A relação entre a arte e as consequências do colonialismo é antiga e permanente e foram obras de arte aquilo que primeiro se reclamou às nações colonizadoras. Os artistas, pensadores, filósofos e historiadores nunca deixaram de olhar para o que aconteceu em África. Em Portugal, na linha da frente destes movimentos, o investigador e programador cultural António Pinto Ribeiro foi quem mais se destacou, quer na produção crítica sobre a matéria, quer na curadoria de muitas exposições com esta temática como aspeto central.
Numa altura em que o tema voltou à agenda política e cultural, depois das declarações do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, sobre reparações a antigas colónias por parte dos países colonizadores, Pinto Ribeiro, que foi também diretor artístico da Culturgest e da Gulbenkian, desmonta em entrevista ao Observador o que diz ser “alguns equívocos”, esclarece factos, aponta caminhos e descreve um país com “mentalidade colonial”, “nostálgico” e “atrasado” num processo de descolonização mundial “inevitável” a que “urge dar início efetivo”.
Como é que o passado colonial tem surgido na arte e como é que a arte o tem tratado? Até que ponto a representação artística de um problema histórico e de memória tem relevância no século XXI?
Este debate é muito mais antigo do que o que se pensa. Um dos primeiros testemunhos de reclamação de obras de arte data de 1920. É feita por um africano de Cabinda que reclama por uma obra que tinha sido levada para o Museu do Homem, uma coroa de um rei. E ele dizia precisamente que essa coroa só fazia sentido ali, em Cabinda, pois era uma questão de identidade. Tem havido reclamações e tem havido até algumas restituições, poucas, mas tem havido. No entanto, foi um processo que se avolumou bastante a partir dos anos 1970, quando a UNESCO tomou uma posição e aconselhou os países a devolverem o que não lhes pertencia. Era a UNESCO, não era nenhum grupo de trabalho, nenhum grupo de ativistas. Porém, esta tomada de posição manteve-se mais ou menos num limbo. Voltou a saltar com força muito mais tarde e por duas razões. Primeiro, porque há uma pressão muito grande da nova massa crítica africana. Embora isto tenha também acontecido noutros continentes, esta força de reclamação tão intensa deve-se, de facto, a uma nova geração de filósofos, pensadores, artistas africanos ou afro-europeus, que tem feito muita pressão nesse sentido. E, também nesse sentido, Macron fez o famoso discurso de Ouagadougou [Burkina Faso], em 2017, e encomendou um estudo sobre o património de origem africana nas coleções públicas francesas. Isso foi determinante do ponto de vista de alertar os estados europeus para este problema de enorme dificuldade de resolução.
Qual o papel das artes neste processo?
As artes têm tentado esclarecer a situação do que foi o colonialismo e os seus impactos. E isso, de facto, não tem sido feito em Portugal. Quando digo esclarecer é mesmo esse o sentido, ou seja, tornar bastante claro o que foi o processo da escravatura e o que foi o processo colonial e as suas consequências.
De que forma?
Há primeiro que esclarecer e para esclarecer é preciso haver investigação, é preciso haver trabalho de cooperação, e é preciso também haver a consciência de que a descolonização dos museus não é independente daquilo que é a descolonização do mundo. Os museus não são ilhas. As fundações não são ilhas, as coleções não são ilhas. Estão ligados à vida política, à vida social, à vida económica. No fundo, faz tudo parte de um sistema e, portanto, não se pode olhar apenas para este problema da devolução das obras como um facto isolado. Ele está inserido num contexto muito mais vasto de esclarecimento do que foi o colonialismo e do que foi o processo da escravatura e de como é que estas coisas estão associadas umas às outras. O colonialismo não vai ser resolvido nos próximos tempos. Já não se pode voltar atrás. Há um colonialismo que pode ser resolvido, esse sim, e pouca gente tem falado dele. Temos que descolonizar a Europa. E temos que descolonizar Portugal.
Mas olhamos para a Europa como um território colonizado ou colonizador?
São de facto duas situações distintas e interessantes. Foquemo-nos na Europa e no Portugal colonizadores. O pensamento e a mentalidade da maioria dos europeus é um pensamento colonial. E como é um pensamento colonial, precisa de ser descolonizado. Isso faz-se ao longo de muito tempo, com um trabalho pedagógico, com um trabalho político. Por outro lado, de facto, há uma parte da Europa que parece estar ausente deste debate, que é a relação colonial que a União Soviética teve com os países que colonizou. É uma das razões da ambiguidade do Partido Comunista Português e dos vários partidos comunistas em relação a esta questão. Não tomam uma posição muito clara.
