Antes de conquistarem um lugar nas grandes exposições, era nos palcos que os movimentos estéticos começavam por se estrear. Para Pablo Picasso, eram até uma espécie de laboratório, lugar de experiências, onde era possível inovar sem telas ou pincéis. Esta (por vezes) estreita relação entre as artes cénicas e as artes plásticas, que tantas vezes passou despercebida, ganhou particular relevância na primeira metade do século XX — o tempo dos modernistas –, e Portugal não foi alheio a isso.
Num país conhecido pelo seu conservadorismo, os palcos portugueses acabaram por servir de meio de disseminação dos novos ideais estéticos, das novas abordagens. Conquistado pelos elementos cénicos, o público ia absorvendo a nova realidade estética quase sem dar conta, ao mesmo tempo que o teatro se ia tornando numa plataforma de divulgação de novos valores e de novas sensibilidades. De arte, em todas as suas formas, e dos artistas que a faziam.
A ligação de José de Almada Negreiros aos palcos é bem conhecida. Ator e dramaturgo, o modernista fez também um importante trabalho cénico, tendo criado cenários e figurinos para vários espetáculos. Mas não foi o único. Vários artistas portugueses da primeira e segunda vaga do Modernismo acabaram, em algum momento da sua carreira, por se dedicar ao teatro. Jorge Barradas é outro exemplo conhecido, mas também trabalharam como cenógrafos pintores como Stuart Carvalhais ou Bernardo Marques. Mas, de entre todos eles, há um que se destaca a par com Almada — António Soares.
Pintor, ilustrador, cenógrafo, figurinista e decorador, António Soares foi uma figura importante do Modernismo português que, em grande medida, acabou eclipsada pelos seus contemporâneos (era apenas um ano mais novo do que Almada). Apesar do seu contributo fundamental para a afirmação do movimento modernista e para a sua entrada definitiva nos palcos portugueses, Soares tornou-se numa figura secundária na história do Modernismo em Portugal. Algo que a nova exposição do Museu Nacional do Teatro e da Dança (MNTD) espera conseguir mudar.
Entre-acto modernista: o teatro e a dança na obra de António Soares reúne quase 170 obras inéditas realizadas para teatro e para dança, entre a década de 1920 e 1930, que foram cuidadosamente guardadas pela família do artista. Entregues ao museu “em depósito” há cerca de oito anos para a realização de uma exposição e de um catálogo, foram recentemente doadas ao MNTD.
“Vai haver um protocolo de doação e uma parte substancial destes trabalhos vão integrar o espólio do museu”, adiantou José Alvarez, diretor do MNTD, localizado no antigo Palácio Monteiro-Mor, no Lumiar (junto ao Museu Nacional do Traje), considerando que a doação não é só boa para o museu, “um museu nacional”, mas também “para o nosso património”. Depois da exposição, que deverá encerrar só em outubro, algumas das peças serão levadas para o Museu do Prado, em Madrid, para uma grande exposição dedicada aos modernistas.
Entre-acto modernista, que inaugura este sábado, tem um pouco de tudo — desde maquetas a desenhos de figurinos, passando por cenários e retratos de atrizes e atores conhecidos. Um reflexo da grande versatilidade de António Soares que, como todos os bons modernistas, atravessou e experimentou todos as vertentes artísticas. A exposição ocupa uma sala fora do edifício principal do museu e pretende, nas palavras de José Alvarez, “não é só colocar António Soares no lugar que merece — e que tem enquanto artista moderno –, mas também mostrar todo este tipo de trabalhos que, de uma forma habitual, ou se perdem ou o público não tem oportunidade de os ver”.
António Soares, o modernista esquecido
António Soares nasceu a 18 de setembro de 1894, em Lisboa, no seio de uma família humilde. Apesar do talento nato para o desenho, começou por trabalhar na CP, em 1910, ao mesmo tempo que fazia as primeiras incursões artísticas no mundo do teatro. Antes de se afirmar como modernista, começou por se aventurar na caricatura, apresentando os primeiros trabalhos na II Exposição dos Humoristas, realizada na capital portuguesa em 1913. Voltou a expor dois anos depois, no 1.º Salão dos Humoristas do Porto, que reuniu modernistas e humoristas, e na segunda edição do evento, em 1916, ano em que também colaborou para a revista Contemporânea, dirigida por José Pacheco.
