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Foto Arquivo DN ©

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Os olhos de Almada não eram dele, eram da Modernidade

Quase 25 anos depois da última grande exposição, o nome de Almada Negreiros vai voltar a forrar as paredes da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Fomos espreitar os últimos preparativos.

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Foi há quase 25 anos que a Fundação Calouste Gulbenkian recebeu a última grande exposição dedicada a José de Almada Negreiros, poeta, pintor, performer, “futurista e tudo”. Foi por este motivo que “surgiu esta vontade” de montar uma nova mostra antológica, que mostrasse o artista nas suas mais variadas vertentes. José de Almada Negreiros: Uma maneira de ser moderno será inaugurada já no próximo dia 3 de fevereiro e apresentará ao público mais de 400 obras, muitas delas inéditas.

Com curadoria da historiadora de arte Mariana Pinto dos Santos, investigadora integrada do Instituto de História de Arte da Faculdade de Ciência Sociais e Humanas e uma das responsáveis pelas edições de Almada Negreiros da Assírio & Alvim, em colaboração com Ana Vasconcelos, conservadora do Museu Calouste Gulbenkian, Uma maneira de ser moderno revela as diferentes facetas de um artista completo, da “modernidade total”, que marcou profundamente a arte portuguesa do século XX.

A exposição ocupa duas salas temporárias da Sede da fundação — a Galeria Principal e a galeria do piso inferior. Composta por oito núcleos temáticos, interligados por um único fio condutor, a mostra antológica encontra-se, ao contrário do que seria de esperar, “propositadamente desordenada cronologicamente”, como explicou ao Observador Mariana Pinto dos Santos, que nos guiou pelas diferentes salas, salientando sempre o papel de Almada nas modernidades (porque houve várias) e a sua colaboração constante com diferentes artistas e diferentes sensibilidades artísticas.

“Os temas em que a exposição se organiza englobam uma série de práticas artísticas do Almada, de maneira a mostrá-las na sua diversidade e na forma como ele revisitou ou inaugurou temas para poder explorar e experimentar várias linguagens artísticas diferentes”, afirmou a curadora, numa organização que é contrária a uma “certa tradição historiográfica” que costuma abordar o trabalho do artista português “por etapas”.

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A Galeria Principal (ela própria dividida em sete núcleos) receberá alguns dos trabalhos mais conhecidos de Almada Negreiros — os auto-retratos, os desenhos dos saltimbancos, as obras públicas. Será também este espaço que acolherá muitas das peças feitas em colaboração com outros artistas, arquitetos, escritores, editores músicos, cenógrafos ou encenadores. Porque Almada, que defendia que a Modernidade devia estar presente em todo o lado, fez um pouco de tudo.

“Os artistas não trabalham sozinhos, os artistas veem as coisas uns dos outros”, salientou a historiadora. “Mais do que influência, trata-se de informação que é apropriada, mastigada. A antropofagia que os modernistas brasileiros reclamam para si é praticada. Talvez não de uma forma tão consciente, mas é uma prática artística. Os artistas estão sempre a deglutir aquilo que veem, com que convivem, e a reinventar. Às vezes, ao usar a palavra influência fica-se um bocado com a ideia de que se está ‘a fazer à maneira de’. Por isso, a antropofagia agrada-me mais, porque trata-se de absorver tudo o que há e reinventar.” E nisso, Almada foi um mestre. Com olhos de gigante.

A exposição ocupa duas salas da Sede da Fundação Calouste Gulbenkian

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

O menino d’olhos de gigante

Quando passámos pela Galeria Principal, a maior parte das paredes estavam ainda em branco. A primeira sala, que recebeu o título “Ver”, era uma das poucas que já tinha os quadros nos devidos lugares. Por pendurar estava apenas uma série de pequenos quadros e um dos mais famosos retratos que Almada realizou — o de Fernando Pessoa, encomendado pela Gulbenkian em 1964.

