Como é que se constrói a memória coletiva e porque é que ela é importante para o entendimento do mundo e da sua História? Foi esta problemática o ponto de partida uma conversa com António Filipe Pimentel (n.1959), historiador de arte, ex-diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, atual diretor do Museu Calouste Gulbenkian, e pró-reitor da Universidade de Coimbra entre 2007 e 2009.
Pimentel traça, em linhas fortes, as origens e consequências de um mundo a viver na desmemória. O dedo fica na ferida de um sistema de ensino que diz estar “obsoleto”, mas também de uma incapacidade patológica de encarar as realidades, bem como de uma autoestima nacional baixa e de uma obsessão pelo imediatismo e pelos caminhos mais fáceis. A natureza humana está em pano de fundo.
A história tem-nos provado que isto o homem é o único animal que depois de errar, repete o erro. No entanto, o homem é também um animal com memória…
Os animais normalmente não têm memória, funcionam por ciclos de instinto. O homem tem memória, efetivamente, mas tende a ter comportamentos de patologia que são os da recorrência. Não é que a história se repita, ela funciona antes por ciclos como a hélice, como uma mola, parece que voltamos ao mesmo ponto, mas, na verdade, vamos sempre evoluindo. Vamos sempre fazendo coisas diferentes, embora, exista essa oscilação de risco. Hoje em dia estamos com uma desvalorização crónica da memória a todos os títulos, até porque tudo o que é antigo nos soa mal. Nós próprios perseguimos a eterna juventude. Estamos obcecados com o estar em forma. Lembro-me que os meus avós eram velhinhos com a idade que eu tenho hoje.
A nossa esperança média de vida também aumentou muito.
Sim. E temos uma perceção de nós próprios diferente. Noutro dia, li um artigo sobre isso e que explicava que a imagem que temos de nós próprios é normalmente vinte ou trinta anos desfasada da realidade. Um fenómeno! Isto para dizer que nós, hoje em dia, na civilização, não prezamos o que é antigo. E, portanto, desvalorizamos a memória. Daí a falta de peso que a terceira idade tem nas decisões, etc. Nas civilizações tradicionais, ser ancião era um posto.
Era uma mais-valia.
Essa mais-valia vinha do facto do ancião ter a experiência, ele carregava a memória das gerações, a tradição, a transmicio.
Mas antigamente, quando começávamos a trabalhar numa empresa, os mais velhos é que nos ensinavam. E agora?
Agora estamos numa espécie de espargata. Em Portugal, estamos envelhecidíssimos. Sabemos os riscos que corremos por termos uma sociedade altamente envelhecida e onde os postos dominantes são tomados pelos mais velhos que não dão espaço aos mais novos.
Ficamos agarrados aos lugares?
Ficamos. Entramos em contraciclo. Mas, em contrapartida, de facto, civilizacionalmente, a idade não é valorizada. E como a idade não é valorizada, a experiência não é valorizada e a memória também não.
Daí que o homem continue a errar e a fazer as mesmas coisas que não correram bem no passado?
Esse é também o problema do ensino. O ensino desvalorizou totalmente a memória histórica, porque o projeto europeu tentou ser feito contra a memória comum. E isso foi péssimo. Foi uma espécie de erro de casting que agora iremos pagar com língua de palmo, porque, na verdade, o que acontece é que as novas gerações não têm formação histórica e formação histórica é a memória coletiva.
Quando diz que o projeto europeu foi feito contra a memória, fala especificamente em quê? Na abolição daquilo que era a geografia e a história dos países enquanto entidades territoriais?
Exatamente. Ou seja, foi um projeto levado a cabo por burocratas e os burocratas tendem a simplificar a realidade, subsumindo-a ao lado administrativo. E, na verdade, infelizmente, a história ensina-nos o oposto. Quando não existe memória crítica, tendemos a tropeçar no passado. Veja o que acontece no Irão, por exemplo. Já para não falar na quantidade de estados falhados que estamos a acumular e que é uma situação absurda. E tudo isso tem que ver, de facto, com a desmemória, que é uma coisa terrível.
Podemos até recuar às guerras mundiais, ambas têm início por quezílias entre estados ou espaços territoriais que não são entendidos como tal.
É isso mesmo. É o problema da memória. O Stefan Zweig falava exatamente disto. Quando a Humanidade, após 15 anos, tropeça nos mesmos erros é dramático.
Como é que construímos a memória coletiva, a memória histórica, política?