A primeira exposição individual aconteceu em 1922, nos salões da revista Ilustração Portuguesa. De acordo com o crítico Julião Quintinha, citado por Paulo Ribeiro Baptista num ensaio publicado no catálogo da exposição do MNTD, a mostra era composta por pinturas “de cabeças de mulheres, de perfis, de cabeças de mulheres deliciosas — de mulheres que são apenas escarlates bocas de pecado, para beijar, olhos perversos que olham e nos perdem”.
Com o exílio voluntário de muitos modernistas portugueses a partir de meados da década de 1920, o “esforço de afirmação dos valores estéticos modernistas” começou a fazer-se “nos palcos dos teatros”. “Daí a enorme importância e particular significado que a atividade teatral assume nessa fase da obra de António Soares”, salienta Paulo Ribeiro Baptista, que a partir desta altura começou a dedicar-se intensamente ao teatro, trabalhando como cenógrafo, figurinista e decorador, transpondo para os palcos portugueses uma estética marcadamente modernista, como é visível na exposição do MNTD.
Até à chegada em cena de modernistas como Almada Negreiros e António Soares, a estética teatral em Portugal encontrava-se dominada “por um gosto cenográfico vincadamente oitocentista”. É por esse motivo que o contributo de Soares para as artes cenográficas é tão importante — porque “permite compreender até que ponto a colaboração entre as artes plásticas e as artes cénicas contribuiu para a alteração do paradigma estético português, sobretudo durante a afirmação do modernismo”, como afirma Baptista no catálogo do MNTD.
É também desta altura que data o retrato de Natacha Baltrina, uma bailarina de origem estoniana da Companhia Nacional de Bailado de São Petersburgo que passou por Lisboa em 1928. A pintura, premiada com a 2ª medalha do salão da Sociedade Nacional de Belas-Artes em 1929, é unanimemente considerada a peça central da produção pictórica de António Soares. E não só. Obra marcante do Modernismo português, é considerada o primeiro retrato modernista que se fez em Portugal por muitos historiadores. Natacha não consta da exposição do MNTD, com muita pena do diretor José Alvarez. O quadro, que pertence à coleção da Fundação Calouste Gulbenkian, foi emprestado a outro museu.
A partir dos anos 40, Soares deixou o teatro de parte para se dedicar inteiramente à pintura e à ilustração. Ganhou o Grande Prémio na Exposição Internacional de Paris, em 1937, e foi galardoado por duas vezes com o Prémio Columbano. “António Soares é de facto um pintor que tem um percurso longo, mas a incursão que fez nas artes do palco — sobretudo no teatro e na dança, mas também na ópera, — corresponde apenas a alguns anos da sua carreira, sobretudo os anos 20 e 30”, explicou José Alvarez. Porquê, ninguém sabe ao certo.
“Quem poderia saber era Raul Solnado, que era seu amigo pessoal. Apesar de ser muito mais novo, eram grandes amigos”, disse o diretor do MNTD. “Tenho muita pena que esta exposição não tenha sido feita em vida do Raul Solnado, mas ele sabia que as coisas tinham vindo para cá. Aliás, ele veio cá e eu mostrei-lhas. Provavelmente ele sabia [porque é que Soares deixou o teatro], mas na altura não lhe perguntei.” Apesar da estranheza do rompimento com os palcos, José Alvarez garante que não é caso único. “O único caso em que talvez tenha havido uma continuidade, ainda que com algumas interrupções, foi o Almada. Ele próprio escreveu: ‘O teatro é a minha vida’. O Carlos Botelho — temos cá 30 e tal maquetas dele — também teve um período no início da carreira em que trabalhou muito para o teatro, mas depois nunca mais fez nada.”
Apesar dos prémios recebidos nos últimos anos de vida, António Soares “terminou a sua carreira num relativo esquecimento, alheado, até à data da sua morte em 1978, das manifestações mais importantes da arte portuguesa dos anos 50 em diante”, como escreveu José-Augusto França no livro A Arte em Portugal no Século XX. Morreu em Lisboa, a 28 de junho.