O quadro é muito semelhante ao pintado por Almada dez anos antes para o restaurante Irmãos Unidos, no Rossio, antigo ponto de encontro do grupo do Orpheu, que a Calouste Gulbenkian tentou comprar na década 60. Não conseguindo finalizar a compra, a fundação encomendou um novo a Almada Negreiros, que é um espelho do primeiro (Fernando Pessoa está virado para a direita, enquanto no primeiro está virado para a esquerda). O primeiro retrato, que se encontra permanentemente exposto na Casa Fernando Pessoa, também será integrado na exposição.

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É também na primeira sala que ficarão expostos os auto-retratos de Almada, que acreditava que a visão era o principal sentido. Estava acima de todos os outros, e ele entendia-o como sendo a raiz de toda a arte e pensamento. Era talvez por isso que, quando se auto-desenhava, dava sempre ênfase aos seus olhos “de gigante” — não só porque era uma característica física sua, mas também porque os olhos se tornaram para ele numa metáfora “da voracidade do artista”, como explicou ao Observador Mariana Pinto dos Santos. Do artista que tem de “abarcar o mundo todo com os olhos e que tem de o transformar em arte”.

“Ser moderno era antes ter a capacidade de olhar para o antigo com um olhar liberto de preconceitos acumulados por séculos de história”, refere o texto de parede de “Ver”. “A representação destes olhos expressa assim a atitude moderna: a afirmação da liberdade do artista, sem espartilhos da história ou de qualquer tipo de convenções.” É talvez por isso que em A Invenção do Dia Claro (1921) Almada escreveu: “Reparem bem nos meus olhos, não são meus, são os olhos do nosso século! Os olhos que furam para detrás de tudo“.

No corredor que liga as duas salas, foram expostas duas tapeçarias (feitas postumamente) que reproduzem os painéis da Gare Marítima

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

O Almada do humor, o Almada do cinema

A galeria de exposições temporárias do piso inferior, mais pequena, será inteiramente dedicada à relação de José de Almada Negreiros com o cinema, o humor e a narrativa gráfica, áreas que sempre lhe foram próximas. Para Mariana Pinto dos Santos, trata-se, aliás, de “uma secção bastante importante porque conjuga estas três vertentes que encontramos exploradas — experimentadas — ao longo da vida do Almada”. Logo à entrada, será exposta uma fotografia gigantesca do artista a lutar com uma mulher, que ainda não tinha chegado quando por lá passámos. Trata-se de uma reprodução “enorme” da única fotografia de cena de Almada Negreiros no filme mudo “O Condenado”, do realizador português Mário Huguim, em que participou.

Um “grandioso drama de amor, em que se espelha a bela vida campesina, evidenciando a arte, a história e a arquitetura de Portugal” (como era então anunciado nos cinemas), “O Condenado” foi rodado em 1920 e estreou um ano depois. O filme, um dos vários em que Almada entrou, mostrava o exterior de vários monumentos nacionais emblemáticos, como o Mosteiro da Batalha e o Convento de Cristo, e, tanto quanto se sabe, incluía também imagens da Festa dos Tabuleiros de Tomar. Isto porque, infelizmente, o filme perdeu-se, assim como a prestação de Almada (que desempenhava o papel de D. António de Souto).

“Em 1913 já tentei fazer um filme de cartões animados, parte do qual conservei durante algum tempo, mas depois perdeu-se. Mais tarde, durante o período da Vanguarda, projetei, com o pintor Francisco de Cossio, vários filmes experimentais de amador, que não chegámos a realizar”, lembrou Almada numa entrevista em 1959.

Outra peça que estará exposta no piso inferior, e que também evidencia a ligação de Almada com o cinema, foi realizada em Espanha durante os anos que viveu em Madrid (entre 1927 e 1932), integrando-se na vida artística da capital — é composta por dois gessos feitos para um cinema madrileno, o Cine San Carlos, na rua Atocha.

Quando o San Carlos inaugurou o seu aparato sonoro, Almada foi contratado para decorar o exterior e interior do cinema com uma série de frisos que representavam os vários géneros cinematográficos. “Era como se fossem fotogramas de um filme em gesso”, afirmou Mariana Pinto dos Santos. Estes foram trazidos para Portugal nos anos 60 por José Ernesto de Sousa, que viajou até Madrid com o objetivo de resgatá-los. Os responsáveis pelo cinema, que entretanto tinha sido remodelado, tinham mandado retirá-los e encontravam-se em bastante mau estado. Hoje fazem parte da coleção do Centro de Arte Manuel de Brito, em Oeiras, e os dois que estarão expostos na Gulbenkian são os que se encontram em melhor estado de conservação.

