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“Porquê a mim?”. A pergunta é inevitável perante um diagnóstico de cancro. A partir daí, a única certeza que se tem é que existe medo e ansiedade. As perguntas arrastam-se e as respostas nem sempre chegam. Muitas perguntas, poucas certezas. Os desafios, esses, são constantes e diários. No cancro, tal como em outras doenças, não existem verdades absolutas. Em Dia Mundial de Luta Contra o Cancro, comemorado anualmente a 4 de fevereiro, é tempo de refletir e perceber o que tem vindo a mudar ao longo dos anos.
“O cancro somos nós. São as nossas células que ficam doentes”, afirma Nuno Miranda, diretor do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas (PNDO) da Direção Geral da Saúde (DGS) e médico hematologista no Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil (IPOLFG). “Um cancro significa o crescimento clonal de um tecido nosso que não respeita as fronteiras, invadindo os tecidos vizinhos”, avança Manuel Sobrinho Simões, médico patologista do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP). Parece simples de entender, mas difícil de aceitar.
A determinada altura da vida, por algum motivo, as nossas defesas ficam diminuídas e o sistema imunitário menos vigilante, dando espaço para a doença se manifestar. “Por mais que tenhamos bons estilos de vida, não existe ninguém com ausência de risco. Os fatores de risco não constituem uma causa obrigatória. Globalmente, apenas 30 a 40% dos cancros são preveníveis. Ou seja, por mais saudável que seja a sua vida, pode sempre vir a ter um cancro. Conhecem-se casos de pessoas com cancro do pulmão que nunca fumaram e de outras que sempre fumaram e não desenvolveram a doença. Não é porque se fuma que se vai obrigatoriamente ter um cancro mas há doenças que matam e que dão um sofrimento tão grande ou ainda maior do que o cancro”, explica Fátima Cardoso, médica responsável da Unidade de Mama e do Programa de Investigação do Cancro da Mama do Centro Clínico Champalimaud, em Lisboa.
Devemos então ficar assustados por produzirmos células continuamente? “Os cancros acontecem quando todos os mecanismos de salvaguarda, que são muitos, falham. Felizmente, o corpo tem muitos mecanismos para lidar com a produção de células cancerígenas. Por exemplo, as células estão programadas para morrer se surgirem alterações graves ao seu DNA. O sistema imunitário vigia se as células produzem proteínas anormais e destrói-as”, explica Bruno Heleno, médico de medicina geral e familiar da USF das Conchas, em Lisboa, e professor auxiliar da Nova Medical School.
O sistema imunitário tem assim uma espécie de controlo remoto que gere a atividade das células malignas, “não sendo em número suficiente para originar doença”, explica Fátima Cardoso.
Rastreios. Sim ou não?
Tem sido um tema muito mediatizado e que parece colocar ainda mais dúvidas. Devemos ou não submetermo-nos a rastreios oncológicos, tipicamente incluídos naquilo que se considera prevenção secundária?
As recomendações feitas pela DGS são sobretudo relativamente a três rastreios: cancro do colo do útero (a mulheres dos 25 aos 64 anos), rastreio do cancro colorretal (pesquisa de sangue oculto nas fezes, anual, em homens e mulheres entre os 50-74 anos), rastreio do cancro da mama (mamografia, a cada dois anos, em mulheres entre os 50 e 69 anos). “A DGS está agora a preparar também recomendações sobre os rastreios de outras doenças para além dos cancros”, explica Bruno Heleno. A mamografia é aliás um exame que suscita alguma dúvida quanto à radiação e que pode condicionar a decisão da sua realização. Fátima Cardoso esclarece: “Ninguém pode pôr em causa o valor da mamografia, porque está mais do que provado que este exame salva vidas. Por outro lado, a técnica tem evoluído imenso ao longo dos anos. Uma viagem de avião de longo curso tem mais radiação do que todas as mamografias que fizer na sua vida. Ninguém vai deixar de ir de férias ou andar de avião. Então porque vai deixar de fazer mamografias?”, questiona.
Os rastreios são testes que permitem antecipar um diagnóstico clínico em pessoas que não têm qualquer sintoma. “O objetivo do rastreio não é diagnosticar mais nem precocemente. É obter ganhos em saúde: viver mais, viver melhor e necessitar de tratamentos menos agressivos”, clarifica Nuno Miranda. Perante determinado achado, pode ser estabelecido “um plano de diagnóstico precoce, para clarificar determinada situação, através de exames clínicos, histopatológicos e de imagem” e tentar atuar o mais precocemente possível”, sublinha o médico.
Segundo o Relatório “Doenças Oncológicas em números – 2015”, divulgado em fevereiro do ano passado pelo PNDO da DGS, continuam a existir “assimetrias significativas na cobertura geográfica. Embora se note um aumento dos programas de rastreio de cancro colorretal, a expansão acelerada a todas as regiões é uma prioridade”. Este é, aliás, um dos problemas apontados pela presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia (SPO), Gabriela Sousa: “A maior parte destes rastreios populacionais dependem do facto de cada cidadão ter um médico de família, o que não existe atualmente no nosso país. Têm sido feitos esforços neste sentido, mas é necessário criar as condições para que os rastreios de base populacional sejam reais, universais e equitativos”.
Para dar um exemplo concreto e com números que ajudam a perceber esta diferença regional, relativamente ao cancro do colo do útero, e apesar de ter havido um aumento significativo da taxa de cobertura, durante o ano de 2015, registou-se no 1º semestre a cobertura completa da Região Norte, com uma taxa de 72%, segundo o relatório do PNDO. “Persiste por cobrir a região de Lisboa e Vale do Tejo”, avança o documento.
