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Nascida nos Estados Unidos, Anne Applebaum ganhou notoriedade com a publicação, em 2003, de Gulag: A History (tradução portuguesa: Gulag: uma história), uma obra que constitui um contributo fundamental para o conhecimento das atrocidades cometidas pelo regime comunista na Rússia. Embora se tenha destacado aí como historiadora, Applebaum é uma reconhecida jornalista desde que iniciou a sua carreira como correspondente para o The Economist em Varsóvia, no final da década de 1980. Tendo casado com o jornalista e político polaco Radek Sikorski no início dos anos 90, a sua vida acabou por ficar ligada à Polónia, tendo-se tornado cidadã polaca em 2013.
Esta referência biográfica poderia parecer desnecessária não fosse o seu último livro – Twilight of Democracy: the seductive lure of authoritarianism (traduzido por Paulo Tavares com a chancela da Bertrand Editora: O crepúsculo da democracia. O fracasso da política e o apelo sedutor do autoritarismo) – ter sido construído diretamente a partir dessas referências biográficas: convocando amigos e conhecidos para a sua reflexão, Applebaum não se inibe de expressar as suas opiniões pessoais sobre eles, por vezes de uma forma bastante dura, como acontece quando fala de Boris Johnson. Parte, então, da sua experiência pessoal, do que tem visto sobretudo na Polónia, Hungria e Estados Unidos, para uma reflexão mais ampla sobre o momento de crise da democracia liberal e de sucesso do autoritarismo.
O livro começa com a descrição da sua passagem de ano em 1999, celebrada com cerca de cem pessoas, entre amigos jornalistas, políticos e intelectuais, na Polónia rural, em torno daquela que seria uma nova era para o país. Como Applebaum diz:
“A maioria de nós poderia ser rudemente agrupada na categoria genérica daquilo a que os polacos chamam “a direita” – os conservadores, os anticomunistas. Mas, naquele momento da história, também poderiam apelidar-nos a quase todos de liberais. Liberais do mercado livre, liberais clássicos, talvez thatcheristas.”
Vinte anos depois, continua, metade dessas pessoas não fala com a outra metade e “eu atravessaria agora a rua para evitar algumas das pessoas que foram à minha festa”. A divergência não é pessoal, mas política e assente na profunda polarização da sociedade polaca (descrição que facilmente podemos reconhecer no Brasil ou em Espanha). A tentativa de Applebaum é a de descrever e compreender o que aconteceu no centro-direita nas últimas duas décadas e as razões que levaram muitas dessas pessoas a ocupar hoje o espaço da direita iliberal.
O crepúsculo da democracia tem origem num artigo publicado pela jornalista, em outubro de 2018, na revista The Atlantic: “A warning from Europe: the worst is yet to come”. Neste artigo, Applebaum analisa a situação na Polónia e na Hungria; o livro aborda estes dois países no segundo capítulo, para alargar a reflexão a Inglaterra e ao Brexit (capítulo 3), a Espanha e ao Vox (capítulo 4) e aos Estados Unidos e à radicalização dos apoiantes de Donald Trump (capítulo 5).
Objeto de estudo: os clercs
As observações de Applebaum em relação ao que tem acontecido na Polónia e Hungria não constituem uma novidade. A atuação do Lei e Justiça e do Fidesz, ameaçando e destruindo as instituições independentes do sistema liberal, tem merecido a atenção de politólogos, jornalistas e ativistas e os desafios levantados no domínio da União Europeia têm conduzido a intervenções fortes, nomeadamente por parte do Tribunal de Justiça, mas também a situações embaraçosas, como a protagonizada por António Costa recentemente. Que novidade nos pode, então, trazer o livro de Applebaum?
Partindo, como referimos, de uma narrativa muito pessoal, a originalidade do livro passa por destacar o papel desempenhado por alguns elementos da elite intelectual que têm ajudado a abrir espaço para os partidos iliberais. A sua inspiração é o livro de Julien Benda, de 1927: La Trahison des Clercs, dedicado aos intelectuais que, nas primeiras décadas do século XX, serviram os regimes autoritários, da extrema-esquerda à extrema-direita. Diz-nos Applebaum, “a queda da democracia liberal no nosso próprio tempo não se assemelhará à da década de 1920 ou de 1930. Mas necessitará igualmente de uma nova elite, de uma nova geração de clercs, para a concretizar.”