Tornar-se-ia uma contradição?
Exatamente. Se advogarem o debate do colonialismo, a questão da relação da União Soviética com os países que faziam parte desse universo é posta em causa.
E de que processo de descolonização de mentalidades estava a falar?
É a chamada descolonização do espírito que temos que fazer e está longe de ser feita. E está longe de ser feita mormente em Portugal por uma ausência de políticas de memória.
Que conceito de “Memória” é esse que, de alguma forma, se opõe ou diverge do conceito de “História”?
De uma forma expressa e propositada de alguns governos e instituições, ou de uma forma alheia, não tem havido políticas de memória. Não havendo políticas de memória, o que tem acontecido é haver um determinado conjunto de premissas e de ideias que decorrem ainda do Estado Novo. Parte da História que é ensinada nas escolas parte ainda dessa ideologia. Não quer dizer que seja toda, mas uma parte é continuidade do Estado Novo.
É o mesmo discurso?
É um discurso muito semelhante. Nomeadamente no que diz respeito à questão da Expansão, da conquista e da posse dos territórios.
Quando falamos em discurso, falamos da narrativa que é contada e ensinada?
Exato. E nisso todos os governos têm tido responsabilidade, todos sem exceção. E nós académicos também temos tido responsabilidade e vocês, comunicação social, têm tido uma enorme responsabilidade na forma como têm lidado com este assunto, não investigam, não trabalham do ponto de vista quantitativo e qualitativo estas questões e isso paga-se. Há depois uma manipulação destes dados que convém a alguns grupos, como é óbvio.
E que diferença é essa entre História e Memória?
Tenho ouvido muitas vezes falar na História com H grande, no amor à História e por aí fora, esquecendo-se que a História é apenas uma narrativa. Não há nada de ontológico, e peço desculpa pelo palavrão, nada de essencial na história de Portugal. É uma narrativa. E é uma narrativa que foi construída segundo as épocas. É normal que hoje tenhamos uma narrativa diferente daquela que era há 20, 50, 100, 500 anos.
Faz-se um bicho de sete cabeças porque parece que estamos a mexer numa coisa que é estática, é isso?
Claro que estamos, mas ela não é estática. As narrativas históricas, felizmente, são produzidas num tempo em relação ao passado. É necessário que assim seja. Isto porque também há factos novos, investigação nova, tecnologias novas que hoje descobrem outras situações e factos e ajudam na interpretação que há 50 ou há 200 anos não era possível. Portanto, ainda bem que há uma nova História, ainda bem que há a reescrita dessa História. Mais, ainda bem que na questão colonial e na questão da escravatura hoje já tenhamos o contributo de outros historiadores oriundos exatamente de territórios que foram colonizados e que nos dão também a visão deles.
Outra perspetiva da mesma realidade.
Exatamente. Isso é que é importante. Aquilo que é uma utopia, que é a História global, no fundo é uma negociação entre as múltiplas narrativas. E não podemos abdicar desse processo da reconstrução e da, cada vez mais necessária, reescrita da narrativa da História. É tão simples quanto isso. Ora isto não convém a muito gente que se agarra a um jargão cheio de ideologia nacionalista pró-fascista, porque mitifica uma ideia da História, que não existe. A própria conceção da memória coletiva é uma produção do Estado Novo.
Há ou não um conflito entre Memória e História?
Durante muito tempo houve um conflito entre os memoralistas, se assim se pode dizer, pessoas que privilegiam a memória, e alguns historiadores, porque os historiadores também não são todos iguais. Esse conflito tende a atenuar-se porque se sabe hoje que não é mais possível que a investigação histórica nos arquivos, nas bibliotecas e nas narrativas seja suficiente. Sabe-se hoje que o contributo que memórias pessoais, memórias de grupo ou memórias de tribos é determinante e deve ser considerado. Que há uma cientificidade na História que é necessária para legitimar um conjunto de memórias. Este processo está em andamento, apesar de relativamente novo, mas é muito importante.