Construímos a memória a partir do momento em que não generalizamos apenas a literacia mas também a cultura. Mas não estamos a fazer isso. Ou seja, nós, de facto, eliminámos a taxa de analfabetismo praticamente, o que é uma coisa excelente, obviamente, mas isso foi feito à conta da divulgação da literacia, mas não da cultura, não daquilo a que se chamava Cultura Geral. Não é por acaso que a Faculdade de Artes era a que precedia todas as faculdades. A Faculdade de Letras é, no protocolo universitário, a decana das faculdades, tem precedência sobre todas as outras por ser herdeira da Faculdade de Artes que era o cimento de todas. Começava-se por frequentar as Artes e depois então, uma vez graduado em Artes, ia-se para Medicina, para Leis, para o que fosse. Isso era fundamental. O meu pai, por exemplo, era engenheiro civil e eu fui ao Museu do Prado com ele tinha para aí nove ou dez anos. Isto porque, obviamente, não lhe passava pela cabeça não ir. Era uma pessoa que discutia tudo e lia de tudo, o meu avô também e era médico. Pessoas de Ciências que eram atentas à História. Hoje em dia isso não acontece. Os miúdos vão para Ciências e saem sem saber História, aliás vê-se o que são os inquéritos feitos à porta da faculdade e as coisas absurdas que eles dizem. Nós rimo-nos, mas é trágico. A verdade é essa.
Como é que em Portugal vê a questão das Artes como competências a conhecer e a adquirir?
Em Portugal, estamos na cauda da situação. Temos um tecido extremamente débil e chegámos tarde a uma série de coisas, nomeadamente à eliminação do analfabetismo. Isso fez com que as carreiras sejam muito rígidas e não haja espaço para a transversalidade que existe nos Estados Unidos, por exemplo, com os cursos de banda larga, que significam um mercado de trabalho muito mais amplo e muito mais ágil. O nosso continua a ser muito rígido, ou seja, a formação numa determinada área dá valência apenas para fazer aquilo para que a pessoa foi habilitada e não para uma espécie de ginástica dos neurónios que é aquilo que a formação, na verdade, deve fazer. Quando estava no Museu Nacional de Arte Antiga, via muitas vezes os grupos de alunos que vinham de liceus internacionais e a diferença para com os estudantes portugueses. Enquanto os nossos iam naquele conceito de visita/excursão atrás do professor, os internacionais vinham sempre com a matéria sabida e eles é que davam as aulas aos professores. E não eram alunos de letras, eram alunos que depois haviam de ser astronautas, astrofísicos ou o que fosse, mas quando chegassem lá tinham essa bagagem. Isso significa que tinham a capacidade de ser imaginativos e criativos e isso faz uma elite de um país. O problema é esse. Nós temos um défice crónico de elites precisamente por este ensino tão rígido. O nosso sistema de ensino, aliás, está desadaptado a tudo. Continua a ser basicamente o ensino dos meus trisavós com alguma adaptação de conteúdos. Por exemplo, a nossa literacia financeira é um horror. E estou a falar de uma coisa extremamente prática. Na verdade, estamos na cauda da Europa, e os estudos assim o indicam, não só no consumo cultural, como em matérias do tipo da literacia financeira, que é algo que pelo menos desde a crise de 2008 está na ordem do dia. Faltam-nos conceitos de natureza prática e faltam-nos os teóricos.
Também não temos a consciência de que podemos pensar, nem sequer sabemos que a ginástica mental é uma coisa que cada um de nós pode desenvolver.
Claro. Por isso é que vemos que internacionalmente se escolhe cada vez mais para empresas pessoas de Humanidades. As pessoas de Humanidades têm isso, têm a capacidade de pensar. Estamos a falar das boas pessoas de Humanidades, entenda-se. Têm a capacidade de saber olhar para um problema, diagnosticá-lo e saber por onde começar a trabalhar esse problema.
A consciência analítica e crítica?
Sim, e têm a imaginação para fazer coisas. Já nós, continuamos reféns do mesmo sistema, que é tentar produzir mais barato do que os outros. O que é péssimo, porque, evidentemente, é uma espécie de causa perdida. Haverá sempre chineses ou quem consiga produzir mais barato noutro lado do mundo. Não conseguirão produzir é português. Isso significa produzir coisas que tenham a nossa marca e a nossa marca é a nossa cultura. A questão é tão simples quanto esta.
E conseguiríamos inverter esta situação?