Estes clercs serão jornalistas, bloguistas, escritores, artistas, professores. Uns podem ser ensaístas bem-intencionados e genuinamente preocupados com a situação atual; outros radicalizaram a sua posição como reação à esquerda cultural; alguns serão apocalípticos, querendo refazer o mundo ocidental a qualquer preço; e outros estarão simplesmente ressentidos com o seu fracasso pessoal, considerando que a adoção de um regime autoritário lhes trará o sucesso e o poder que consideram merecer.
No seu estilo jornalístico, Applebaum dará exemplos de cada um destes tipos, identificando o seu percurso e as suas contradições e ambições pessoais. O seu livro constitui, então, um roteiro daqueles que têm ajudado a lavrar o caminho dos regimes autoritários e que beneficiam, em larga medida, com essa ajuda.
Mentiras de média dimensão e a revolução digital
Os movimentos iliberais têm ampliado a sua influência através destes agentes, destes clercs que se dispõem a abrir a porta ao autoritarismo. Mas quais são as suas principais ferramentas de ação? De acordo com Applebaum, elas residem num uso bastante hábil da mentira – aquilo a que designa como “mentira de média dimensão” ou, simplesmente, teorias da conspiração. Com isto, a jornalista afirma que os novos regimes iliberais se distinguem dos regimes autoritários da primeira metade do século XX por dispensarem uma política do terror. De forma mais hábil, criam uma narrativa de realidade alternativa que cabe aos clercs divulgar e que está muito próximo daquilo que habitualmente designamos por teorias conspirativas.
Applebaum é especialmente perspicaz quando reflete sobre o funcionamento e a eficácia sedutora da teoria da conspiração: o seu apelo emocional está na simplicidade. Ela propõe-se explicar acontecimentos complexos de modo simples, oferecendo uma sensação de poder que resulta do suposto acesso privilegiado à verdade. E é por ser muito eficaz na capacidade de cativar o público e o prender nessa narrativa alternativa que ela tem sido abusivamente utilizada por Donald Trump (e a conjetura sobre o local de nascimento de Barack Obama, por exemplo), na Polónia (sobre o acidente de Smolensk) ou na Hungria (com as teorias muito divulgadas sobre George Soros). Todas estas narrativas assentam em explicações simplistas que transmitem ao público a sensação de que, identificado facilmente o problema, será simples resolvê-lo – desde que no poder se encontrem aqueles que sabem a verdade…
Os clercs têm uma missão fundamental nesta estratégia. Devem divulgar estas narrativas alternativas amplamente, dando-lhe uma imagem de credibilidade. E aqui entra a segunda parte da metodologia: o papel desempenhado pela tecnologia digital. Applebaum recorda que todas as grandes revoluções registadas na comunicação originaram profundas mudanças sociais, mas essas mudanças levaram tempo até se concretizarem. Contudo, a revolução digital alterou radical e rapidamente o modo como processamos a comunicação e como os órgãos de comunicação funcionam. Estes eram capazes de filtrar a informação que chegava à população e determinar “a grande conversa nacional”. Agora, tudo está fragmentado e encerrado em inúmeras bolhas políticas e sociais, com uma crescente politização dos temas e desconfiança face aos órgãos de comunicação.
Ora, o que estes movimentos têm feito é aproveitar com sucesso as possibilidades abertas por esta revolução digital, utilizando websites para “criar narrativas falsas, para repetir temas e passar a mensagem, para selecionar as histórias mais desejáveis e enfatizar determinados detalhes, para gerar raiva, incómodo e medo, incessantemente”. Este fenómeno não é exclusivo dos países analisados por Applebaum e, em Portugal, tem sido especialmente trabalhado pelo jornalista Paulo Pena, designadamente com a publicação do livro Fábrica de Mentiras: viagem ao mundo das fake news.
A revolta contra a modernidade
Ao longo do livro, Applebaum reconhece que a modernidade é composta por dois movimentos conflituantes, cada um deles aumentando ou diminuindo a sua força conforme o outro vai enfraquecendo ou ficando mais forte. Um deles é o movimento favorável à modernidade e que suportou a sociedade liberal, com os seus valores de liberdade individual, meritocracia, concorrência, internacionalismo, progresso, pluralismo. O outro é o movimento de revolta contra a modernidade, desde aquilo que Isaiah Berlin designou como contra-iluminismo aos movimentos coletivistas e iliberais, que compreendem fascismo, nazismo ou comunismo.
