que estar conscientes de que – em alguns casos – já foram esgotados todos os meios ao nosso alcance para conseguir a informação e temos que proferir despacho final sem obter a resposta ao pedido ainda pendente. Por exemplo, no despacho final do caso dos “Submarinos” ficou claramente expresso quais foram os países que não responderam aos nossos pedidos, facto que, aliás, não me pareceu ter sido evidenciado nos juízos que foram feitos acerca do despacho de arquivamento.

"A questão da cooperação judiciária internacional é fulcral – não é exclusiva para o inquérito “Marquês” ou inquérito do “Universo Espírito Santo”. É imprevisível estabelecer, no início ou decurso da investigação, quantos pedidos de cooperação são necessários e quais os países a quem devemos solicitar apoio. É preciso que esta realidade seja compreendida quando somos criticados pelo tempo que as investigações demoram."

Angola está a receber cooperação do DCIAP

Por falar em cooperação internacional, Portugal tem acordos especiais de cooperação internacional com os países da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa. Tendo em conta uma nova fase judicial de combate à criminalidade económico-financeira que Angola aparenta estar a atravessar, o DCIAP tem recebido mais solicitações das autoridades angolanas?
Sim. Temos recebido e cumprido mais solicitações de cooperação judiciária de Angola e temos feito um esforço no sentido de os cumprir com a máxima celeridade, como acontece com os demais países. Ainda recentemente recebi magistrados de Angola e foi possível estreitarmos relações de cooperação recíproca, tendo sido fornecidos elementos urgentes para inquérito naquele país.

Acredita que Manuel Vicente, acusado pelo DCIAP de ter alegadamente corrompido um procurador do próprio departamento (Orlando Figueira) será alguma vez julgado em Angola?
O inquérito foi remetido, como é público, para Angola. A partir deste momento cabe ao Estado angolano decidir, como Estado soberano e de acordo com a sua legislação, o destino a dar à investigação.

O caso Manuel Vicente não abalou a cooperação judiciária do DCIAP com Angola -- que passa por uma nova fase de alegado combate à corrupção.

AFP/Getty Images

Chegou numa altura em que existia uma perceção pública de desorganização e divisões internas no departamento, além de uma concorrência direta do DIAP de Lisboa em termos de distribuição de inquéritos. Quais as medidas que tomou em termos de reorganização do DCIAP?
Em primeiro lugar, foram observadas as regras de competência do DCIAP e estabelecida uma cooperação estreita com os DIAP distritais, com aposta na coordenação entre todos os departamentos que realizam investigação criminal. Sendo o DCIAP um departamento com jurisdição nacional, era fundamental estabelecer uma confiança entre todos os departamentos, na medida em que todos somos poucos para investigar a criminalidade participada. Foi designada, no DCIAP, uma magistrada encarregada de realizar a coordenação entre os diversos departamentos a nível nacional. De forma gradual, o DCIAP centrou a sua ação na investigação criminal que, legalmente, lhe compete por natureza (criminalidade violenta, altamente organizada ou de especial complexidade), deixando para os DIAP investigações que, também complexas, podiam investigar com êxito por terem, igualmente, magistrados especializados (por exemplo, as situações de explosão em caixas multibanco e de variada criminalidade económico-financeira).

A procuradora-geral da República cessante e a atual queixaram-se com regularidade da falta de meios que caracteriza o MP. O DCIAP tem um quadro com 33 magistrados, dos quais 30 são procuradores da República e três são procuradores-adjuntos. Considera este quadro adequado?
Para além do diretor, o DCIAP tem 34 magistrados, sendo três procuradores-adjuntos. Face às contingências de algumas investigações – em que há magistrados que não pertencem aos quadros do DCIAP, órgãos de polícia criminal e assessores que aqui exercem funções, bem como uma sala forense e salas para pesquisa de informação automatizada (prova digital e digitalizada) – começamos a ter algumas dificuldades de espaço, o que condiciona o aumento significativo do quadro. Com a aprovação do novo Estatuto do Ministério Público – que cria os DIAP distritais com seções especializadas para investigar a criminalidade que também é investigada no DCIAP (algumas delas podem ser dirigidas por procuradores-gerais adjuntos) – considero que é necessário refletir sobre a nova estrutura e quadros a afetar. Sempre considerei que as questões relativas à celeridade da investigação criminal não se resolvem pelo simples facto de reforçar o número de magistrados, mas saber rentabilizar os quadros disponíveis. Agora, surgem problemas excecionais de falta de meios humanos quando mais de uma dezena de magistrados estão afetos a apenas dois inquéritos (como aconteceu nos casos conhecidos como “Operação Marquês” e “Universo Espírito Santo”).

Continuamos a investir na modernização, estando em curso uma experiência com uma empresa especializada com a qual colaboramos no sentido de podermos fazer a transcrição automática de depoimentos, o que facilitaria muito o nosso trabalho. Temos esperança que a sala forense do DCIAP – recentemente operacionalizada – possa ser um apoio complementar, com a cooperação da Polícia Judiciária, para a melhoria da celeridade da investigação criminal. Precisamos que o Portal Cos (portal de comunicações de branqueamento) receba, online, até ao final do corrente ano ou até ao fim do 1.º trimestre de 2019, todas as comunicações oriundas de entidades bancárias.

"Ainda recentemente recebi magistrados de Angola e foi possível estreitarmos relações de cooperação recíproca, tendo sido fornecido elementos urgentes para inquérito naquele país."

O DCIAP combate também o terrorismo e as fraudes com subsídios europeus também são outros crimes de catálogo. Portugal continua bem preparadas para combater as ações de financiamento e de retaguarda de organizações terroristas que têm sido assinaladas por diversos serviços de informações em território nacional?
O trabalho realizado nesta área tem sido bastante positivo. O papel do Ministério Público, na sequência da articulação com os órgãos de polícia criminal, em especial a PJ, tem sido sido reconhecido internacionalmente em casos concretos de cooperação judiciária internacional e, também, no relatório do GAFI — Grupo de Acção Financeira Internacional referente à recente avaliação de Portugal. Foi criado no DCIAP um grupo especializado, que integra quatro magistrados, para dar resposta às exigências de prevenção e investigação atribuídas ao DCIAP quanto a este fenómeno criminal. O DCIAP dá particular atenção, igualmente, à análise e monitorização de eventuais riscos associados a informações, regularmente transmitidas pelas entidades financeiras e outras em sede de prevenção de financiamento ao terrorismo e de branqueamento de capitais. Sempre que é instaurado inquérito por suspeita de atividades terroristas, é efetuada investigação patrimonial para despistar eventuais práticas de atos de financiamento ao terrorismo associados às suspeitas em investigação.

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