No caso do rastreio do cancro da mama, também ainda não está completamente implementado no sul do país. “Em 2016, foram convidadas a nível nacional, através dos três núcleos regionais da Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC) e por intermédio de carta convocatória, 534.665 mulheres, dais quais 315.321 foram rastreadas. A taxa média de participação nacional situou-se nos 59%, correspondendo 31% do total a ‘mulheres novas’ (convidadas pela primeira vez para realizar o rastreio) e 69% a ‘mulheres de repetição’ (que integraram o programa de rastreio em voltas anteriores) ”, revela Vítor Veloso, presidente da direção da LPCC.
Avaliando os benefícios do rastreio neste cancro em particular, conhecido pela sua incidência, pelo aparecimento de novos casos anualmente, e pela sua influência no número de mortes, o que tem sido aceite é que “eventualmente conseguimos diminuir a mortalidade, entre 10 a 15%. Estas são percentagens relevantes. Por outro lado, é possível “diminuir muito as mastectomias e ter cirurgias mais conservadoras e fazer apenas tumorectomias, conseguindo conservar a mama. Este é obviamente um ganho muito grande. Agora, temos de estar atentos às modificações da doença, aos tratamentos, e perceber que, não é por um dia, no passado, termos decidido que havia rastreio, que o mesmo irá existir para sempre” , fundamenta Nuno Miranda. Para Fátima Cardoso, não se deve subestimar o rastreio: “Ele salva vidas”.
A controvérsia mantém-se na comunidade científica e nos médicos de todo o mundo. A solução poderá passar por ter a capacidade de avaliar a qualidade do rastreio ao longo do tempo e ajustar a política de saúde sempre que assim se justificar. “Duvido que, em relação à União Europeia, haja algum país que venha a tomar uma posição isoladamente. É um assunto quente em cima da mesa, mas os dados ainda são a favor da manutenção do rastreio”, adianta o diretor do PNDO.
E como podem as pessoas tomar a melhor decisão? Como saber se é ou não adequado submeter-se ao rastreio? Informar devidamente os doentes parece ser uma alternativa adequada. “Não se deve ser fundamentalista e afastar as pessoas dos rastreios, como também não se deve obrigá-las a seguir esta política de uma forma completamente cega. É bom que as pessoas percebam que há prós e contras nos rastreios. Há que ajudá-las a avaliar criticamente as razões pelas quais devem realizá-los”, defende João Oliveira, médico e diretor clínico do IPOLFG.
Passará tudo por uma questão de equilíbrio: não fazer a mais nem a menos. “Não vale a pena andar à procura de cancros indolentes que não vão ser a causa de problemas, mas não se pode minimizar quando há sintomas ou um sinal de alerta, e não se pode ignorar o benefício do rastreio nas idades em que é recomendado”, refere Fátima Cardoso.
Desengane-se quem pense que este é um equilíbrio fácil. Não é. Gabriela Sousa partilha a posição da SPO relativamente ao tema. “Fico sempre um pouco preocupada com o sobrediagnóstico mas tenho francamente maior preocupação se determinada situação não for tratada com intenção curativa porque fomos tarde demais”.
Diagnosticar a mais
Um estudo liderado pelo professor Carlos Martins, da Universidade do Porto, publicado na revista científica “Plos One”, no ano de 2013, intitulado: “A Population-Based Nationwide Cross-Sectional Study on Preventive Health Services Utilization in Portugal—What Services (and Frequencies) Are Deemed Necessary by Patients?”, veio demonstrar que existe muita desinformação em Portugal no que respeita a exames de rotina. As principais conclusões do inquérito realizado a 1000 pessoas, entre os 18 e os 97 anos, apontam para o facto de mais de 92% dos adultos portugueses considerarem que devem utilizar um grande número de serviços de saúde e muitos deles fazem exames de rotina anualmente (87,4%), nomeadamente análises ao sangue e à urina. Os resultados indicam que existe uma tendência para o uso excessivo de recursos. Mais de 37% dos inquiridos confirmaram que recorrem aos serviços de saúde por iniciativa própria.
“Primeiro, muitos portugueses esperam fazer exames que nunca foram avaliados do ponto de vista científico, isto é, nem sequer sabemos se reduzem mortes (por exemplo, ecografias à tiroide ou ecografias abdominais). Segundo, muitos portugueses esperam que alguns rastreios sejam feitos mais vezes do que o recomendado pelos estudos científicos. Terceiro, há exames que a maior parte dos profissionais de saúde e investigadores considerariam importantes mas que alguns portugueses não veem como tal.”
Bruno Heleno resume este trabalho em três pontos essenciais: “Primeiro, muitos portugueses esperam fazer exames que nunca foram avaliados do ponto de vista científico, isto é, nem sequer sabemos se reduzem mortes (por exemplo, ecografias à tiroide ou ecografias abdominais). Segundo, muitos portugueses esperam que alguns rastreios sejam feitos mais vezes do que o recomendado pelos estudos científicos. Terceiro, há exames que a maior parte dos profissionais de saúde e investigadores considerariam importantes mas que alguns portugueses não veem como tal. Neste trabalho, vemos que a questão do rastreio ‘a mais’ acontece mais vezes que a do rastreio ‘a menos’”.