Passados quase 40 anos, o nome de António Soares permanece esquecido. Quando se fala em Modernismo português, são poucos aqueles que referem o nome do pintor. De acordo com Paulo Baptista, isso deve-se a “circunstâncias determinadas pela compaginação das tendências historiográficas e da crítica da arte internacionais”, associadas à “realidade portuguesa”, que “acabaram por determinar o seu esquecimento e a menorização da sua obra e do seu papel, num processo de apagamento parcial que durou até aos dias de hoje”. Também por isso se esqueceu o seu contributo fundamental para as artes do palco portuguesas, apesar de os seus trabalhos terem “integrado algumas das mais importantes coleções de arte portuguesa”, como a Fundação Calouste Gulbenkian.
Um pintor entre palcos
Montada numa das salas secundárias do MNTD, a exposição Entre-acto modernista: o teatro e a dança na obra de António Soares mostra uma grande variedade de trabalhos do pintor modernista, “que tem muita importância para a pintura do século XX”. ”Infelizmente, ainda não teve grande exposição e reconhecimento, mas é um pintor que estava na exposição permanente do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian”, admitiu José Alvarez, referindo-se em especial ao retrato de Natacha, também ele “dentro do ambiente do palco”.
São ao todo 168 peças originais, nunca antes expostas, que forram as paredes da pequena sala de exposição, à qual José Alvarez fez questão de juntar umas cortinas negras para dar um ar “de teatro”. Algumas delas foram apenas vistas em palco, como é caso de um telão que Soares fez para um espetáculo de revista e que foi pendurado no auditório, no edifício principal do MNTD. “O resto são trabalhos que fez para a dança, teatro e para o meio teatral e artístico ligado aos palcos da cidade de Lisboa. São sobretudo maquetas para telões e cenários, figurinos, estudos para cortinas, para o palco propriamente dito e para decoração”, explicou o diretor do museu nacional.
Há ainda retratos, caricaturas e esboços de atores, atrizes e bailarinas, incluindo Natacha Baltrina e Maria Germana, mulher de António Soares. “E, inclusivamente, pormenores de decoração. Por exemplo, do que seria o bar do Teatro Nacional”, disse José Alvarez. “Ou seja: é todo este meio teatral do qual António Soares fez parte durante este período.” No centro da sala, foi colocada a única pintura da exposição — Entre Acto de ballet, datado dos anos 20 –, que contrasta com o aspeto inacabado das outras peças.
“Também é deste período, dos anos 20. Ele designou-o de Entre Acto de ballet, e eu fui aí buscar o título da exposição”, admitiu José. “É verdadeiramente um quadro, um trabalho acabado, contrariamente aos outros, que são trabalhos para outros trabalhos. É de facto um quadro muito moderno para aquele período e dá a ideia de o António Soares fazer parte do grupo do Almada, do Jorge Barradas e de tantos outros. O que é curioso é que no, quadro, há um palco onde se veem figuras ligadas ao ballet mas também figuras icónicas do teatro, como o pierrô ou o arlequim. É um quadro que resume tudo o que vemos na exposição.”
Esta faceta mais modernista da obra de Soares é especialmente evidente nas maquetas de cenários que fez para peças de teatro e revistas. “É aqui que António Soares utiliza alguns estilos da altura. O Modernismo é uma coisa que abarca uma série de movimentos plásticos que são característicos do início do século XX, e aqui vemos alguns exemplos muito curiosos de alguns desses estilos”, explicou José Alvarez, dando como exemplo a maqueta de um cenário para a revista A Cigarra e a Formiga, que estreou em 1930 no Teatro da Trindade, em Lisboa. A maqueta, que mostra uma vista da ponte de Brooklyn em Nova Iorque, foi pintada com cores garridas e provavelmente inspirada no movimento expressionista.
Outro exemplo, mais prematuro, é o cartaz “moderníssimo” do Teatro Apolo. “Estávamos no auge de todos estes movimentos que revolucionaram as artes plásticas, e este cartaz é de um exemplo fantástico”, salientou José. O desenho de António Soares, feito na década de 1910, mostra um homem de cartola e fraque, com um fundo esbatido. Mas não é o único cartaz da exposição. Ao fundo da sala, foi colocado um poster da Flor da Rua, um espetáculo do Teatro Avenida, que mostra uma figura feminina, de costas, a olhar para um céu estrelado.