Não de um instante para o outro. Esta situação está ancorada na educação e levará, por isso, pelo menos 30 ou 40 anos a dar novos frutos. E como nenhum Governo tem a esperança de lá estar 30 ou 40 anos… é difícil que aconteça.
Pensamos muito no imediatismo?
Pensamos muito no imediatismo por causa da falta do culto da memória. Os chineses, por exemplo, são exatamente o oposto. Estão sempre a pensar não no hoje mas no amanhã. E isso leva-os a urdir aquelas faroleiras que nos atam a nós no Ocidente.
A representação histórica na Arte contribui também para essa consciência? É uma maneira diferente de analisar cada momento do passado?
Claro, a História da Arte o que faz é isso mesmo: usar o método da História para analisar uma outra realidade. Ao estudar o objeto no seu tempo, e não o homem no seu tempo, como dizia o Lucien Fèvbre sobre a História. E é, por isso, a memória crítica das coisas. A Arte é uma linguagem que exprime muitas coisas que não podem ser ditas por palavras e têm que ser questionadas a partir dessa análise global e, sendo que, na verdade, cada um faz a aproximação que faz, o que é muito interessante do ponto de vista da relação estética da Arte e do património artístico com a comunidade, porque é uma relação individual.
Mas lá está a capacidade de olhar para o que aconteceu, pensar sobre isso e descrevê-lo de uma outra forma. E, ao mesmo tempo, ir introduzindo elementos novos nesse discurso artístico.
A Arte é isso, uma espécie de respiração da sociedade. Se a sociedade não consome Arte, acaba por ser feita de operários especializados e isso é um problema.
Portanto, o primeiro passo é reformular o sistema de ensino?
Sim. O ensino é a base, o que significa valorizar a carreira dos professores e é nisso que estamos a tropeçar. Em vez de estarmos a tentar resolver o problema, estamos nos antípodas, estamos a afastar-nos cada vez mais da solução.
Ainda temos aquela ideia de que quem vai para Humanidades é porque não sabe fazer outra coisa?
Exatamente. É um processo doentio, é patológico. Aliás, quando um povo tem de si uma má imagem e tem o seu património em estado negligente, é exatamente como uma pessoa que não toma banho, ou que não corta as unhas, ou por aí fora. Evidentemente, tem uma doença do ego, tem a autoestima muitíssimo baixa e precisa de ser tratada psicologicamente. Quando um país faz com o seu património o que nós fazemos e com a sua paisagem o mesmo, tem essa mesma doença, tem essa patologia, tem a autoestima muito em baixo. O Eduardo Lourenço estudou e falou disso mesmo. Nós temos o supra ego e o infra ego completamente desgovernados. Temos uma imagem de nós grandiosa, ou temos uma imagem completamente apoucada. Falta-nos aquele meio termo.
É por isso que estamos permanentemente a valorizar os Descobrimentos e não conseguimos olhar para a Guerra Colonial?
É isso exatamente. Mas os Descobrimentos foram há 500 anos! Aliás, vê-se os problemas que essa desmemória pode trazer. Veja-se em Espanha, a Catalunha. São as patologias da memória. As pessoas, de repente, achavam que estavam fartinhas de ouvir falar da transição e o que era muito importante era o Cerco da Catalunha em 1716, que era uma coisa que ninguém viveu.
Porquê a tendência de olhar para o passado com a memória que ainda temos dele e pensá-lo de uma forma diferente? Falo da necessidade de reescrever os manuais e de um politicamente correto que altera o que aprendemos… É o olhar para a História com os erros que hoje conseguimos apontar mas que à época não conhecíamos?
O anacronismo é péssimo em História. Não podemos julgar o passado com os critérios de hoje, porque seremos julgados pelos mesmos critérios. “El hombre y su circunstancia”, como dizia o Ortega Y Gasset, é o homem gerindo a sua própria circunstância e a circunstância é feita dos instrumentos que se tem. E os instrumentos que temos são teóricos, éticos, etc., e isso vai mudando de tempo para tempo.
É necessário haver uma atualização dessa História?
Claro. Mas isso para não voltarmos a cair nos erros do passado. A questão da escravatura, que era no fundo aquilo de que estávamos a querer falar, devemos olhar para ela como uma coisa indigna, obviamente, de forma a não a praticarmos hoje, mas não por forma a apontarmos o dedo ao nosso tetravô, porque fez uma coisa que na altura era normal fazer, até porque não havia para a vida humana o conceito de dignidade que existe hoje. Não havia a Declaração Universal dos Direitos do Homem, nada disso. Infelizmente, para o melhor e para o pior, como o homem é o principal inimigo dele próprio, a escravatura foi uma chaga cultivada por todas as sociedades.
