Suponho que os manuais de jornalismo tragam definições precisas em relação àquilo que é notícia e que o conceito de “relevância” esteja muito bem explicadinho. Por estes dias também devem trazer sugestões sobre a melhor forma de se chegar ao centro de emprego ou de evitar presidentes de clubes de futebol, mas essas são matérias para outras partituras. A verdade é que o factor notícia e o conceito de relevância foram resgatados pelo Festival da Canção, esse evento que esteve anos a participar como figurante no elenco “The Walking Dead”, até ter sido profundamente reinventado pela RTP com os resultados brilhantes que se conhecem.

De repente as declinações de “amar pelos dois” (treinar pelos dois, resgatar pelos dois, arder pelos dois, etc.) multiplicaram-se ad nauseam, a vida privada de um cantor passou a andar escarrapachada nos tablóides e muito bom português voltou a sentar-se em frente ao ecrã para acompanhar as incidências festivaleiras. E aqui estou eu nesse papel, instado a escrever sobre a emissão e as canções da primeira semi-final da versão portuguesa do concurso. Repare, caro leitor: jornais que resolvem publicar peças sobre estádios intermédios do concurso que estava baptizado de arcaico. Ou pior. De irrelevante. Eppur si muove.

No pós-consagração, fruto de uma conjugação improvável de factores e de uma intervenção fatimidade em ano de centenária das aparições, a RTP viu legitimada a abordagem ao festival e terá sentido a responsabilidade de tentar repetir a fórmula de sucesso. Daí ter voltado a recorrer àquela lógica que implica misturar consagrados e veterania com uma nova geração de músicos e compositores, replicando esse modelo na composição do júri. Tozé bonito-bonito Brito e Mallu Magalhães. Carlão e Júlio Isidro. Jorge Palma e Samuel Úria. Graças ao sucesso alcançado, naturalmente há muitos compositores com vontade de escrever, há uma maior disponibilidade para colaborações, há uma vontade de fazer parte da entourage que ainda cheira a triunfo e glória.

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De notar também a vontade que a estação pública tem de potenciar a ligação às suas rádios – ambiente natural das canções em geral e da pop em particular – daí, eventualmente a participação de protagonistas como Ana Markl e Inês Lopes Gonçalves. Sinergias, integração e optimização de conteúdos, gestão multi-plataformas, aposto que este palavreado faz parte do jargão das reuniões de trabalho no contexto festivaleiro. E se não faz, só lamento que não tenha surgido em nenhuma cantiga a concurso.

A emissão arrancou então com uma justa homenagem a Madalena Iglésias e a partir daí abriu-se a Caixa de Pandora musical, cantada na totalidade em português, apesar de a RTP ter deixado a língua ao critério de cada compositor, Caixa essa que se foi revelando desta maneira:

Bruno Vasconcelos, “Austrália”

(Nuno Rafael / Samuel Úria)

Nuno Rafael é aquele ex-Peste&Sida que hoje em dia é o braço direito do Sérgio Godinho. Aliou-se a um dos melhores da nouvelle vague da música portuguesa actual (Samuel Úria) e escolheu uma voz grave, que no caso esteve mais para o desinspirada. A letra está cheia de pepitas, de puns, como dizem os ingleses, e desconstrói uma geografia dos antípodas que curiosamente tem representante na Eurovisão. Colónia penal fustigada por trocadilhos e neologismos de apetite como por exemplo “é por ti que eu me boomerango”. Sucede que a paródia e a ironia morrem no estilo a meio caminho do deadpan do intérprete que. Triunfará? Quem Koala consente?

Rui David, “Sem Medo”

(Jorge Palma)

Uma canção muito simples, na opinião do compositor. Canção de amor com rugas e sem ambições de apuramento. Em que lugar fica? Não me interessa. Palma continua a ser o mesmo punk com um piano. “Sem Medo” é uma balada de amor competente. A estranheza chega quando reconhecemos Jorge Palma de fio a pavio na canção – métrica, escrita, melodia, arranjos – só que travestida com outra voz. No fundo parece que se perdeu uma oportunidade de levar o próprio Palma ao palco.

Beatriz Pessoa, “Eu Te Amo” – Finalista

(Mallu Magalhães)

Uma canção inspirada pelo amor honesto e com poucas ambições. Duas coisas que estão naturalmente ligadas. “Eu Te Amo” é esculacho de coração decepcionado com direito violão, trompete e programações. Ou seja, decepcionado mas moderno. Competente. Não é uma balada, é uma aragem pop, amparada numa voz segura.