A polémica não é de hoje. A questão do sobrediagnóstico e do consequente sobretratamento tem vindo a público e dividido a opinião pública, mas também a dos especialistas em oncologia. Estudos a nível mundial sublinham a importância de se entenderem os reais benefícios dos rastreios. “O caso talvez mais interessante passou-se nos anos 90, em relação a um tumor pediátrico, o neuroblastoma, um tumor que, na maioria dos casos, aparece na glândula suprarrenal e que produz uma hormona da família da adrenalina e que é possível identificar e diagnosticar o caso através de um teste de urina”, explica Nuno Miranda. Todas as crianças que atingiam seis meses de idade e um ano realizaram este teste.
“O resultado foi ter o dobro de diagnósticos do que aquilo que estavam à espera, operar o dobro das crianças do que seria previsto mas a mortalidade foi a mesma. O que se percebeu é que se estava a diagnosticar casos que iriam espontaneamente regredir e desaparecer. Sabia-se que, em alguns neuroblastomas, as células evoluíam, ficavam maduras e deixavam de ser malignas. Percebeu-se então que a utilidade do rastreio era zero: eram operadas crianças que não tinham necessidade, ou seja, iriam ser sujeitas a uma toxicidade significativa”, adianta o médico. O estudo foi depois repetido em crianças na Alemanha e no Canadá e os resultados “foram exatamente os mesmos. Isto tem de servir de alerta pois um rastreio, só por diagnosticar mais ou precocemente, pode não ser suficiente”
Este não é, porém, caso único. Manuel Sobrinho Simões conta outro exemplo, ocorrido na Coreia da Sul, relativamente ao cancro da tiroide. “Se uma pessoa tem um diagnóstico de um nódulo pequenino na tiroide e faz uma biópsia, muitas vezes, esse exame mostra a malignidade, essa pessoa vai querer ser operada para que lhe seja retirada a tiroide. Esta cirurgia tem riscos e custos associados bem como consequências futuras. Isto foi feito por sistema na Coreia do Sul e é um exemplo terrível. Gastou-se imenso dinheiro, as senhoras ficaram sem tiroide, e este cancro tornou-se o mais frequente nas mulheres desse país, ultrapassando em frequência, o da mama. Acontece que as mulheres sul coreanas continuam a morrer de cancro da tiroide com idêntica frequência baixíssima porque felizmente este é um cancro pouco agressivo”, explica.
“Julgo que é crucial saber se qualquer rastreio que propomos aos cidadãos foi suficientemente investigado do ponto de vista científico e se veio reduzir o número de mortes”, afirma Bruno Heleno.
No Japão, a opção foi outra: proibir este procedimento e não permitir a realização de biopsias a nódulos menores de 1 centímetro. “Nesses casos, segue-se aquilo que se chama de ‘watchful waiting’, isto é, acompanhar a situação e vigiar. No Japão, o número de casos de cancro da tiroide é muitíssimo mais baixo do que na Coreia do Sul e o dinheiro que está a ser gasto é cem vezes menor. No Japão, o procedimento consiste em repetir o exame ecográfico passado um certo tempo para verificar o tamanho do nódulo. Só se operam as doentes em que a situação piore. Segundo este procedimento, a mortalidade por cancro na tiroide é, no Japão, igual à da Coreia do Sul. Ou seja, neste país, gastou-se muito mais dinheiro, assustaram-se as pessoas (e as mesmas passaram a ter que tomar medicação), aumentaram-se os problemas com a falta de tiroide que podem levar a perturbações a vários níveis. Por último, a mortalidade é a mesma do que no Japão (muito baixa)”.
É aqui que a questão do sobrediagnóstico se torna particularmente relevante. Para o médico de medicina geral e familiar Bruno Heleno, esta não é, porém a questão central. “Julgo que é crucial saber se qualquer rastreio que propomos aos cidadãos foi suficientemente investigado do ponto de vista científico e se veio reduzir o número de mortes”, afirma.
Escolha informada, decisão individual
Também o rastreio do cancro da próstata através do exame de sangue PSA (marcador tumoral que ajuda a detetar a doença) tem dividido opiniões. “Temos muitas dúvidas se o PSA reduz o número de mortes e temos algumas certezas sobre o facto de causar danos ao homem. Se calhar, este mesmo doente nunca ouviu falar de um rastreio para o cancro do intestino (por pesquisa de sangue oculto nas fezes), para o qual existe prova científica que é útil para reduzir o número de mortes. Causa-me alguma estranheza este maior conhecimento relativamente ao cancro da mama e da próstata, e muito menor em relação ao cancro do intestino, cujo rastreio tem dois benefícios distintos: reduz a mortalidade e o número de novos cancros”, defende Bruno Heleno. No entanto, o mesmo médico considera que podem existir razões válidas que levem os médicos a prescrever outros testes, outros intervalos de rastreio ou a realização noutras idades. “Todavia, os cidadãos têm direito a saber porquê e também têm direito a pedir uma segunda opinião”, explica.
O facto de não se propor um rastreio populacional através do PSA não significa que não se justifique em termos individuais. É o que defende Nuno Miranda. “Não propomos porque o número de doentes tratados que não necessitariam de tratamento, ao longo da vida, é muito grande. Por outro lado, em termos de sobrevivência, as vantagens são ainda melhores. Achamos que não existem motivos para a realização do rastreio até porque os efeitos secundários do tratamento são significativos: provocam impotência, incontinência urinária e efeitos psicológicos importantes. Isto não significa que, em casos individuais, de diálogo entre o médico e o utente, não se justifique a sua realização”, acrescenta.
Este é aliás um dos paradigmas atuais: colocar o cidadão no centro da sua saúde dotando-o das informações mais corretas e fidedignas. “O rastreio é um direito de pessoas devidamente informadas. Temos de informar adequadamente as pessoas que são sujeitas a programas de rastreio sobre esta realidade. Depois, a decisão será individual”, explica o diretor do PNDO.