É também do período em que Almada viveu em Madrid que datam uma série de desenhos que, muito provavelmente, terão sido feitos para ilustrar contos e crónicas do escritor espanhol Ramón Gómez de la Serna, com quem tinha uma relação muito próxima. Gómez de la Serna costumava dizer que “não havia nenhum outro ilustrador que soubesse interpretar tão bem as crónicas dele”. “Foi uma colaboração muito intensa. Devem ser perto de 100 as crónicas e contos que ele ilustrou para o Ramón Gómez de La Serna durante os anos que lá viveu“, disse a conservadora e historiadora de arte.

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As diferentes salas do segundo piso, mais escuras do que as do primeiro, encontram-se ligadas por um longo corredor, ao longo do qual foi exposta uma das lanternas mágicas feitas por Almada. São ao todo 64 desenhos inéditos que compõem um filme “a fingir” a que o artista chamou “Naufrágio da Insula”. Este conta a história, trágico-cómica, do naufrágio de várias pessoas ao largo da insula de Moledo do Minho, depois de terem sido apanhados por uma tempestade.

Criada em 1934, o ano em que casou com a pintora Sarah Afonso, a obra é para Mariana Pinto dos Santos a que “melhor conjuga o título desta secção [“Cinema, Humor e Narrativa Gráfica]: é um filme mudo fingido e uma narrativa gráfica (porque é desenhada) e humorística porque caricatura uma história passada nas férias entre vários veraneantes com os quais costumava passar férias em Moledo do Minho”. “Ele transforma aquilo numa piada e nesta história, que mostra num arraial de verão.”

"O Ramón Gómez de la Serna teve uma relação muito próxima com o Almada e dizia que não havia nenhum outro ilustrador que soubesse interpretar tão bem as crónicas dele."
Mariana Pinto dos Santos, curadora da exposição

O humor sempre foi algo constante em Almada. Mesmo naquelas obras que parecem não ter humor nenhum, como é o caso dos quatro manifestos modernistas, escritos entre 1916 e 1917. Um deles — o Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX — celebra este ano 100 anos. “Eram palavras violentíssimas de ataque mas, ao mesmo tempo, havia um lado humorístico porque havia uma enorme provocação”, explicou Mariana Pinto dos Santos. “O Manifesto Anti-Dantas, por exemplo, é todo escrito em maiúsculas e tem uma daquelas mãozinhas tipográficas em posição de revolver com ‘Morra o Dantas, Morra! Pim!’. A mãozinha está lá como se estivesse a atirar. Isso é profundamente cómico e muito provocador.”

Entende-se por isso que uma grande parte do segundo piso da exposição esteja recheado com desenhos que podem ser classificados como humoristas, feitos para exposições de caricaturas (entre 1911 e 1913) e para jornais. Muitos deles são inéditos. “Ele foi trabalhando sempre para jornais, até bastante tarde. Colaborou com publicações com desenhos, ilustrações. E para livros também. Mais tarde é que os jornais passaram a usar mais a fotografia e perde-se um bocado este hábito de publicar pequenas narrativas gráficas em jornais”, disse a curadora da exposição, salientando que este tipo de ilustração é “de facto uma linguagem da Modernidade”.

Um dos desenhos inéditos de Almada mostra um semi-deus grego a lutar com uma dançarina de cabaret, num registo que faz lembrar a Banda Desenhada

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

“Esta linguagem de comentar a atualidade ou de fazer uma caricatura que possa ser publicada no jornal, que possa ser reproduzida e chegar a uma série de pessoas é uma linguagem profundamente moderna. O texto inicial da exposição diz isso. [Charles] Baudelaire fez um texto fundador da Modernidade, O Pintor da Vida Moderna, e o pintor da vida moderna para o Baudelaire não é um pintor, é um ilustrador — é alguém que apanha a fugacidade da vida urbana, que consegue com meia dúzia de traços sintetizar tudo: a rapidez com que se vive, a efemeridade dos acontecimentos urbanos e que pode publicá-los no jornal.”