Anabela, “Para Te Dar Abrigo” – Finalista

(Fernando Tordo / Tiago Torres da Silva)

O letrista, que já escreveu para meio mundo, da Adelaide Ferreira aos Dazkarieh, inspirou-se nos seus próprios desgostos amorosos (alegadamente ultrapassados com uma gargalhada). E aliou-se ao histórico Fernando Tordo, que se aliou à emblemática Anabela. Resultado: um drama que começa em tons de vaudeville, um amar de forma louca e destemida e sujeita a repetidas negas, ao som do acordeão e enxertado pelos sons do Brasil, entre búzios e tarô. Um híbrido de linguagens musicais devedor, provavelmente, da mudança geográfica do homem da “Tourada”.

Catarina Miranda, “Para Sorrir Eu Não Preciso De Nada” – Finalista

(Júlio Resende)

Segundo Júlio Resende, a canção não é fácil mas a Catarina tem muito amor na sua voz. A inspiração veio de um sonho e o próprio compositor acha que nunca disse nada tão pindérico. Quem somos nós para contrariá-lo? A toada é calma, melancólica, em contraste com o figurino – exuberante, flamejante, que condiz com a outra encarnação da intérprete, Emmy Curl (bastante recomendável, já agora). “Para Sorrir Eu Não Preciso De Nada” está saturada de rimas, espelho da conversão de um jazzman à pop orelhuda da Eurovisão e não só. Namoradas, água do mar e sorrisos mas rasgo poucochinho. Mas ombreia com qualquer Euro Dance Teen Pop do Azerbaijão.

Joana Espadinha, “Zero a Zero” – Finalista

(Benjamim)

O compositor prefere deixar o tema da canção à interpretação de quem a ouve mas sempre diz que é sobre “afastamento”, mais um sinal de que os corações partidos dominam o alinhamento desta meia-final. Joana Espadinha é uma voz do jazz convertida a uma melodia directamente chegada de 1987. Órgão, coros, sintetizador, paródia que podia entusiasmar a falecida pista de dança do Loucuras. Uma boutade musical cheia de ironia. Só não estou certo que a intérprete tenha alinhado no espírito pós-moderno da coisa. Apesar do fato saia-calça.

Janeiro, “(Sem Título)” – Finalista

(Janeiro)

Janeiro foi convidado pelo Octaviano Augusto Imperador Salvador Sobral e tem a ambição de tocar nas pessoas, de alguma forma, quando sobe ao palco. Em contexto de festival tem um objectivo: que Salvador se sinta orgulhoso. Mas eu diria que foi mais além. Pareceu-me a melhor canção/interpretação: no osso, acompanhada à guitarra do próprio. O tom é literário, a interpretação e a sensibilidade e a afinação, que fazem lembrar o próprio Salvador, lançam pontes entre o trabalho ambos e desvendam a razão do convite. “O dia em que entenderes o meu olhar/ é o dia em que vou deixar de te amar”. Sim, é uma rima. Mas de longo alcance no cadinho festivaleiro dos corações em sangue.

José Cid, “O Som Da Guitarra É A Alma De Um Povo”

(José Cid)

Cid diz que se inspirou na história do povo português, no passado, presente e futuro do “melhor povo do mundo”. Ora bem, temos laivos de guitarra portuguesa e sanfona. E temos piano e requebros de voz à José Cid, claro. E Angola, Timor e Brasil, a roçar o pastiche aos Da Vinci. Cid apelida-nos de Povo de poetas sós… e já agora pouco inspirados. A hagiografia da pátria fica a léguas da sofisticação da Lenda d’el Rei Dom Sebastião e faz pior ao Panteão do que qualquer jantarada. Ao esganiçar ao jeito de Amália nem sequer faltou um pontapé no cançonetismo com a força de um Eusébio.

Joana Barra Vaz, “Anda Estragar-me Os Planos” – Finalista

(Francisca Cortesão / Afonso Cabral)

A compositora refere-se a uma canção de amor para alguém que não se sabe ainda quem é. Nada configura um malaise indie-rock como este sofrimento que nem sequer precisa de chegar. Basta antecipar a cena. Anda por ali um desejo de fracasso, uma guitarra dedilhada e boas cordas, referências a livros e uma voz que condiz com a atmosfera da canção, embora a presença em palco se tenha ressentido do nervosismo, sacrificando a naturalidade. Um tema que podia ter sido pensado por um emigrado nos arredores de Brooklyn ou por um visitante do bar do terraço da ZDB em Lisboa num dia de outono.

