Na madrugada de 7 de outubro, o chefe dos serviços secretos pertencentes às Forças de Defesa de Israel (IDF, sigla em inglês), o major-general Aharon Haliva, estava de férias na cidade costeira de Eilat. Por volta das 3 da manhã daquele dia, segundo conta o jornal Times of Israel, o responsável militar terá recebido uma nota de que havia “certos sinais oriundos de Gaza” que indiciavam um ataque de larga escala do Hamas contra território israelita. Desvalorizou os avisos, pensando que seria um treino militar, e ficou incontactável nas horas seguintes.
Foi um erro crasso do principal responsável por gerir as informações confidenciais nas Forças de Defesa de Israel. Por volta das 06h30, militantes pertencentes ao Hamas entravam em território israelita, matavam cerca de 1.200 pessoas e sequestravam centenas. Aharon Haliva reconheceu as falhas nas horas seguintes ao ataque. Mas admitiu igualmente que, mesmo que tivesse estado contactável naquela madrugada, isso não “teria mudado o resultado final de qualquer forma”. O chefe das secretas militares de Telavive tinha desvalorizado todos os alertas para um possível ataque do Hamas e não ia ser diferente nas primeiras horas do 7 de outubro.
Esta segunda-feira, numa semana em que se celebra a Páscoa judaica, em Israel, Aharon Haliva anunciou que abandonaria o cargo. A decisão não foi propriamente surpreendente, já que o responsável já tinha sugerido no passado que o iria fazer. “A diretoria das secretas militares, sob o meu comando, falhou em alertar para o ataque terrorista levado a cabo pelo Hamas. Falhámos a nossa missão mais importante e, como líder, responsabilizo-me totalmente pela falha”, assumira logo a 17 de outubro.
Na carta em que apresenta a demissão, Aharon Haliva recordou o “dia negro” que representou o 7 de outubro. “Carrego-o desde então, dia após dia, noite após noite. Carregarei esta dor horrível da guerra para sempre”, lamentou o militar, sublinhando que a sua posição “de autoridade implica uma grande responsabilidade”. Pediu igualmente que se estabeleça uma comissão de investigação para perceber “de uma maneira profunda e precisa todos os fatores e circunstâncias que levaram aos eventos difíceis”.
As Forças de Defesa de Israel aceitaram a demissão. O chefe das forças armadas, Herzi Halevi, agradeceu ao “major-general pelos seus 38 anos de serviços nas IDF, durante os quais fez contributos significativos para a segurança dos Estado de Israel quer como soldado, quer como comandante”. No entanto, ficou determinado que Aharon Haliva apenas sairá do cargo — e se reformará da vida militar — “quando o seu sucessor for escolhido, num processo ordeiro e profissional”.
O que significa a demissão desta alta patente das IDF?
O ataque do Hamas foi considerado uma falha grave dos serviços de segurança e secretos israelitas, uns dos mais sofisticados a nível mundial. E não foi por falta de informação. Segundo apurou o canal estatal de Israel Kan, em maio de 2022, já tinha sido apresentando um documento de 40 páginas às mais altas patentes militares que dava conta de um plano do grupo islâmico — a que se deu o nome de “Muro de Jericó” —, que detalhava com vários pormenores como é que o ataque seria levado a cabo.
No entanto, os serviços secretos israelitas desvalorizam o documento, apesar dos pormenores. De acordo com o New York Times, as principais autoridades militares e policiais consideravam que era demasiado ambicioso e difícil de executar para o Hamas. Mas estavam enganadas; em privado, vários dirigentes israelitas confessaram ao jornal norte-americano que, se os avisos tivessem sido levados a sério, isso poderia ter evitado os ataques de 7 de outubro e a consequente guerra em Gaza.
Assim sendo, vários dirigentes reconheceram em público a falha de segurança. Além de Aharon Haliva, o líder dos serviços de segurança interna israelitas (Shin Bet), Ronen Bar, admitiu que o organismo “foi incapaz de gerar um alerta capaz de travar o ataque”: “Como o líder desta organização, a responsabilidade é minha”.
Mais de sete meses depois do 7 de outubro, o chefe das secretas militares foi o primeiro a passar das palavras aos atos, demitindo-se. A sua saída era, no entender do cientista político na King’s College London, Ahron Bregman, “expectável e inevitável”. “Ele falhou clamorosamente ao não prever o ataque do Hamas, apesar de ter todas as informações debaixo do seu nariz que indicavam que o ataque era expectável”, sublinhou ao Observador.
O especialista israelita, que escreveu sete livros sobre os conflitos israelo-árabes ao longo dos últimos anos e que serviu nas Forças de Defesa de Israel durante seis anos, sinaliza igualmente que havia uma “pressão massiva” dos serviços secretos militares para que Aharon Haliva se demitisse. “E também havia [pressão] a nível político, liderada por Benjamin Netanyahu [primeiro-ministro israelita], que queria culpar as forças armadas pelo desastre [de 7 de outubro] para salvar a sua pele.”
Dito isto, a demissão de Aharon Haliva poderá abrir um precedente para a saída dos principais dirigentes que não travaram os ataques de 7 de outubro, acredita Ahron Bregman. Assim sendo, o especialista conjetura que o chefe das Forças de Defesa de Israel, Herzi Halevi, o líder do comando sul, Yaron Finkelman, e ainda o ministro da Defesa, Yoav Gallant, “deverão demitir-se a qualquer momento”.