Além do “Naufrágio da Insula”, a exposição inclui ainda outra lanterna mágica de Almada — Tragedia de Doña Ajada, criada em colaboração com o compositor madrileno Salvador Bacarisse, “que pertencia ao Grupo dos Oito, uma espécie de irmão do Grupo dos Seis francês” que queria “reformular completamente a música espanhola e a composição”, explicou a curadora Mariana Pinto dos Santos. “Queria torná-la contemporânea, moderna, adotar outros ritmos, outros estilos musicais e trazê-los para a música clássica”. Uma vontade que não de todo estranha a Almada Negreiros.

“Quando hoje pensamos em lanterna mágica pensamos nos vidrinhos que eram projetados. Mas, a verdade, é que até aos primeiros 30, 40 anos do século XX, chamava-se ‘lanterna mágica’ a tudo o que implicasse uma projeção de desenhos, explicou a curadora Mariana Pinto dos Santos.

“É sempre muito curioso pensarmos como nas diferentes artes essa vontade de fazer misturas, de tirar, de experimentar é patente durante toda a Modernidade. Este lado da música tem um equivalente nas Artes Plásticas, na escrita também. E o Almada é um artista que nessas outras vertentes representa bem essa vontade de experimentar e de misturar coisas“, salientou a curadora.

Além dos desenhos da Tragedia de Doña Ajada, apenas uma versão mais pequena da música de Salvador Bacaricisse chegou aos dias de hoje. O libretto perdeu-se e as ilustrações de Almada são a única parte da obra total que permite imaginar o que seria a história. A peça de Bacaricisse será apresentada, juntamente com a projeção dos desenhos de Almada Negreiros, pela Orquestra Gulbenkian no dia 23 de março. A partir de 24, o som será incorporado na exposição, permitindo ver a lanterna mágica em todo o seu esplendor.

“Lá vem a nau catrineta, que tem muito para contar…”

Quase no fim da exposição, também na sala dedicada ao cinema e ao humor, encontram-se expostos os desenhos preparatórios para as Gares Marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, em Lisboa. O lugar escolhido para a exibição dos esboços pode parecer estranho, uma vez que é no piso de cima que se encontram os esboços relativos às obras públicas em que colaborou. Mas a escolha foi propositada, como explicou Mariana Pinto dos Santos. “Estão aqui para dar a possibilidade de olhar para elas como histórias contadas como imagens. Têm muito a ver com a banda desenhada e com a forma como ele conta aquela história.” Uma história de navegadores, de varinas, de pobres que sonham com uma vida melhor.

Os painéis para as duas gares foram feitos por Almada em colaboração com o arquiteto Porfírio Pardal Monteiro, um dos mais importantes da primeira metade do século XX com quem trabalhou diversas vezes. Os arquitetos tinham liberdade (relativa) de escolha dos artistas com quem trabalhavam” e Pardal Monteiro escolheu Almada Negreiros várias vezes. Já os pintores que eram contratados pelo Estado nem sempre podiam escolher o que queriam pintar — geralmente, tinham de se submeter ao tema proposto. Porém, no caso da Gare de Marítima e da do Conde de Óbidos não foi bem assim.

Almada participou na produção gráfica de "A Canção de Lisboa" (1933), o primeiro filme sonoro português

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Diz a história que quando o engenheiro Duarte Pacheco convidou Almada para realizar os dois trabalhos e lhe tentou sugerir um tema, Almada respondeu: “Não, não, eu já sei o que vou pintar na Gare Marítima. É a Nau Catrineta”. E assim foi. A Nau Catrineta, um antigo poema tradicional que narra desventuras de uma tripulação de marinheiros durante uma travessia marítima, relacionava-se intimamente com a história dos Descobrimentos portugueses. “É algo que nunca afetaria a política do Estado Novo, muito pelo contrário”, lembrou a curadora. “Mas Almada conta-a da perspetiva dos marinheiros — dos que mais sofriam. Ao mesmo tempo, também vai retratando o trabalho no Cais de Lisboa”, com as varinas e outros trabalhadores.