Na verdade, esta luta permanente entre modernos e anti-modernos repete a dinâmica histórica de acordo com a qual os regimes se vão sucedendo, vencendo em certos momentos para serem substituídos, mais tarde, por regimes distintos – como os Gregos nos ensinaram. Hoje estaríamos a viver um desses momentos, em que o regime democrático enfraquece face à sedução da proposta autoritária. Mas reconhecer isto implica reconhecer que há algo no nosso momento histórico que está a fracassar e que justifica o crescimento destes movimentos e o apelo do autoritarismo. A autora admite que várias razões concorrem para o fenómeno e que o seu livro não poderá explorar todas as respostas, mas podem ser destacadas três linhas de pensamento que dão contributos relevantes para esta reflexão.
A partir dos seus casos pessoais, sobretudo nos contextos polaco e húngaro, Applebaum reconhece que o sistema liberal e capitalista que substituiu os regimes comunistas no Leste gerou uma série de descontentes com o regime. Essas pessoas foram-se sentindo, gradualmente, ressentidas com o sucesso dos outros e revoltadas com o facto de o sistema não ter reconhecido o seu valor. Muitos destes insatisfeitos acabaram por alinhar em propostas políticas para as quais é mais importante a lealdade política do que a concorrência e o mérito.
Em segundo lugar, e usando a obra de Karen Stenner, Applebaum destaca o mecanismo psicológico que predispõe certas pessoas para o autoritarismo. Esta predisposição não tem qualquer relação com esquerda e direita, antes pode surgir em ambos os lados do espectro. Prende-se antes com a dificuldade que algumas pessoas têm em lidar com o pluralismo, a desordem e a cacofonia que pode resultar de um regime democrático. Perante aquilo que percecionam como caos político, sentem-se atraídas por soluções que oferecem ordem e unidade.
Em terceiro lugar, Applebaum é especialmente sensível a um aspeto que escapa a muitos autores liberais e que reside na necessidade de pertença que o ser humano naturalmente sente. A autora reconhece que os princípios liberais universalistas e globalizantes não respondem às questões mais profundas sobre identidade nacional ou pessoal – e é nesta falha que entra o apelo do nacionalismo que tem caracterizado estes movimentos autoritários. Na verdade, após décadas de centramento em questões económicas, temos assistido a uma viragem identitária, com reivindicações de pertença e identificação, quer à esquerda quer à direita. O apelo nacionalista é aqui muito forte, dando um sentido de pertença que acalma as ansiedades identitárias.
Ajuste de contas
Os últimos dez anos têm marcado um período de polarização política crescente, com o esvaziamento do centro partidário e o surgimento de movimentos radicais à esquerda e à direita. Essa polarização, em parte resultado dos impactos da crise económico-financeira de 2007/8 e em parte promovida pela revolução digital, tem gerado uma insatisfação generalizada com o estado a que chegamos. As reações a essa insatisfação têm sido muitas, à esquerda e à direita, bem como as reflexões académicas que as procuram explicar e o mérito de Applebaum passa por destacar a responsabilidade dos intelectuais no momento atual.
É verdade que o seu argumento tem algumas fragilidades: por vezes, a sua ligação demasiado próxima às pessoas e os seus comentários de índole pessoal fazem com que o livro adquira momentos de ajuste pessoal contas; por outro lado, a autora parece responsabilizar demasiado os clercs, alterando a causalidade dos factos políticos: as populações serão condicionadas pelo trabalho dos intelectuais ou estes clercs limitar-se-ão a aproveitar as frustrações populares dos seus países? Em Portugal, esta fragilidade é especialmente evidente: todo o trabalho que tem sido feito em torno de André Ventura teria surtido efeito há 10 ou 15 anos? Ou foi Ventura a aproveitar o momento político?
Talvez o cerne da questão para Applebaum seja o seguinte: por mais legítimas que sejam as frustrações da população – quanto às desigualdades, corrupção, perda de sentido de identidade e pertença, insegurança perante as rápidas mudanças tecnológicas e sociais –, ainda assim as respostas devem ser procuradas dentro do paradigma liberal e nos valores que os Pais Fundadores e a Constituição norte-americana legaram. Mesmo que a sua consciência histórica lhe diga que todos os períodos políticos são contingentes e que todas as democracias acabarão por desaparecer, para Applebaum vale a pena renovar o compromisso com os valores da democracia liberal.