Em 2023 uma dona de casa americana descobriu que o marido passava o dia a pensar no império romano e divulgou o seu espanto no TikTok dando origem a uma pergunta viral que atravessou todas as redes sociais e saltou para os jornais: qual é o teu império romano? Ou seja, qual é a coisa que te fascina e na qual pensas várias vezes por dia? Mas antes disso já o português de Torres Vedras, criança precoce, diagnosticado com autismo e professor na Faculdade de Letras de Lisboa, encantava, ensinava e entretinha milhares de utilizadores do TikTok com as suas pouco canónicas aulas virtuais sobre Latim, a vida quotidiana no império romano, tudo contado com a graça pícara de Catulo, o seu autor clássico predileto, do qual já traduziu a poesia, editada na Cotovia e com reedição prevista na Quetzal. Começou a fazer vídeos em 2022, rapidamente, conquistou seguidores por Portugal e arredores e, em apenas dois anos já soma cerca de 23, 4 mil discípulos. Muitos destes converteram-se mesmo em alunos de sala de aula, o que levou a um aumento significativo de inscritos no curso de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, que já não está a aceitar todos os candidatos. O anfiteatro onde André Simões dá as aulas está inevitavelmente cheio. Tornou-se uma estrela pop do latim? “Nem pensar, já não tenho onde pôr tantos alunos!”.
O sorriso, que o fotojornalista do Observador Diogo Ventura captou, não lhe é habitual, nem fácil, o que pode passar despercebido a quem o vê a contar histórias maliciosas e irónicas no TikTok, a brincar com os efeitos da câmara de filmar, a fazer jogos de olhar, piscadelas de olho, a conversar com os gatos, a traduzir para latim canções da Taylor Swift, a traduzir palavras obscenas, comentar a cor do verniz que usa nas unhas, ou a explicar os rituais em honra de Portus, o deus das passagens, as datas das calendas, das idas e das nonas. André Simões é autista, e as suas dificuldades sociais e relacionais só são controladas quando está a comunicar sobre o seu universo de eleição: o mundo clássico greco-romano, dos mitos às misérias quotidianas, da poesia melancólica de Horácio à filosofia de Séneca, dos espetáculos desumanos dos gladiadores aos ritos religiosos, da plasticidade do latim antigo com as suas vogais rápidas e longas, as suas flexões e declinações que se perderam na evolução para as formas atuais.
Aos 5 anos já se metia dentro dos armários para ler a Odisseia de Homero na versão infanto-juvenil de João de Barros, aos 15 começou a aprender Latim e grego, ainda em Torres Novas. O diagnóstico médico de autismo só veio mais tarde mas, a obsessão com o mundo antigo, que foi o primeiro sinal da sua neuro divergência, foi também a revelação de um super poder: a capacidade de trazer o latim para o século XXI, retirando-lhe o véu de pureza dado pela igreja Católica, em especial o Vaticano, e mostrando como, para o bem e para o mal, é ainda esta língua e esta cultura que enformam o nosso presente: “o latim não é uma língua morta, é uma língua em evolução. Aquilo que falamos hoje, na Europa, na América, na África é ainda latim. Não defendo o purismo, não acho que a introdução de anglicismos seja um pecado e gosto muito da falta de pudor com que os brasileiros o tratam. Tudo isso é apenas mais uma prova de que a Língua Romana continua viva”, explica na entrevista que nos concedeu, algures nos calabouços de uma faculdade lisboeta em plena canícula de agosto que é como quem diz Augustus, ou Sextilis, seguindo o calendário romano.
Portanto, se há um homem que tem um império romano na cabeça, esse alguém é André Simões, que ironizando declara: “o meu império romano é o império romano.“E aqui há que explicar que não gosta de filmes, nem de séries sobre este povo, à exceção de Roma, série que passou entre 2005 a 2007. Também desconfia que a paixão dos homens americanos por este período histórico, se prende com “uma visão algo estereotipada da masculinidade” e muitas conceções “totalmente erradas” do que foi este império e esta cultura.
Desfazer esses mitos criados pela cultura televisiva e cinematográfica do século XX e XXI é uma das suas missões, mas ao mesmo tempo gosta desconstruir preconceitos, vaidades ou modismos fazendo paralelismos com a vida quotidiana de há dois mil e quinhentos anos: “Acha que o mundo está perdido porque os homens fazem a depilação?”, pergunta num dos vídeos, “fique a saber que os homens romanos tinham um escravo que lhes fazia depilação integral. Assim que o que escandalizou Plínio, o velho, foi quando as mulheres começaram também a depilar-se. Crê que os graffitis são um mal criado por jovens suburbanos em crise? Pois deve então seguir o tiktok deste professor para aprender que graffitar paredes, não com desenhos, mas com frases obscenas escritas a tinta vermelha era um habito romano, que ainda se pode testemunhar nas ruínas de Pompeia, que aliás deve dizer-se “Pompeios”.
Certamente uma das receitas do sucesso de André Simões é essa mistura sábia entre o universo de interesses dos mais jovens, da atualidade da cultura pop, das redes socais, da política, da sexualidade, dos direitos humanos com a história e a cultura romana. Como todos os bons professores ele não só domina a linguagem antiga como sabe ligá-la e entretecê-la com as experiências contemporâneas, mostrando como no passado se encontram respostas para o presente e inquietações para o futuro.