Além dos cartazes e telões, grande parte de Entre-acto modernista é composta por esboços e estudos para cenários. Alguns deles mais parecem planos de arquitetos, com contas à margem e tudo. “Esta exposição também é interessante porque permite mostrar o trabalho que é feito e que o público não vê — a conceção plástica dos espetáculos, desde os desenhos dos figurinos até aos adereços de cena”, frisou José Alvarez, apontando para pequenos desenhos de mesas, capacetes e até de sandálias “para completar os figurinos”.
Não muito longe dali, ao fundo da sala, foi colocada uma reprodução em tamanho real de um painel feito para o Maxim’s, um clube noturno que era frequentado por atores e bailarinos, que ocupava uma grande parte do Palácio Foz, nos Restauradores. O original, em preto e prateado, não estava em condições de ser exposto, e José teve de optar por uma reprodução. Há ainda uma parede forrada com retratos de artistas da época, que surgem lado a lado com desenhos para a decoração do Bristol Club, que também tinha pinturas de Jorge Barradas e Almada Negreiros. “Na exposição do Almada, na Gulbenkian, está um óleo enorme, de uma mulher deitada, que fazia parte do Bristol Club. Há aqui também uma ligação com o que está na exposição do Almada, o que não deixa de ser curioso.”
O Bristol Club, inaugurado em março de 1918, ficava na esquina da Rua Jardim do Regedor com a Rua Eugénio de Santos. Para a sua decoração, António Soares desenhou dezenas de bailarinas de jazz. “Era frequentado pelas elites culturais e intelectuais e, sobretudo, pelos artistas daquele período. Tanto que chamaram os grandes artistas plásticos para o decorar”, afirmou o diretor do MNTD. “O Bristol foi uma casa na vida artística da cidade de Lisboa.”
Outras três peças particularmente importantes são as maquetas da cortina da revista Rambóia e do cenário da peça A Boneca e os Fantoches. Sobre a primeira — feita para o espetáculo modernista do Teatro Maria Vitória, em 1928 — conta-se que, quando os telões caíram pela primeira vez, o público levantou-se a aplaudir. Estes não chegaram aos dias de hoje, mas há fotografias da época que os mostram em cena. A outra peça, que já fazia parte do espólio do museu, vai viajar em setembro para o Museu Nacional Rainha Sofia, em Madrid. “Esta maqueta [vai para Madrid] porque é muito curiosa — tem um quadro que parece uma coisa da Sonia Delaunay. Ou seja: é um quadro do mais modernista do ponto de vista artístico”, explicou José.
Além das quase 170 peças, a exposição inclui ainda um vídeo com fotografias e outras informações complementares, que ajudam a contextualizar o trabalho de António Soares. Para José Alvarez, a mostra não serve apenas para mostrar um lado menos conhecido do trabalho do pintor, mas também para “colocar António Soares no lugar que merece”. É que, apesar de ter caído no esquecimento, quando se fala no Modernismo em Portugal, Soares surge indiscutivelmente como uma das principais figuras do movimento, tendo contribuído de forma preciosa para divulgar a nova sensibilidade estética através do teatro. Para José Alvarez, não há dúvidas: António Soares é “um grande artista moderno”.
A exposição é inaugurada dia 25 de março, pelas 19h (com a presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa), e ficará patente no Museu Nacional do Teatro e da Dança até outubro. O museu funciona de terça a domingo, entre as 10h e as 18h, e os bilhetes (que dão acesso a todas as salas do museu) custam 4 euros.
Também no sábado, pelas 17h, será inaugurada outra exposição no Museu Nacional do Teatro e da Dança, no âmbito da Lisbon Week. Vestir hoje o Teatro e a Dança é dedicada a alguns criadores como José António Tenente, Filipe Faísca e Dino Alves, que têm dividido o seu trabalho entre a moda e as artes performativas, colaborando para vários teatros lisboetas.