Comparando o rastreio do cancro da mama e da próstata, Nuno Miranda assinala as devidas diferenças. “No caso da mama, o que propomos no rastreio é que seja realizado em pessoas sem antecedentes pessoais relevantes. No caso da próstata, podem existir determinados antecedentes particularmente familiares que possam ser mais importantes e que justifiquem o pedido de testes de rastreio a determinadas pessoas”.
Relativamente à próstata, Fátima Cardoso acrescenta: “Na década passada, houve uma explosão de um uso errado do marcador sanguíneo PSA. O uso indiscriminado do PSA levou a um exagero de biópsias da próstata, e de cirurgias prostáticas com uma série de complicações associadas”.
Nas consultas de medicina geral e familiar, Bruno Heleno segue as recomendações da DGS. Mas acha fundamental adequá-las a cada doente em particular. “No entanto, não temos uma única decisão que sirva a todas as pessoas. Esta questão da escolha informada e de as pessoas poderem tomar decisões quanto à sua saúde, é muito importante”, afirma.
Assumir a responsabilidade relativamente à nossa saúde. É nisso que se fala no que respeita aos estilos de vida que optamos seguir. E aqui, há um extremamente importante e que ajudaria a prevenir alguns cancros, sobretudo o do pulmão: não fumar. “Há muitas intervenções eficazes que não estão acessíveis. Se eu quiser convencer um doente a deixar de fumar, posso sugerir que o mesmo seja acompanhado em consultas próprias, com apoio psicológico e o recurso a tratamento farmacológico, como por exemplo, a substituição de nicotina ou outros. Sei que fazendo isto aumento o sucesso da cessação tabágica. No entanto, estes tratamentos não são totalmente comparticipados e estão inacessíveis a algumas pessoas”, afirma Bruno Heleno. O médico considera esta questão mais relevante do que a dos rastreios. “Deve um país como Portugal investir nesta questão da comparticipação da terapêutica de substituição de nicotina e num acompanhamento psicológico intensivo a quem quer deixar de fumar ou num rastreio do cancro do pulmão? Faz mais sentido investirmos na cessação tabágica do que no rastreio pois estamos a reduzir o cancro do pulmão, a diminuir mortalidade por enfarte e por Acidente Vascular Cerebral (AVC) e a aumentar a qualidade de vida. A esmagadora maioria de fumadores quer deixar de fumar mas tem pouca capacidade para o conseguir fazer”, defende.
Também Fátima Cardoso refere as décadas de luta contra o tabaco. “Não conseguimos mudar os hábitos dos fumadores. Nem tudo é negativo: o tabagismo tem diminuído em alguns países desenvolvidos e uma das leis que mais contribuiu para esta realidade foi a de não se poder fumar em locais públicos. No entanto, infelizmente, as tabaqueiras foram para os países em desenvolvimento, e os países onde mais se fuma atualmente são os mais pobres. Isto tem consequências graves”, afirma.
Portugal com bons resultados
Vivemos mais tempo. A esperança média de vida aumentou tendencialmente nos últimos anos. A consequência? O aumento da incidência de cancro. É considerada hoje uma epidemia. E porquê? “O cancro é essencialmente uma consequência de se viver mais. O tipo de alterações biológicas que originam cancro decorre de vivermos mais tempo. Se estamos vivos mais tempo, aumentamos as probabilidades de ter alterações nas células, de estas morrerem menos, de se dividirem mais e invadirem e de se darem bem noutros sítios. Sobretudo a partir da primeira metade do séc. XX, com o aumento da esperança de vida, o cancro passou a ser tratado como um flagelo”, esclarece João Oliveira.
Gabriela Sousa preocupa-se também com o facto de o cancro ser hoje “a principal causa de morte prematura, na população com menos de 65 anos, facto esse que deve levar a uma reflexão”.
Já se assume o cancro como uma epidemia, pelos motivos apontados. Fátima Cardoso fez uma apresentação na Organização Mundial de Saúde (OMS) intitulada “Cancro: a Nova Epidemia” para que se tome consciência que a incidência de cancro está a aumentar de tal maneira que vai ser quase impossível não termos um cancro durante a nossa vida. “Isto não significa que todos os doentes oncológicos venham a morrer da doença. A mensagem principal é: quanto mais cedo se diagnosticar, maior a probabilidade de cura, bem como a possibilidade de tratar, por vezes, menos agressivamente. É uma doença muito grave e potencialmente fatal, mas diagnosticada cedo, obtendo o tratamento correto, nas mãos das pessoas certas, tem uma percentagem de cura substancial”, explica.
Também nesta questão os números têm peso e levam-nos a refletir. “Com o aumento da esperança de vida a maioria das pessoas terá um cancro ao longo da vida. Nos EUA, estima-se que uma em cada três pessoas venha a ter a doença, e que, uma em cada cinco pessoas venha a morrer da doença”, explica Bruno Heleno. Mas também há estatísticas pela positiva do cancro relativamente a outras doenças igualmente graves. Manuel Sobrinho Simões esclarece: “Temos, por ano, 60 mil novos casos de cancro, e morrem 25 mil doentes, isto é, menos de 50% de mortalidade. Morrem mais de 30 mil portugueses por ano, por doenças cardiovasculares e cerebrovasculares, onde se inclui o enfarte do miocárdio, o AVC e complicações da diabetes, entre outros motivos”.