“A verdade é que a nossa extraordinária evolução cientifica e técnica continua a ir ao latim e ao grego buscar os nomes para as coisas novas. Porque nesta vertigem precisamos da segurança que nos dá algo que está estabilizado. O mundo romano e grego são como um colo adulto para uma criança assustada, por isso vemos hoje esse ressurgimento do fascínio pelos mundos antigos”, explica. Hoje vemos de novo os cursos de Estudos Clássicos encherem-se de alunos, “mas este interesse já se nota há uns dez anos”, nota. “E não creio que se explique só pelo mediatismo”.
Serão as redes sociais o novo motor da história?
Contra todas as visões apocalípticas do mundo virtual, todos os perigos reais e imaginários das redes sociais e todo o moralismo que gosta de classificar como nulo todo o conhecimento que se adquire fora da Academia, André Simões é a prova que realidades diversas convivem. E se hoje se nota que as novas gerações têm menos vocabulário e leem menos livros, também é verdade que há muitos que simplesmente vão buscar informação, conhecimento, cultura a outras fontes. Que o TikTok seja um lugar onde se está a produzir informação de qualidade, que esteja a contar histórias que não chegam aos media tradicionais, que estejam a ser a escola política que os partidos já não conseguem ser, é uma realidade que a história de André Simões testemunha. “Comecei a fazer vídeos para o youtube durante a pandemia, quando tinha que dar aulas online, porque achei que poderia preparar as aulas e alojá-las lá para os alunos verem quando quisessem. Não sabia nada, muito menos fazer vídeos. Aprendi e em pouco tempo os vídeos chegaram ao Brasil, comecei a ter milhares de visualizações. Mas foi no TikTok que descobri outras pessoas que estavam já a fazer estes conteúdos de história, de literatura e decidi experimentar”, recorda. “Descobri que era mais fácil usar aquelas ferramentas, encontrei a minha voz, o meu espaço, em que tenho uma enorme liberdade criativa, para todos os efeitos aquilo não são aulas, são uma expressão dos meus interesses pessoais, sem a angústia de ter que interagir de facto com pessoas. Encontrei no ecrã o mediador que me faltava para descobrir a minha faceta de comunicador”, diz com ênfase.
Os conteúdos que fez para o youtube continuam lá para quem quiser ver, e podem ser encontrados digitando as palavras “canaldelingualatina”. Mas, atualmente, é um dedicado trabalhador do TikTok, embora não receba nada por isso, pois em Portugal os conteúdos desta rede social com sede em Singapura, não são monetizados ao contrário do que acontece em muitos países. Apesar disso, Simões produz trabalhos novos todos os dias, que acumula com as aulas na faculdade, a nova tradução de Catulo e a preparação de um livro sobre a vida quotidiana dos romanos, a convite de uma editora portuguesa.
A tradução do latim é algo que o entusiasma bastante, e embora também fale grego e árabe, o latim é onde se move melhor.”Sinto que faltam ser traduzidas muitas obras importantes dos clássicos romanos para português”, diz, e recorda o sucesso das traduções de Frederico Lourenço e Carlos Ascenso André, que mostram que há um público que se interessa pelo império romano não por causa de uma ideia de guerreiros, conquistadores, gladiadores: “Há todo um conhecimento armazenado nestes autores antigos que era importante termos disponível para os estudantes e os leitores. Eu, pessoalmente, tenho esperança de traduzir as Cartas de Plínio, o moço, as Sátiras de Juvenal, e a História Natural, de Plínio, o Velho”.
Outro do temas que gosta de abordar nos seus vídeos é a violência destes mundos antigos governados por deuses e homens inclementes, onde se ia assistir à morte de homens numa arena. Questionamos se a violência desapareceu ou apenas se transfigurou em algo mais subtil. O que é o Big Brother senão uma luta indigna do ser humano na arena mediática? O que são as touradas senão uma reminiscência dessa violência sanguinária como espetáculo para multidões? “Apesar de tudo não é tão mau como os gladiadores”, afiança. “O meu medo vem de saber que os direitos humanos duramente conquistados podem desaparecer no espaço de uma geração. Esse mundo, onde as mulheres não tinham sequer direito a nome próprio não foi assim há tanto tempo. Dois mil e quinhentos anos não são nada na história da Humanidade. Isso sim, tira-me o sono”, desabafa.
“Também vou muito a escolas secundárias onde percebo como os jovens têm como adquiridos certos direitos. Há raparigas que me perguntam: ‘e se as mulheres não quisessem?’. E eu tenho de lhe explicar que as mulheres “não existiam” no império romano, e que em Portugal só votam há 50 anos e que até há poucos anos não se considerava sequer a violação dentro do casamento, porque essa era a função da mulher. Falar do império romano serve também para lembrar às pessoas que tudo é precário e exige a nossa constante atenção“.
Outra coisa que merece a atenção de André são as tatuagens escritas em grego e em latim e que ele gosta de ler em voz alta, pois quase todas “são totais disparates” que não querem dizer nada e que o latim não desapareceu com o fim do império romano, aliás a especialização deste professor é mesmo o “latim medieval” e depois, pasme-se, o latim usado em Portugal já no século XVII — a sua tese de doutoramento foi sobre a correspondência entre os reis portugueses e o Vaticano durante as guerras peninsulares, os meandros do poder, portanto, o que prova que nem sempre as boas intrigas são protagonizadas por atores norte-americanos, num canal de streaming.