Mas não estamos de certa forma a fazer o mesmo hoje com os migrantes?
Ora pois, a questão é essa. Era aí que eu queria chegar, estamos a fazer o mesmo com os migrantes, com a escravatura sexual, com o trabalho infantil, com uma série de coisas. O problema é que isso desfoca-nos da realidade. Esta flagelação que temos de apresentar pedidos de desculpa coletivos a propósito de coisas que aconteceram há 500 anos é uma espécie de contaminação do protestantismo, advém da confissão coletiva dos protestantes. Não é por acaso que é nos países anglo-saxónicos que essa tendência é mais visível.
É a mesma coisa com a necessidade ou aceitação da devolução de bens aos seus países de origem?
Outra obsessão. Ora isso está arreigado a um conceito que acho que está ultrapassado e que é o conceito de nação. Os bens não são nacionais, os bens pertencem ao mundo, o passado pertence-nos a todos, não é o passado inglês, o passado espanhol, o passado americano ou o passado do Sudão, é o nosso passado coletivo.
Por um lado, avançamos nesse olhar para o mundo como um mundo global e queremos esbater todas as fronteiras, mas, por outro, agarramo-nos a um particularismo que já nem existe?
Entre uma coisa e outra, precisamos de criar o nosso meio termo. Isto até para evitar a existência de uma reação negativa do outro lado.
Há já artistas e ativistas brasileiros, por exemplo, a repudiar o facto de se falar em descobrimento do Brasil. Sabíamos que havia povos indígenas no território, mas não foi por isso que deixámos de o encontrar pela primeira vez e o demos a conhecer ao Ocidente. Não estamos com isto a levantar a questão de quem são os narradores da história?
Obviamente. A história é sempre feita no presente. E, claro, voltamos à questão da memória. A memória é sempre instrumental, nunca é inocente. Embora a história tente ser uma ciência equidistante, na verdade, o passado morreu completamente. Nós, do passado temos meia dúzia de fios com os quais tentamos reconstituir um olhar parcial sobre uma realidade parcialíssima. Do passado resta um fio esquálido que tentamos interpretar mesmo na presunção de o fazermos da forma mais assética possível e isenta. Sucede que essa narrativa é depois absorvida por uma comunidade que já não tem o culto da memória. E que tende a absorver essa narrativa como se lia a Bíblia, com uma leitura muito dogmática e sem a noção de que aquela é uma leitura interessante entre não sei quantas outras leituras possíveis do que se passou. Certo é que o passado morreu inexoravelmente. Tentamos preservar dele uma memória, que, ao ser feita por nós, é instrumental, feita com os preconceitos do nosso próprio tempo. Daí a existência de escolas e de correntes de pensamento. Estamos aqui graças aos erros e acertos do passado e continuaremos aqui a fazer erros e acertos.
No fundo, é a capacidade de juntarmos várias escolas e correntes, várias verdades para conseguirmos construir uma outra ou a nossa verdade.
Sabendo nós que a nossa verdade é apenas também ela parcial, não é a verdade absoluta, porque a verdade com V grande não existe. Isso é uma questão epistemológica, é uma questão de pensamento e de atitude. Se temos a humildade de perceber que a nossa verdade é apenas a nossa verdade e por isso também uma verdade sempre em construção, ou, ao contrário, dogmaticamente, aceitamos que é a única verdade possível e que não há outra. O que acontece no mundo de hoje é que estamos muito neste último registo. As verdades são absolutas e, por isso, as pessoas tendem a votar com o coração e não com a razão e por aí fora.
O mundo já votou assim e votou mal.
Mas estamos outra vez a pensar e a votar com esse lado muito emotivo. Se aquela pessoa de quem gostamos nos impinge a verdade dela, é ótima. O outro de que não gostamos pode estar a dizer verdades sérias, mas fechamos os ouvidos.
Estamos a assistir a isso em Portugal. Os portugueses são assim tão avessos ao raciocínio ou é à curiosidade? Questionamos pouco?