O relatório “Doenças Oncológicas em Números – 2015” conclui que Portugal, na sua globalidade, “tem uma mortalidade baixa por cancro, por padrões europeus. Estes resultados têm múltiplas causas, entre elas: estilos de vida, exposição a fatores de risco, padrões genéticos, acessibilidade a tratamentos e qualidade dos mesmos. Para além das causas é importante definir as áreas de possível intervenção, onde possamos obter mais ganhos em saúde”, pode ler-se no documento. Nuno Miranda confirma que “os números são simpáticos. Comparativamente com outros países, temos dados relacionados com a mortalidade em que estamos muito bem, temos excelentes profissionais, mas ainda há muito a fazer”.
O problema identificado, assumido e que preocupa particularmente o diretor do PNDO é “o excesso de mortalidade por cancro colorretal nos homens quando comparada com outros países europeus. Não é para mim facilmente compreensível porque é que temos uma mortalidade mais elevada nos homens e não o encontramos nas mulheres que se situam em níveis medianos”. Relativamente a este ponto, e assumindo a dificuldade de logística no aumento da cobertura do rastreio que se encontra hoje um pouco acima dos 20%, Nuno Miranda afirma que “será feito um investimento, ainda este ano, de alargamento do rastreio para tentar chegar a uma população mais alargada”.
Há ainda uma tendência dos novos tempos que preocupa o diretor do PNDO, e que se prende com a maternidade tardia. “O facto de as mulheres portuguesas terem filhos e amamentarem mais tardiamente vai ter consequências no futuro. Isto poderá vir a modificar significativamente o padrão do cancro da mama e esta é uma preocupação que temos porque as mulheres começam a estar hoje menos protegidas. Esta é uma modificação civilizacional e temos de lidar com isso”.
Uma das orientações atuais passa por aprender com casos de sucesso e que correram bem. Uma nova forma de estudar a oncologia que já é o presente. “Durante muito tempo, na ciência médica, e particularmente em oncologia, discutiam-se os casos que corriam mal. Hoje em dia, preocupamo-nos muito mais com o contrário. Uma das grandes áreas de desenvolvimento da ciência é perceber os casos improvavelmente bons, porque temos muito a aprender com os mesmos. Há que perceber como é que o tumor se comportou, como é que o sistema imunológico daquela pessoa reagiu e deixar de olhar este tipo de coisas como desconhecimentos da natureza para tentar percebê-los. O que é facto é que temos aprendido muito com estes casos”.
“A evolução científica tem permitido tratar o cancro cada vez mais de forma assertiva. O desejável seria estudarmos cada tumor do ponto de vista genético e adaptar o tratamento necessário. Isto ainda não é possível na maior parte das situações mas podemos dizer que temos assistido a uma evolução muito significativa”
Da mesma forma, a tendência poderá passar por personalizar cada vez mais. Nuno Miranda defende que o que são hoje verdades estabelecidas, poderão ser colocadas em causa, “daqui a meia dúzia de anos”. E porquê? “Teremos métodos diferentes de estratificar e de agrupar as pessoas por fatores de risco intrínsecos e genéticos; e fatores de risco relacionados com os estilos de vida que poderemos medir em cada pessoa. Estamos um pouco na ‘infância’ desta arte e provavelmente, o desenvolvimento a esse nível vai ser muito importante nos próximos anos: conseguir perceber através da biópsia que determinado tumor é para operar e outro é para manter em vigilância. Esta é uma área onde está a ser feito grande investimento em termos de investigação”, explica o médico. Também a presidente da SPO vê as vantagens desta realidade. “A evolução científica tem permitido tratar o cancro cada vez mais de forma assertiva. O desejável seria estudarmos cada tumor do ponto de vista genético e adaptar o tratamento necessário. Isto ainda não é possível na maior parte das situações mas podemos dizer que temos assistido a uma evolução muito significativa, não só no sentido de aumentar a eficácia do tratamento mas também na melhoria da qualidade de vida associada aos vários tratamentos”.
Desmistificar mitos
Nesta aposta de estilos de vida mais adequados que são também influentes para outras doenças, igualmente graves, é importante desmistificar a ideia de que ter cancro “é uma sentença de morte”. A palavra cura tem deixado de ser uma miragem, ao longo dos anos, muito devido aos casos de sucesso e ao maior controlo da doença. “Os cancros avançados não são, na sua grande maioria, curáveis. São, muitos deles, tratáveis e também controláveis. É verdade que o comportamento da pessoa desempenha um papel importante no sucesso do tratamento e que a adesão à terapêutica é fundamental. Mas a partir daí, é preciso ter sorte”, explica Manuel Sobrinho Simões.
O patologista é crítico relativamente à questão amplamente ouvida nos meios de comunicação social a propósito da luta contra a doença. “A ideia, muito frequente nas figuras públicas e nos atores políticos, que se deve tornar este processo uma ‘luta’ é um disparate. Aparecer a dizer que venceram um cancro é um disparate. Por princípio, se alguém tratou eficientemente o cancro é porque o diagnosticou em fase precoce, foi bem tratado mas também é sinal que teve sorte. É uma estupidez afirmar que se lutou e venceu o cancro porque dá a impressão de que quem não vence o cancro, não teve força de vontade suficiente”, defende.
Também o diretor clínico do IPOLFG tem uma opinião própria sobre a palavra “luta” incluída, aliás, no próprio nome do dia mundial que relembra a doença a 4 de fevereiro. “Quanto maior é a importância que dou às minhas armas, mais força estou a dar ao meu inimigo implicitamente. A metáfora bélica reforça no sentido que o cancro é algo péssimo e muito agressivo”, explica. No entanto, percebe o sofrimento que os doentes e seus familiares enfrentam. “Não há nenhuma maneira boa de passar por isto. A família sofre imenso, toda a vida de um agregado familiar é completamente transformada pela doença. Não se pode banalizar porque esta é uma doença grave e que não é banalizável mas se a carregamos com ‘cores de guerra’, estamos a aumentar o potencial angustiante da mesma”.