Esse conceito de memória como um espaço também científico para tratar acontecimentos não está definido no senso comum… O que existe é uma ideia muito estática de que a História é uma quantidade de factos que aconteceram e são indiscutíveis. É assim que o português pensa.
Porque é isso que lhe transmitem?
Sim, é isso que lhe transmitem. Transmitem-lhe na escola, transmitem-lhe através dos partidos. Temos uma Assembleia da República em que três quintos dos deputados são profundamente reacionários em relação a esta questão. São os dois partidos de direita, o de extrema-direita e há uma parte do Partido Socialista com um grupo profundamente reacionário também. Vamos ser claros. Felizmente que não são todos assim. Como isto decorre muito da narrativa e dos discursos políticos, tem impacto, naturalmente. Há um equívoco muito grande que é produzido propositadamente, que é confundir o Estado português com os portugueses. São coisas distintas. O Estado português é o responsável pela escravatura, é responsável pela colonização. E é um facto que houve um conjunto de portugueses que se aproveitaram ou beneficiaram dessas duas situações. Mas houve também um vasto conjunto de portugueses que não só também sofreram com essa situação, como, em muitos, muitos casos, eram contra o colonialismo e a escravatura. Dá muito jeito confundir, como se houvesse uma identidade total entre o Estado e os dez milhões de portugueses mais a diáspora. Este é um processo profundamente demagógico cheio de perversões. Isto também era importante que se esclarecesse quando se fala na memória colonial e se diz que a descolonização foi um desastre. Não conheço descolonização que não tenha sido difícil. Não conheço países que se tornaram independentes sem que isso tivesse implicado lutas e conquistas, dor e morte e por aí fora.
Ou seja, defende que é um processo pelo qual é impossível passar sem feridas.
Sabe o que é que eu acho absolutamente incomum e que me incomoda mesmo como ser humano? É haver pessoas que acham que a escravatura teve o seu tempo, que o colonialismo teve o seu tempo e que tudo já passou, e não terem o mínimo de empatia para com quem foi escravizado, o mínimo de empatia para com as pessoas que foram vendidas, que foram humilhadas, que foram mortas. Houve 12 milhões de pessoas que foram retiradas de África, as nações africanas foram completamente despovoadas de homens, ficaram milhões de órfãos, morreram milhões de pessoas. Portugal foi o último país da Europa a acabar com a escravatura e em Portugal, porque na verdade nas colónias os trabalhos forçados só acabaram em 1960. Não terem o mínimo de empatia para com estas pessoas, o mínimo de comoção. Se fossem as famílias das pessoas que advogam que o passado é o passado que tivessem morrido, como é que era? O que é que achariam? Achariam que também era para esquecer?
É difícil aceitar a palavra “reparação”, que o Presidente da República utilizou recentemente?
Sim, porque houve um dano.
E essa reparação pode ser feita através da clarificação ou do esclarecimento do que de facto aconteceu, como começou por explicar? Pode ser feita através da integração, da aceitação?
Além dessa questão do esclarecimento do que foi o colonialismo, há a reparação. E essa não é uma questão fácil. Há múltiplas interpretações dela e há múltiplas propostas. Por exemplo, no universo das Antilhas, os afro-americanos falam da reparação mesmo do ponto de vista financeiro. Fizeram as contas. Três triliões de dólares elevados à potência 10.
Não conseguimos imaginar o que é isso.
Não, mas eles contabilizam isso. Dizem que financeiramente os estados que foram responsáveis pelo tráfico negreiro devem isto. Há outras propostas e outras formas de abordar a matéria que não investem tanto na questão do pagamento, porque à partida não é viável, mas que dizem que apesar de tudo era importante ter uma noção de, por um lado, quanto é que foi em termos de prejuízo para as nações de onde as pessoas foram escravizadas, e de que modo isso pode ser reparado em termos financeiros através de formas de cooperação, que sejam justas e legais. A Alemanha tem feito isso, os Países Baixos também, o Canadá também. Mas tem sempre um ar um bocadinho perverso, ou seja, nós enviamos 800 milhões de euros e vocês esquecem a questão. Não é isto que se deseja. Há autores e há grupos que requerem um conjunto de coisas. A questão central é que se pode reparar no presente o que foi feito de mal no passado.
Por exemplo?