“Lá vem a Nau Catrineta,
que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia,
que iam na volta do mar.
Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.

Já mataram o seu galo,
que tinham para cantar.
Já mataram o seu cão,
que tinham para ladrar.”

A história dos painéis da Gare da Rocha do Conde de Óbidos, porém, é um pouco mais complicada. Quando os trabalhos arrancaram, Duarte Pacheco já tinha morrido (faleceu em novembro de 1943 e a gare foi inaugurada em 1948), fazendo cair por terra o acordo que tinha feito com Almada anos antes. “Ele teve de chamar testemunhas e provar que tinha um acordo verbal do que ia fazer. Até porque o acordo tinha sido para fazer a Gare de Alcântara com um orçamento muito baixo na perspetiva de que o da outra seria mais alto”, contou a historiadora de arte.

O tema acabou por ser o escolhido por Almada Negreiros, que voltou a retratar os trabalhadores do cais, mas numa outra linguagem, “completamente diferente”. O traço, mais geometrizado, deu às figuras um ar de quase “máscaras”, que se veem de perfil e de frente. “E pinta varinas sim, mas não são varinas estilizadas, são varinas marcadas pelo trabalho, mulheres grandes, varinas africanas que estavam no cais (havia muitas naquela zona). Pinta a pobreza dos saltimbancos que pediam esmola, o trabalho de construção de barcos com trabalhos e pinta a emigração. A emigração das pessoas que fugiam do país por causa da miséria em que viviam.”

Escusado será dizer que o mural causou muita polémica. Vários ministros do Estado Novo tentaram que os painéis fossem destruídos. Foi preciso a intervenção do então diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, João Couto, para que as pinturas permanecessem no seu devido lugar.

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Os painéis das duas gares marítimas de Lisboa são um dos muitos trabalhos que José de Almada Negreiros fez para o Estado Novo. Facto que, ao longo dos anos, lhe valeu muitas críticas. Como é que um modernista, um eterno transgressor, poderia trabalhar para um regime que ele próprio criticou? Contudo, se olharmos para o Portugal de então, é fácil de entender.

Antes de subir ao poder, Oliveira Salazar, numa série de entrevistas conduzidas por António Ferro, deu a entender que o Estado iria empregar os artistas portugueses e que estes deviam esperar que “o Estado se consolidasse porque depois iria orientá-los”. Em resposta, Almada escreveu “uma série de textos em que recusa completamente a ideia de ser orientado por qualquer Estado”. Porque um artista não pode estar preso a nada, tem de ter liberdade absoluta. “Numa entrevista perguntaram-lhe o que achava do que Salazar tinha dito sobre os artistas que tinham de esperar pelo Estado, e ele disse: ‘Eu a isso respondo: o Estado que saiba esperar’”, contou Mariana Pinto dos Santos.

“Numa entrevista perguntaram-lhe o que achava do que Salazar tinha dito sobre os artistas que tinham de esperar pelo Estado, e ele disse: ‘Eu a isso respondo: o Estado que saiba esperar’.”
Mariana Pinto dos Santos, curadora da exposição

“Há uma conferência chamada Arte, a Dianteira [1956] em que [ele dá a entender que] a arte tem de estar à frente da sociedade. Na verdade, ele está a responder a isso. A arte não vai atrás de nenhum Estado, de nenhum regime. A arte está à frente disso. Ou, pelo menos, é independente disso.”

Apesar disso, Almada acabou por trabalhar para o Estado que tantas e tantas vezes fez questão de negar. Colaborou na Exposição do Mundo Português de 1940 e, depois de ter sido galardoado com o Prémio Columbano em 1942 passou a trabalhar frequentemente em exposições organizadas pelo Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), dirigido por António Ferro. “A verdade é que não havia mais locais de exposição a não ser aqueles salões”, lembrou a historiadora. Havia pequenas coisas que se faziam em lojas, em pequenas salas mas, até 1952, não havia galerias de arte. José Augusto França inaugurou uma das primeiras que tentou fazer exposições de forma independente.”