Surgem ainda algumas ideias que importam desmistificar relativamente a esta doença. “Apesar de tudo, o cancro é uma doença curável. Não podemos dizer isso relativamente a muitas outras patologias”, explica Nuno Miranda.
A SPO considera que é importante passar a mensagem à população de que “o cancro não implica morte (há uma população crescente de sobreviventes, e mesmo no contexto de doença mais avançada, cada vez mais o cancro é tratado como uma doença crónica) e a vida depois do cancro não é necessariamente má (será necessariamente diferente mas, em muitas situações, até passa a ser melhor, porque quando confrontadas com um diagnóstico de uma doença grave, muitas pessoas passam a dar mais importância a determinadas situações e a aproveitar determinados momentos)”, salienta Gabriela Sousa. A presidente da SPO considera ainda relevante alertar para os doentes que optam por medicinas alternativas. “É muito importante que o oncologista tenha conhecimento de toda a medicação que o doente está a tomar ou mesmo chás, muitas vezes derivados de plantas que podem agravar a ação do tratamento oncológico e colocar em risco a vida. Existem tratamentos que se fazem, sobretudo relacionados com medicinas alternativas que podem interferir com a quimioterapia ou com a hormonoterapia”.
“Não se pode banalizar porque esta é uma doença grave e que não é banalizável mas se a carregamos com ‘cores de guerra’, estamos a aumentar o potencial angustiante da doença”.
Para apoiar os doentes ou familiares e esclarecer dúvidas que persistam, a LPCC disponibiliza a Linha Cancro. Criada em 2008, regista uma média de duas mil chamadas e de 1.200 emails por ano, e os profissionais da Linha respondem a questões relacionadas com a doença oncológica, os direitos dos doentes, dando ainda apoio psicológico e social. A Linha Cancro está disponível, durante a semana, das 9H00 às 18H00, através do número gratuito 800 100 100, pelo e-mail linhacancro@ligacontracancro.pt e, em alternativa, é também possível deixar as questões online, através do formulário no site da LPCC (www.ligacontracancro.pt).
A Liga lançou recentemente uma nova campanha onde divulgou que esta linha passou a ser gratuita e a disponibilizar apoio jurídico gratuito. E o impacto já se fez sentir. “Só em janeiro deste ano, o volume de chamadas recebidas ultrapassou o total do ano de 2016”, explica Vítor Veloso.
O acesso a medicamentos
De que forma é que o país dá resposta ao tratamento oncológico e aos doentes com cancro? “Portugal responde como pode responder”, afirma Nuno Miranda. Fátima Cardoso elogia o Serviço Nacional de Saúde (SNS), apesar de todas as dificuldades. “Os portugueses têm de ter consciência que temos algo com um valor inestimável que é o SNS. Se é perfeito? Não. Se tem acesso a tudo? Também não. Mas tem acesso ao básico. Há muitos países, e o exemplo mais gritante é o dos EUA, em que a grande maioria da população não tem acesso ao básico porque não existe um SNS. Portugal tem acesso aos medicamentos básicos e ao tratamento mais fundamental e isso é um valor inestimável. Tem de se gerir os gastos com muito cuidado tal como gerimos o orçamento das nossas casas. Nós, os peritos, temos de ajudar o SNS a definir as prioridades e a colocar o dinheiro naquilo que é prioritário. Temos de assumir as nossas responsabilidades. É uma decisão difícil que a maioria dos profissionais de saúde não quer tomar”.
Do ponto de vista técnico, “quer os IPO’s, quer os hospitais universitários, quer outros hospitais públicos ou privados, são tão bons, como os hospitais de Espanha ou da Irlanda, por exemplo”, afirma Manuel Sobrinho Simões.
No passado dia 30 de janeiro, o Observador publicou a notícia que dá conta que, pela primeira vez, desde 2005, os serviços de saúde em Portugal superaram Espanha e o Reino Unido no ranking “Health Consumer Powerhouse”, uma empresa sueca de análise de mercado que avalia o desempenho dos sistemas de saúde em 35 países europeus através da perspetiva do consumidor e dos dados fornecidos pelas Direções-gerais de Saúde dos diferentes países. A avaliação dos utentes portugueses colocou Portugal em 14º lugar.
Alguns problemas de Portugal e de outros países relacionam-se com algumas terapêuticas. Para a diretora da Unidade de Mama da Fundação Champalimaud, a falta de acesso a medicamentos inovadores é um problema grave e mundial. “Nenhum orçamento de saúde (nem o dos EUA) consegue suportar o custo de todos os medicamentos inovadores aos preços atuais. Há neste momento grupos de trabalho a nível internacional, incluindo com a indústria farmacêutica, para se chegar a uma solução que não é fácil mas que está a ser trabalhada. É verdade que a indústria farmacêutica investe muitos milhões e existe muito pouco investimento público no que respeita a novos medicamentos, mas os preços atuais são incomportáveis. Tem de haver uma avaliação muito séria do verdadeiro benefício de todos estes medicamentos inovadores”.