Peu Madureira, “Só Por Ela” – Finalista

(Diogo Clemente)

Inspiração: as várias faces do amor, cantadas por uma voz que o compositor considera uma extensão da alma. A interpretação faz-se em toada fadista, com mote e letra a condizer, apesar da escandalosa ausência da guitarra portuguesa (vá, não é escandalosa. Até é salutar). A ausência, o drama, as rezas por interposta pessoa, isto se o crente tiver forças para se levantar da cama, tal é a aura de tragédia, agravada pelo tempo a passar. Amor quer-se é à moda antiga. Ah, boca de incêndio!

Rita Dias, “Com Gosto Amigo”

(Rita Dias / Filipe Almeida)

Esta é uma das duas canções seleccionadas via concurso da Antena 1 (Sinergias, Integração e optimização de conteúdos, gestão multi-plataformas). A intérprete sente-se bem no palco, a canção fala sobre escolhas de mulheres, mas “sem estereotipar”. Escolhas de todxs e tod@s, que todos iremos identificar. A atmosfera é canarinha, o enredo comporta umas flautas da Zona Sul e umas piscadelas de olho (quer dizer, umas buzinadelas valentes) ao património do festival da canção. Simone, Madalena, Anabela e Adelaide enxameiam a letra, o que pode ser abordagem sagaz em contexto de pré-selecção. Mas que nesta fase deixa demasiado à vista o polipropileno inerente ao festival.

JP Simões, “Alvoroço”

(JP Simões)

JP Simões compõe, escreve e interpreta, porque não teve coragem de impingir as idiossincrasias. Enreda-se nas cordas dramáticas, clássicas. Acelera nos jogos de palavras, cala-se com a boca do Buarque. Só que recorre ao pão com manteiga em vez de achar-se calado com a boca de feijão. A métrica galopa de uma forma que irmana este Alvoroço ao hip-hop e a letra há-de ter sido escrita num canto mal iluminado da Casa Independente. O tom é convenientemente boémio e a orquestração casa muito bem com o património de canções da versão portuguesa da Eurovisão. Com a diferença de que no final o Kamasi Washington toma conta de tudo com os seus metais desembestados.

Maria Amaral, “A Mesma Canção”

(Paulo Praça / Nuno Miguel Guedes)

Paulo Praça garante que se apaixonou por uma voz doce, quente e com grão e que a inspiração para a melodia foi divina (mesmo de forma velada, Fátima marca presença). Infelizmente, o vozeirão de Maria Amaral, que já se passeou pelo The Voice e que está confortável na lógica da pop e dos concurso, surgiu com grão a mais. E desafinou. A dada altura a canção garante que há um amor que mete medo, mas o medo cénico pode não lhe ficar atrás. A escrita é bem intencionada, fala de alma e coração, alude à busca pela empatia e faz a apologia do universal; da comunidade e do viver de mãos dadas, em formato de hino compassado. Uma canção sem arestas que tanto podia estar na Eurovisão como no palco da Miss Universo.

Depois do desfilar de canções, ainda houve tempo para um medley bem conseguido de homenagem a Carlos Paião – haverá mais homenageados nos próximos episódios da saga festivaleira – e uma alusão aos feitos da Dina (dos tempos em que Manuel Monteiro ainda não tinha fundado a Nova Democracia), o presidente do júri, o eterno Júlio Isidro, disse de sua justiça. A pontuação máxima do júri foi atribuída ao cantor Janeiro, que apareceu comendo uma banana (um gesto cúmplice em relação ao excluído José Cid?) e o veredicto do público foi favorável ao fado, claro. Peu Madureira a caminho da final, então, na companhia de Janeiro, Catarina Miranda, Anabela, Beatriz Pessoa, Joana Barra Vaz e Joana Espadinha.  Assim se cumpriu a primeira meia-final do Festival da Canção, que voltou a fazer furor nas audiências e nas redes sociais. Como diria outro histórico da RTP: e esta, hein? Para a semana há mais.

Pedro Vieira é pivô de televisão e ilustrador relutante