E Almada queria expor, queria ser reconhecido. E também precisava do dinheiro que o Estado tinha para lhe dar. Mas não foi o único — todos os artistas portugueses acabaram por fazer o mesmo. Numa altura em que as alternativas eram poucas, para quem queria viver da arte, era agarrar a mão que o Estado estava a esticar ou ficar sem nada.

Uma maneira de ser moderno

Mas isso não significa que Almada tenha deixado de ser ele próprio. E as salas de Uma maneira de ser moderno mostram isso — mostram as múltiplas facetas de um artista que foi pintor, desenhador, escritor, poeta, performer, que se multiplicou por uma série de ofícios e linguagens que o tornam “numa figura das mais fecundas para pensar o que e que foi a Modernidade em Portugal”.

“Esta ideia de ele fazer tudo torna-o num artista particularmente fecundo para se poder pensar. E é sempre bom, quando fazemos exposições só sobre um artista, que elas não sirvam só para fazer uma monografia, mas para que o artista obrigue também a repensar conceitos, a repensar o que foi o século xx artístico. A política também”, afirmou Mariana Pinto dos Santos, acrescentando que Almada Negreiros é “um artista que se enquadra muitíssimo bem, e é particularmente rico, para pensar uma série de debates que estão em curso e que revisitam e reequacionam o que foi a Modernidade”.

Ao Observador, a curadora admitiu que não gosta muito da palavra “Modernismo”, preferindo “modernismos”. “Não houve só um, não houve uma só maneira de ser moderno, e daí o título da exposição.” Este foi retirado da conferência O Desenho, apresentada em Madrid no ano de 1927. Nela, Almada disse: “Isto de ser moderno é como ser elegante: não é uma maneira de vestir mas sim uma maneira de ser. Ser moderno não é fazer a caligrafia moderna, é ser o legítimo descobridor da novidade“.

“O que ele queria dizer é que não se devia seguir figurinos importados. Não havia um modelo de Modernidade que era suposto um artista seguir. Era suposto o artista estar presente e fazer acontecer a Modernidade — estar presente com o corpo todo, fazer parte do dia-a-dia. Fazer acontecer a Modernidade no dia-a-dia das pessoas e não simplesmente replicar uma ideia que se pensa que é correta.” E era exatamente isso que Almada fazia — fazia “escândalo”, nas palavras de Mário de Sá-Carneiro, com quem conviveu.

“Por exemplo, saltava pelas mesas da Brasileira até ao fundo para se sentar na última — era assim que entrava no café. Ele tinha um galgo e andava na rua com ele todo pintado de verde. Podemos imaginar o que isso seria na altura! Com o Santa-Rita Pintor também — havia coisas que faziam para provocar os transeuntes. Esse lado de estar todos os dias — no dia-a-dia — em personagem é algo realmente notável. E que não se reduz a esses primeiros anos”, contou a curadora. Mas nem só de “escândalo” se fazia a Modernidade.

"Ele é um artista bastante exemplar, no sentido de servir de exemplo para mostrar o lado híbrido, eclético e contraditório da modernidade. Acho que não há mais nenhum que sirva tão bem para mostrar isto em Portugal."
Mariana Pinto dos Santos, curadora da exposição

“Houve várias formas de pensar o que podia ser moderno, o que era o novo. E o novo tanto foi a representar a vida urbana, a velocidade, como foi olhar para o passado — olhar de uma forma nova para aquilo que era mais antigo também foi considerado moderno”, frisou ainda Mariana Pinto dos Santos. E o Almada também fez isso — como ninguém. “Há um ecletismo, uma contradição eterna na modernidade constante e no Almada encontramo-la também. Ele é um artista bastante exemplar, no sentido de servir de exemplo para mostrar o lado híbrido, eclético e contraditório da modernidade. Acho que não há mais nenhum que sirva tão bem para mostrar isto em Portugal.”