A médica integra a Sociedade Europeia de Oncologia Médica (ESMO) que desenvolveu a ferramenta chamada “Magnitude of Clinical Benefict Scale”, uma escala que dá um score a cada novo tratamento de acordo com o benefício que nos traz (em termos de eficácia e de qualidade de vida) e que ajuda a fazer uma lista de prioridades. “Nem tudo o que é novo e caro é necessário. Esta escala pode ajudar quem toma as decisões a estabelecer uma lista de prioridades: os que têm um score alto são os que têm de ser dados prioritariamente aos doentes”, explica.
É, no entanto, em relação aos medicamentos baratos essenciais que constituem a base do tratamento de vários tipos de cancro que residem constrangimentos atuais. “Há uma lista da OMS de medicamentos essenciais, para todas as doenças. O objetivo da OMS é que, pelo menos, 80% da lista esteja disponível em todos os países. Estamos a falar de escassez dos medicamentos oncológicos que fazem parte desta lista”, alerta a médica.
E se, por um lado, os medicamentos inovadores “só vão ser eficazes numa pequena percentagem de casos”, os ditos medicamentos essenciais “utilizam-se em cerca de 50-80% dos doentes oncológicos. Por outro lado, é raro os medicamentos inovadores serem administrados sozinhos, pois habitualmente são utilizados em combinação com outros mais antigos. Como são medicamentos que não dão lucro, há uma dificuldade, não tanto na produção, mas na distribuição. Como vivemos num mercado livre (e isto é algo que me é muito difícil de compreender), os distribuidores não são obrigados a distribuir no nosso país, mas podem vender os nossos medicamentos na Alemanha que paga cinco vezes mais. E não há lei nenhuma que obrigue a que, pelo menos, uma percentagem fique para os doentes portugueses. Ou seja, o que é produzido e que pode ser um benefício para os doentes, não chega necessariamente a Portugal e pode ser desviado para outros países”. Neste momento, existem grupos ao nível da Comunidade Económica Europeia (CEE) para que se aumente o poder negocial e sejam implementadas soluções nos vários países europeus que partilham das mesmas limitações.
“Nos últimos anos, foram registados diversos casos em que houve escassez de medicamentos por fábricas ou unidades de produção que foram encerradas por problemas de segurança para o consumidor final”
Para o diretor do PNDO, a escassez de alguns produtos básicos antigos na oncologia “é muito mais grave nos EUA do que na Europa porque existem grandes limitações em relação à capacidade de importação por constrangimentos legais”. No que respeita à Europa, tem conhecimento que a escassez é relativa a vários países europeus, mas não deteta diferenças significativas no que respeita ao acesso. Nuno Miranda refere a atual dificuldade relacionada sobretudo com a gestão de stocks. “A economia mundial atualmente é cada vez mais assente em ‘stocks zero’. Mudou-se um pouco o paradigma e os sistemas tornaram-se mais frágeis passando-se a produções relativamente pequenas”, explica considerando, no entanto, que existe hoje maior regulação e mais controlo ao nível da segurança. “Nos últimos anos, foram registados diversos casos em que houve escassez de medicamentos por fábricas ou unidades de produção que foram encerradas por problemas de segurança para o consumidor final”, sublinha.
Existe uma atual competição entre produtos mais caros e inovadores e os tratamentos dito clássicos. “Temos falta de produção ou descontinuação de produção de medicamentos devido a vantagens económicas dos tratamentos inovadores. Já assisti a isto em diversos casos e inclusive em alguns que tiveram de voltar atrás”. Em simultâneo, os novos preços de medicamentos antigos também são preocupantes. “Estamos a falar de medicamentos que custavam abaixo da centena de euros e cujo preço subiu dez a vinte vezes, de um momento para o outro. Como muitas vezes estamos perante medicamentos de um único fornecedor, ou compramos aquele, ou não. Este é um problema atual. Por vezes, podemos recorrer a alternativas mais baratas mas nem sempre existe essa opção. O problema é particularmente crítico nos EUA onde os grandes centros oncológicos se debatem com problemas sérios nesta área”, defende.
E em Portugal? Como se encara esta realidade? “Os hospitais têm tido, entre si, uma grande entreajuda nesta questão dos esquemas de fornecimento tendo a capacidade de emprestar medicamentos entre uns e outros. Os farmacêuticos dos hospitais já trabalham desta forma há muito tempo e têm a capacidade de suprir as suas faltas com este procedimento. Há casos de diminuição de fornecimento mundial e Portugal é um elemento eventualmente frágil da cadeia”, explica Nuno Miranda. Não apoia propriamente as soluções encontradas por alguns países com produção local de medicamentos por empresas estatais ou paraestatais responsabilizando a indústria farmacêutica em relação à manutenção da cadeia de abastecimento. “Este é um problema social e a responsabilidade da indústria é manter medicamentos que provavelmente já pagaram há muito tempo os custos de investigação e desenvolvimento. São medicamentos que estão no mercado há 40/50 anos, e onde não existe qualquer explicação lógica para estes procedimentos”, defende.
Esta foi uma das conclusões refletida no Relatório “Doenças Oncológicas em Números -2015” do PNDO em que se enuncia um aumento de 9,8% de custos com fármacos e apenas de 4,5% em quantidades, quando comparado com o período homólogo de 2014. “Estamos a assistir a uma deriva significativa no sentido do consumo de fármacos mais caros, colocando pressão muito significativa sobre o SNS”, pode ler-se no relatório.