Neste sentido, apontando o exemplo do chefe das secretas militares, a oposição aproveitou para criticar Benjamin Netanyahu. O líder da oposição israelita, Yair Lapid, pediu ao primeiro-ministro de Israel que siga o exemplo do chefe dos serviços secretos militares. “Com a autoridade vem uma grande responsabilidade”, escreveu o responsável na conta pessoal na rede social X (antigo Twitter), considerando “honrosa” a decisão de Aharon Haliva de pôr fim ao seu posto militar. “Teria sido apropriado que o primeiro-ministro Netanyahu tivesse feito o mesmo.”
Ao Observador, Netanel Flamer, membro do think tank Begin-Sadat Center for Strategic Studies e professor na Universidade Bar-Ilan, diz igualmente que é provável que as “pessoas responsáveis diretamente pela avaliação errada que levou à catástrofe de 7 de outubro” se demitam. Contudo, o especialista realça que é necessário antes empreender uma “mudança profunda” nas Forças de Defesa de Israel.
O motivo pelo qual Aharon Haliva se demitiu apenas esta segunda-feira é uma incógnita, sendo que o responsável nunca especificou o motivo por que abandona o cargo nesta altura. Por agora, Israel ainda leva a cabo uma ofensiva na Faixa de Gaza (estando uma operação militar em Rafah para breve) e enfrenta várias ameaças do Irão.
Tendo em consideração este contexto, um membro do think tank Chatham House, Yossi Mekelberg, assinala à Al Jazeera que Aharon Haliva tem estado sob uma “pressão imensa”. Não só pelos falhanços do 7 de outubro, como também por não prever adequadamente a resposta iraniana após o ataque de Israel contra o complexo diplomático do Irão em Damasco, na Síria, a 1 de abril.
De recordar que Israel atacou o complexo diplomático iraniano em Damasco e, em retaliação, o Irão lançou um ataque aéreo em larga escala contra território israelita. Ainda que 99% dos drones e mísseis tenham sido intercetados pelos sistemas de defesa aéreos de Israel em cooperação com os Estados Unidos, França e o Reino Unido, Yossi Mekelberg considera que os serviços secretos israelitas, em particular os militares, “deixaram o país” e o Médio Oriente perto de uma guerra regional. “Parece que ninguém ponderou a possibilidade de [o Irão] lançar mísseis, incluindo balísticos, contra Israel.”
Quem reagiu precisamente neste sentido foi a agência de notícias iraniana, IRNA. Na conta do X, lê-se que a saída de Aharon Haliva “foi um reconhecimento” da “derrota pesada” de Israel “contra as operações militares do Irão”.
The resignation and dismissal of Aharon Haliva, the head of Israel's military intelligence, was an acknowledgement of the Zionist regime's heavy defeat against #Iran's military operations. pic.twitter.com/xBZzrrxogn
— IRNA News Agency (@IrnaEnglish) April 22, 2024
Quem é o major-general Aharon Haliva?
Nascido a 12 de outubro de 1967 em Haifa, filho de pais marroquinos que imigraram para Israel, Aharon Haliva juntou-se às Forças de Defesa de Israel quando tinha 18 anos, mais concretamente à brigada paraquedista. Após o treino militar, participou na Guerra Civil do Líbano, que terminou em 1990. Foi construindo uma carreira nesta brigada até que se tornou comandante da divisão paraquedista das Forças de Defesa de Israel em 2011.
Três anos depois, assume funções no diretório de operações das Forças de Defesa de Israel, assumindo um cargo mais de planeamento das operações militares. Veio mesmo a chefiar aquele órgão em 2018, sendo um dos principais responsáveis por gerir a crise entre o Hamas e Israel que ocorreu em 2021.
Mantendo sempre uma postura discreta — “não gosta de criar manchetes, nem dramas”, como escreveu o jornal Ynet —, Aharon Haliva foi questionado, numa conferência em 2020, sobre a influência iraniana no Médio Oriente, principalmente na Síria. Em resposta, o ex-líder do diretório de operações das Forças de Defesa de Israel atirou: “Os persas inventaram o xadrez, mas eu conheci alguns judeus que sabiam fazer xeque-mate”. Sobre o que as IDF estavam a fazer relativamente ao Irão, o responsável indicou que as ações “estavam longe do olhar” público, mas havia um empenho em “prevenir a consolidação iraniana” na região.
Aharon Haliva dá um salto na carreira em 2021, quando é nomeado pelo ex-ministro da Defesa, Benny Gantz, para diretor dos serviços secretos militares. Nas Forças de Defesa de Israel, Aharon Haliva era bastante respeitado. Era tido como “talentoso”, “rápido” a reagir e dispunha de uma “rica experiência operacional”. Elogiavam-no igualmente pela “sua profunda familiaridade com os desafios militares e de segurança” e também pela “inovação” e “originalidade” com que resolvia vários problemas.
No cargo, o líder das secretas militares defendia uma “estabilização” da Autoridade Palestiniana frente ao Hamas. Noutra conferência, desta vez em setembro de 2022, afirmou: “É do interesse palestiniano reduzir o nível de terrorismo e estabilizar a governação da Autoridade Palestiniana”. “Não quero prender dezenas de terroristas todas as noites. Precisamos de tomar as medidas certas para estabilizar a Autoridade Palestiniana. É do interesse da segurança de Israel”, indicou.
Depois de ocupar o cargo mais relevante nos serviços secretos militares israelitas, Aharon Haliva não resistiu à falha de avaliação do 7 de outubro, que poderá ditar o fim da sua longa carreira nas Forças de Defesa de Israel. De todos aqueles que ignoraram os avisos do ataque do Hamas, o chefe das secretas discreto e a favor de uma Autoridade Palestiniana forte foi o primeiro a demitir-se, mas não deverá ser a única alta patente a concluir que não tem condições para continuar no cargo.