Acho que sim. Somos pouco curiosos por natureza. Somos acomodados por natureza. Somos aquilo que nos protegeu da Covid-19, por exemplo. Pensamos em nós antes de tudo. Em nós fisicamente e no nosso pequeno mundo. Nós e a nossa família. E isso é que importa. Depois, com o Estado temos uma relação sempre distante. Isso é, em 800 anos, atávico. E tem o seu lado bom e o seu lado mau. Como tudo na vida. Se temos o diagnóstico feito, conseguimos perceber e viver com aquilo que temos e, de algum modo, liderar esse processo, se não, somos vítimas dele.
Em Portugal o que é que deveria mesmo fazer parte da memória coletiva?
O passado inteiro, aqui como em qualquer parte do mundo. Obviamente, o nosso passado como país e como nação, mas também o passado do mundo. Nós nunca existimos isolados dos outros.
Mas há episódios históricos mais importantes do que outros? Como é que deveríamos olhar para o nosso passado?
O passado mais próximo é aquele que devemos ver com maior acuidade, nomeadamente o século XIX e o século XX que, aliás, continuaram ligados. Na verdade, o século XIX só se resolveu na viragem para o século XXI. Isso é fundamental para percebermos onde estamos e tentar, de algum modo, dar um choque anímico que permita sacudir alguma energia. O país está com uma falta de energia visível.
Está um pouco amorfo, não é?
Isso mesmo.
No próximo ano vamos comemorar os 50 anos do 25 de Abril e percebemos pelas reportagens de há dez anos a esta parte que os mais novos nem sabem o que aconteceu.
Vê-se a falta de estímulo e de entusiasmo nacional pelas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Vão ser uma coisa retórica.
Voltando ao mundo e à sua história: como podemos olhar para todos aqueles governantes que quando chegaram ao poder destruíram tudo o que o anterior tinha feito?
A Damnacio Memoriae [condenação da memória] é sempre um sinal de pequenez. Eu, por exemplo, nos meus desafios profissionais, tive sempre, no primeiro dia, a consciência de que não tinha feito nada por aquilo e que o que estava a receber era fruto do trabalho dos outros. Estava a receber uma casa e uma estrutura feita pelos outros. Podemos trazer muitas ideias mas ainda não fizemos nada pela instituição que estamos a receber. Acho que esse é um exercício metódico que a pessoa deve fazer. É um exercício, por um lado, ético, e, por outro, lógico. A partir do momento em que reconheço o trabalho que os outros fizeram, corrijo-o naturalmente, imprimo-lhe a minha marca, mas significa que, ao fazê-lo em continuidade, os frutos nascerão muito mais rapidamente. Se faço tábua rasa, tenho que semear, arar… e quando os frutos nascerem se calhar já lá nem estou. E o outro que vem vai fazer exatamente a mesma coisa. É uma estupidez. É pensar pequenino. É uma tendência maniqueísta, que é muito típica da Humanidade. Mas é uma tendência infantil, ver tudo a preto e branco, ver o bem e o mal, e nós somos o bom e os outros o mau… Acho que a maturidade nos leva a perceber o oposto.
O mesmo se aplica ao país.
Ora bem. É quando a Ciência entra na História que se percebe que a História é muito mais feita de continuidades do que de ruturas. Embora, na verdade, fossem as ruturas que se heroicizaram. As ruturas e as revoluções têm sempre o problema de serem protagonizadas por pessoas que foram formadas na realidade anterior e contra a qual estão a lutar. E por isso é que as revoluções são sempre a pior forma de evoluir. É muito melhor evoluir por reforma, o que significa pequeninas revoluções todos os dias.
Mas lá está, é desses atos e dos homens que os praticam que nos lembramos com mais facilidade.
É muito mais fácil. Por isso é que somos o país das inaugurações e não dos almoxarifes. Os almoxarifes desapareceram. O almoxarife é aquele que está todos os dias a verificar se as coisas estão bem e é aquele cujo trabalho é humilde mas que permite que as coisas vivam e se mantenham. Nós fazemos a inauguração com pompa e circunstância, três anos depois já está tudo decrépito e então fazemos outra inauguração e deixamos a placa com o nosso nome em letras grandes. Somos o país de vossa excelência e dos senhores doutores. Os espanhóis têm um rei e depois tratam-se todos por tu. Nós somos os reis de nós próprios e, portanto, os senhores doutores…
É o pequeno poder.
O pequeno poder acaba por nos consolar na falta do efetivo poder.
[Matéria de Risco é uma rubrica de entrevistas com personalidades e agentes culturais sobre arte, sociedade e atualidade]