“Em Portugal, fruto da crise económica (período troika e pós-troika) houve um grande período em que estes novos fármacos aguardaram vários anos por uma avaliação fármaco-económica e respetiva decisão de comparticipação”
A SPO tem manifestado a sua preocupação nesta área em particular. “Em Portugal, fruto da crise económica (período troika e pós-troika) houve um grande período em que estes novos fármacos aguardaram vários anos por uma avaliação fármaco-económica e respetiva decisão de comparticipação. Várias vezes manifestámos a nossa preocupação neste tema porque durante o período de avaliação de um fármaco, que chegou a ser em média de 534 dias, os doentes tinham um acesso muito condicionado e geraram-se grandes assimetrias no SNS havendo hospitais que dispensavam os medicamentos e outros que não o faziam”, salienta Gabriela Sousa.
No início do triénio diretivo da SPO, foi realizado um estudo sobre as perceções dos profissionais da oncologia e esta era a principal preocupação: as assimetrias no tratamento do cancro. “Atualmente, e mérito deste Governo e do Infarmed, esta questão está a ser resolvida e hoje os fármacos que mostram ser custo-eficazes estão a ser comparticipados de forma mais célere”, adianta.
No começo deste ano, o Infarmed comunicou que, em 2016, foi aprovado o maior número de medicamentos inovadores de sempre em Portugal. “Durante o ano, o Infarmed aprovou o financiamento ou a comparticipação de 51 medicamentos, 35 dos quais de uso hospitalar, o que representa um acréscimo de 38% em relação a 2015”, pode ler-se no comunicado de imprensa.
A nível hospitalar, destacam-se as aprovações na área da oncologia, com 13 novos medicamentos em áreas distintas, como a do cancro da próstata, mieloma, mama, pulmão, linfoma ou leucemia.
Fazer parte do tratamento
Centros multidisciplinares com equipas treinadas e especializadas. Eis um dos pontos essenciais no adequado tratamento do cancro. Fátima Cardoso alerta para a importância da experiência clínica. “Não pode ser um médico isoladamente a fazê-lo. A experiência nesta área é fundamental e a falta dela pode ser fatal”, explica. Os casos oncológicos, quer em fase de diagnóstico, quer de tratamento, pressupõem reuniões clínicas com equipas multidisciplinares. “A minha luta não se relaciona com sistemas públicos e privados. Sei que as pessoas gostam de ser tratadas perto de casa mas é importante saberem que numa doença como o cancro, mais vale o esforço de se deslocarem a um local com o melhor tratamento, do que ficar perto de casa, sendo tratadas por quem não tem a experiência necessária. Por exemplo, são de evitar situações em que um cirurgião privado que decide sozinho, sem partilha de opinião clínica com colegas, ou a escolha de um hospital mais periférico que não tenha experiência nem casuística (número de casos tratados). Isso é que se deve evitar”, defende.
De igual modo, a médica desaconselha a tomada de decisões tendo por base o pânico. “Se alguém disser uma mulher numa consulta: tem um cancro da mama e tenho de operá-la esta semana, é momento de parar. Isto não é verdade. Tem uma doença grave, sim. Tem de ser tratada rapidamente, sim. Mas tem tempo para ter uma segunda opinião, fazer os exames corretamente, e ser operada no espaço de um mês mas adequadamente. Muitas vezes fazem-se mastectomias desnecessárias e precipitadamente. Esta é uma realidade de vários países mas também de Portugal”, alerta a médica da Fundação Champalimaud, que sugere uma decisão ponderada e a procura de centros com experiência.
No que respeita ao pedido de segunda opinião, Nuno Miranda considera que os doentes têm direito a pedi-la desde que “saibam lidar com a mesma, porque pode ser distinta da primeira. Em Portugal, mais de 2/3 dos doentes são tratados em centros devidamente organizados com profissionais competentes”, diz-nos.
“Há indiscutivelmente ainda um pavor do diagnóstico de cancro que está muito relacionado com a ideia, do passado, de que é uma doença incurável e que implica muito sofrimento. Nem uma coisa nem outra são, hoje, verdade, mas estão na mente das pessoas”, explica o patologista Manuel Sobrinho Simões.
Considerando que ainda é prática comum os doentes afirmarem nas consultas “o Senhor Doutor é que sabe”, tenta contrariar esta tendência e permitir que façam parte das decisões. “Sei o que devo sugerir, dou alternativas, e a pessoa deve decidir. A responsabilidade continua a ser a minha, mas não proponho tratamentos que não considero adequados”. E mesmo quando os doentes surgem com sugestões de informação que procuraram no Google, o médico não descarta a oportunidade de discutir temas a partir daí. “As pessoas têm em si um grande desejo de participar e de fazer parte. Julgo que, por vezes, os médicos aproveitam mal este tipo de energias”.
Também para Bruno Heleno, é essencial garantir que as pessoas diagnosticadas com cancro façam “o tratamento em centros com muita experiência com todos os profissionais necessários para acompanhar os doentes oncológicos. Há ainda que garantir que as pessoas têm acesso a cuidados paliativos quando a doença é incurável”.
Existe, ainda, muito medo do cancro. E essa é uma das maiores certezas relativamente a esta doença. “Há indiscutivelmente ainda um pavor do diagnóstico de cancro que está muito relacionado com a ideia, do passado, de que é uma doença incurável e que implica muito sofrimento. Nem uma coisa nem outra são, hoje, verdade, mas estão na mente das pessoas”, explica o patologista Manuel Sobrinho Simões.
Para lidar com a doença, e perante um diagnóstico, recomendam-se algumas estratégias: procurar informação fidedigna, centros de referência e especializados, não tomar decisões baseadas no pânico ou na ansiedade. “Globalmente, o cancro consegue-se tratar. É uma doença muito grave e potencialmente fatal, mas diagnosticada cedo, obtendo o tratamento correto nas mãos das pessoas certas, tem uma percentagem de cura substancial”, conclui Fátima Cardoso.