Em termos de políticas de imigração. Pode haver políticas de imigração que sejam humanas relativamente ao acesso às universidades, no que diz respeito ao combate à desigualdade das pessoas racializadas e discriminadas. São formas, essas sim, de reparação daqueles que são descendentes dos que foram escravizados e colonizados, são formas naturalmente aceitáveis. O drama dos vistos de pessoas que têm condições e capacidades para trabalharem na Europa devia ser atenuado, devia haver um processo muito mais simples e muito mais fácil, seria antes uma política de reparação em relação ao passado. Os estados europeus devem fazer isto. Em última instância, são herdeiros de um processo de extrativismo de comércio de bens que beneficiou a Europa. O trabalho escravo representa 20% do PIB português entre 1500 e 1800, mais todo o ouro que veio do Brasil, mais todas as madeiras, mais todo o processo que decorreu da expropriação e aproveitamento dos recursos naturais das ex-colónias portuguesas. Tudo isso teve um custo para essas nações e para esses povos que pode e deve ser reparado hoje em dia. É uma questão absolutamente central da relação de bem para o futuro.
E em relação à educação, ou reeducação, como diz, quando é que podemos começar e até onde podemos ir?
Essa é uma questão absolutamente prioritária. É preciso novas formas de ensino. Temos que começar por um trabalho de descolonização dos currículos e da mentalidade que está subjacente nas nossas universidades, nos nossos museus, nas nossas instituições militares. É importante resolvermos este problema. Depois, há uma questão de acessibilidade, pessoas menos favorecidas, nomeadamente os afrodescendentes devem ter maior acesso às universidades e aí também, por exemplo, poderem encontrar as tais outras narrativas produzidas por essa massa crítica que chega de onde eles são originários, para que possam encontrar aquilo a que se chama a negociação cultural. Isto demora tempo, seria mais fácil se houvesse esse trabalho de investigação, que é mínimo, e não é incentivado pelos governos, nem pelas próprias universidades.
Porque é que isso não avança?
A estagnação tem a ver com aquilo a que se chama melancolia colonial. No fundo, quem se opõe à devolução e à restituição e à compensação são as pessoas que gostariam que ainda tivéssemos colónias, que têm uma mentalidade que é colonial. Ainda não se descolonizaram os espíritos. Essas pessoas acham que aquilo é dos portugueses, que descobriram aqueles territórios. Tudo isto está cheio de equívocos. Como se não houvessem nações históricas nesses locais. Há uma enorme ignorância quer em relação às antigas américas, quer em relação a África. Ninguém conhece a enorme riqueza intelectual, criativa, imaginativa… Os banqueiros que havia em África antes da colonização, no século XV, eram banqueiros fundamentais para o negócio entre o Oriente e África, toda a região do Mali, Senegal tinha formas evoluidíssimas de arquitetura, de tecelagem, de fabrico de armas, de ourivesaria… Há um enorme desconhecimento da riqueza cultural dessas nações. Por outro lado, há esta coisa que vem do Estado Novo de que aquele território era propriedade dos portugueses. E isto está na cabeça dessas pessoas. Enquanto essa nostalgia colonial não for desmembrada, não acabar, é difícil avançar. Há um grupo de políticos que manipula isto e que diz que o passado foi sempre melhor do que o presente, que é uma coisa muito comum nos discursos panfletários e demagógicos. É um grupo de políticos que aproveita a fragilidade de uma população que vive em situações muito difíceis e que acha que se aquelas colónias ainda fossem de Portugal seria mais favorecida. Erro crasso. Durante o período do Estado Novo, quando Portugal tinha aquelas colónias todas, o país era absolutamente miserável. A população portuguesa não recebeu qualquer benefício com a exploração das colónias. Mas nada disto é desmontado. E não é desmontado pelos media…
Existe uma agenda política de olhos fechados a esta matéria?