Celebrar Almada fora de portas

A exposição, patente até 5 de junho na Gulbenkian, coincide com o centenário da 1.ª Conferência Futurista, realizada a 14 de abril de 1917 no antigo Teatro República (atual S. Luiz), em Lisboa. Apesar de não passar de uma mera coincidência, a verdade é que a Gulbenkian celebrará em grande a figura de Almada durante os primeiros meses de 2017. Paralelamente a Uma maneira de ser moderno, a fundação planeou uma programação complementar com muitas atividades, que incluem visitas guiadas às Gares Marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, que Almada decorou, e uma conversa com as curadoras Mariana Pinto dos Santos e Ana Vasconcelos.

Mas não só: haverá um ciclo de mesas redondas, no foyer do Grande Auditório da Gulbenkian (à exceção de “Os quatro manifestos de Almada Negreiros”, que acontecerá na Casa Fernando Pessoa, em Campo de Ourique, no dia 19 de abril), uma palestra e um concerto com um alinhamento dedicado exclusivamente ao artista português que, além de La Tragedia de Doña Ajada, de Salvador Bacarisse, incluirá as peças Le Bœuf sur le toit, de Darius Milhaud, e Parade, de Erik Satie.

Almada fez uma lanterna mágica para acompanhar a peça "La Tragedia de Doña Ajada", do compositor madrileno Salvador Bacarisse

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Uma peça de teatro, Antes de Começar, será apresentada nos dias 11 a 13 de março na Sala Polivalente do edifício da coleção de Arte Moderna da fundação, que foi inaugurada precisamente com uma exposição de Almada Negreiros, em 1984. Antes de Começar, escrita em 1921 e apresentada pela primeira vez em 1949, será levada à cena pela Companhia da Esquina, uma companhia de teatro independente com formação circense. A peça, curta (tem apenas uma cena), trata-se de um diálogo entre duas marionetas que, quando estão sozinhas, ganham vida.

“Falam da sua condição de bonecos e, ao mesmo tempo, de artistas de palco”, salientou a curadora Mariana Pinto dos Santos. “Estas figuras (e os saltimbancos também) serviam sempre para o Almada como metáfora do artista, de alguém que tem de produzir um espetáculo, que tem de o manter, que tem de apresentar um serviço perante o público. Aliás, ele disse isso numa entrevista de 1969, a Vitor Silva Tavares: ‘É serviço, aquilo que eu faço é serviço’. Ele tem a missão de fazer cumprir a arte junto do público. Paradoxalmente, é até uma posição humilde — ele é alguém que tem de fazer aquele serviço para a sociedade.”

Outro “momento muito especial” será a projeção do filme experimental Almada, Um Nome de Guerra, de José Ernesto de Sousa, um artista também ele polémico que filmou e entrevistou Almada Negreiros no último ano da sua vida (1970). Este foi exibido pela última vez na Cinemateca em 2013, altura em que se assinalaram os 120 anos do nascimento do artista e a Gulbenkian acolheu Colóquio Internacional Almada Negreiros.

"Ele disse isso numa entrevista de 1966: 'É serviço, aquilo que eu faço é serviço'. Ele tem a missão de fazer cumprir a arte junto do público."
Mariana Pinto dos Santos, curadora da exposição

Almada, Um Nome de Guerra será também apresentado na Sala Polivalente do edifício da Coleção de Arte Moderna, para onde foi inicialmente pensado, no dia 3 de março, às 19h. Mas, apesar de ser conter imagens do artista português, este não se trata de um documentário, mas sim de uma peça de arte. “É uma obra do Ernesto de Sousa, que se apropria do próprio Almada para apresentar uma obra experimental que se encadeia e se reclama herdeira do experimentalismo performativo dele“, explicou Mariana Pinto dos Santos.

“Esta ideia de se apropriarem uns dos outros para depois recrearem [um conceito] é patente neste filme experimental multimédia porque tem várias projeções de slides, imagens do Almada nesse último ano de vida e de obras dele, tem uma parte sonora em que se houve a voz dele, mas tem também música do Jorge Peixinho, um compositor de música experimental português que trabalhou imenso com o Ernesto de Sousa”, esclareceu ainda.

José de Almada Negreiros: Uma maneira de ser moderno estará patente na Sede da Fundação Calouste Gulbenkian entre 3 de fevereiro e 5 de junho. A programação complementar completa pode ser consultada aqui.

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