Sim. Passa-se muito a ideia de que não há muita reclamação das obras por parte dos governos e das ex-colónias portuguesas. É a revisão do luso-tropicalismo. Mesmo depois das independências, continuámos a ser um país que foi excecionalmente bom colonizador. De qualquer forma, não é verdade que não reclamem as obras. Têm reclamado episodicamente. Não propriamente os estados, mas alguns grupos, o que lhes dá uma enorme fragilidade. E não reclamam mais por três razões. Primeiro, por desconhecerem. As ex-colónias portuguesas, em particular a Guiné, Moçambique e Angola, tiveram, entre Guerra Colonial e guerras civis, vinte e tal anos. Nesses anos morreram milhares de pessoas, guineenses, moçambicanos, angolanos. Muitos desses que morreram eram pessoas portadoras de memória, de memórias de línguas, de memórias de cultos, de memórias de obras de culto. Como essas pessoas desapareceram, essas memórias desapareceram com elas, as gerações mais novas não têm conhecimento disso e, portanto, não podem saber. Não podem reclamar uma coisa que não sabem. Isto implica, também da parte deles, um trabalho de pesquisa e de investigação.
Qual a segunda razão?
Tem a ver com interesses de natureza político-económica. Se os estados novos reclamarem ao Estado português, criam situações de atrito diplomático, e isto não interessa nem ao Estado português, nem aos estados ex-colonizados e não interessa porque há aqui interesses de natureza económica profundos. E uma terceira razão prende-se com o facto de não termos avançado nesse sentido. É feita alguma inventariação? Sim, mas pouca, e não é feita uma coisa que se chama biografia das obras e que explica como é que determinada obra saiu de um determinado lugar e chegou a um determinado museu, esse percurso tem que ser feito. A nova museografia, pós-colonial, está a fazer isso, os museus europeus que estão a investigar e a investir nesta área estão a fazer isso. Nós não, estamos longe de o fazer. Mais uma vez, o esclarecimento do que aconteceu a estas obras é importante ser feito. É preciso uma inventariação correta e exaustiva. Depois, se os outros estados reclamarem, tudo bem, se não reclamarem, tudo bem na mesma. Há um imperativo ético da nossa parte. É um imperativo nosso dizer que nos apropriámos de determinadas obras de forma ilegal e dizer onde é que estão. Foi isso que aconteceu com os Países Baixos e a Indonésia. Os Países Baixos fizeram um inventário muito exaustivo, apresentaram essa lista de bens expropriados à Indonésia. Passados dois anos de trabalhos, os indonésios disseram que ainda não tinham capacidade para albergar e acolher todas as obras e decidiram aceitar 10% dessas obras. E o processo continuou. Isto é uma relação de cooperação e é uma relação descolonial.
Conceitos como justiça social e igualdade, têm peso neste processo?
Existe uma mentalidade colonial. Tão simples quanto isto. E ela persiste e vai permanecer enquanto não for desconstruída. E isso leva-nos a situações como as que assistimos no Porto a semana passada.
Estamos a ter um discurso negacionista?
Sim.
Terá sido sobretudo uma agenda política internacional a levar o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a falar em “reparação histórica”?
Pelo menos o Presidente da República colocou o assunto na agenda. E tem esse efeito positivo. Tendo calculado bem ou mal as consequências do que dizia, colocou na agenda uma matéria que estava adiada.
O ex-ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, falou há um ano e pouco na necessidade de se fazer um inventário…
Mas passou um ano e não houve nenhuma informação sobre isso. Tanto quanto sei, houve um relatório que chegou às mãos da Secretária de Estado da Cultura, Isabel Cordeiro, mas não foi publicitado. Acho que o Partido Socialista quando esteve no Governo teve também a sua quota de responsabilidade sobre esta questão. Também a tratou sempre com alguma desconsideração. Não era uma questão prioritária. Exatamente baseada nessa ideia do neo-lusotropicalismo, ou seja, damo-nos muito bem com os estados que foram colónias e é por isso que não há reclamação. Erro crasso, erro danoso.
Esses “erros”, como os descreve, terão consequências?
Ah, sim. Mas para algumas pessoas convém que o caos se instale. No entanto, estou absolutamente crente que esta questão da restituição é irreversível. Há um observatório na Universidade Livre de Amesterdão que todas as semanas faz o relato do que acontece nesta matéria, pedidos que foram feitos, obras que foram devolvidas, debates internacionais, e todas as semanas há coisas novas. Há uns meses até o Vaticano devolveu obras. E isso é irreversível. De alguma forma, para os estados ex-colonizados é fulcral que estas obras lhes sejam devolvidas. É uma questão de soberania cultural. Já que, na maior parte dos casos, as línguas desapareceram, eles têm que reclamar pelos objetos de culto identitário. É a soberania cultural que está em causa, e que implica a soberania política e a soberania económica. É uma espécie de segunda independência.