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Um paradoxo legal poderá fazer com que Armando Vara tenha de regressar a um Estabelecimento Prisional para cumprir nova pena de prisão. O tempo pode variar entre os 30 dias que a defesa admite (mas que vai tentar reverter por recurso) ou os dois anos e seis meses que o Ministério Público defende.
O paradoxo é simples de explicar. Foi o “regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID -19” que permitiu ao ex-ministro de António Guterres um perdão da pena de dois anos e o colocou em liberdade no dia 11 de outubro de 2021.
Mas poderá ser exatamente a mesma lei 9/2020 de 10 de abril a fazer com que esse perdão seja anulado. Se assim fôr, Vara pode ter de cumprir uma nova pena de prisão por um novo cúmulo jurídico que levou à fixação, esta quinta-feira, de uma pena única de cinco anos e um mês.
Eis a explicação do caso em quatro pontos.
O que está em causa no novo cúmulo jurídico?
Armando Vara foi condenado pelo Tribunal Judicial de Aveiro por três crimes de tráfico de influência no âmbito do processo Face Oculta. A pena de prisão efetiva por cinco anos foi decretada em setembro de 2014 e começou a ser cumprida no dia 16 de janeiro de 2019 no Estabelecimento Prisional de Évora.
A 11 de outubro de 2021, após o cumprimento de três anos e dois dias da respetiva pena, Vara foi posto em liberdade, com um perdão de dois anos, devido ao já referido Regime Excecional de Flexibilização da Execução das Penas e das Medidas de Graça, no âmbito da pandemia de Covid-19. As prisões foram encaradas pelas autoridades de saúde como espaços fechados que poderiam potenciar o contágio e o Governo de António Costa permitiu o perdão de penas em determinadas circunstâncias.
O problema é que, no âmbito da pronúncia dos autos da Operação Marquês decidida pelo juiz de instrução Ivo Rosa, Armando Vara tinha começado a ser julgado em junho de 2021 pela alegada prática de mais um crime, neste caso o de branqueamento de capitais.
O caso era relativamente simples, visto que estava apenas em causa um alegado esquema de branqueamento de capitais com recurso a várias sociedades offshore que terão permitido esconder na Suíça cerca de dois milhões de euros não declarados às autoridades fiscais. Uma parte desse valor, cerca de 535 mil euros, foram enviados para Portugal para financiar a aquisição de um apartamento em Lisboa.
Era a sua filha, Bárbara Vara, quem figurava como a titular do apartamento e foi acusada de branqueamento de capitais na Operação Marquês, mas os capitais eram do pai — como o próprio admitiu perante o juiz de instrução Ivo Rosa no dia 6 de fevereiro de 2019, ilibando a filha. Num julgamento que já se esperava muito rápido, Vara foi então condenado em junho de 2021 a uma pena de dois anos de prisão efetiva por branqueamento de capitais, mas interpôs recurso.
Quando foi libertado do processo Face Oculta a coberto do regime da Covid-19 ainda estava pendente o recurso sobre a condenação da Operação Marquês que tinha interposto na Relação de Lisboa — que em janeiro de 2022 viria a manter na íntegra a pena da primeira instância. A pena de dois anos de prisão da Operação Marquês acabou por transitar em julgado em junho de 2022.
E iniciou-se então a discussão sobre o novo cúmulo jurídico que teria de ser aplicado a Vara, juntando-se numa pena única as penas do processo Face Oculta e da Operação Marquês.
Tribunal decide pena única de cinco anos e um mês mas passa a ‘batata quente’ ao TEP. Porquê?
Vamos começar pelo mais fácil: o tribunal fixou agora o cúmulo jurídico numa pena única de cinco anos e um mês pela prática do crime de branqueamento de capitais.
O grande problema que se coloca relaciona-se precisamente com o perdão da pena de dois anos de prisão que foi concedido por Armando Vara por via da lei excecional de combate à Covid-19. Porquê? Porque a lei 9/2020 de 10 de abril não admite perdão de penas para diversos ilícitos, entre os quais está o crime de branqueamento de capitais.
Foi isso mesmo que o juiz Rui Coelho, presidente do coletivo que tinha condenado Armando Vara à pena de dois anos de prisão efetiva por branqueamento de capitais, constatou. Depois de verificar que Vara tinha cumprido a condição de não praticar infração dolosa no ano subsequente”, o magistrado teve de concluir que a pena única definida esta quinta-feira incluía “o crime de branqueamento de capitais”, o qual, por força da lei especial de combate à Covid-19 “seria impedimento para a aplicação do perdão, tal como o fora à anterior pena única”, lê-se no acórdão do cúmulo jurídico ao qual o Observador teve acesso.
Como resolver este dilema?, questiona no acórdão o juiz Rui Coelho, presidente do Tribunal Coletivo que decidiu o cúmulo jurídico.
É aqui que o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa faz mão de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 7 de julho de 2022 e subscrito pelo conselheiro Cid Geraldo. De acordo com esse acórdão, é possível fazer um novo cúmulo jurídico “como se o anterior não existisse”. Isto é: apesar do outro cúmulo e respetiva aplicação do perdão já terem sido cumpridos, tal “trânsito em julgado não obsta à formulação de uma nova decisão para reformulação do cúmulo (…) em que os factos, na sua globalidade (…), serão reapreciados”.
De acordo com o acórdão subscrito pelo juiz Rui Coelho e pelas suas colegas Dalila Pinto Vilela e Rita dos Reis Seabra, ao tribunal competente cabe “aferir das penas em concurso (…)” e “operar o juízo atual de fixação de pena única, independentemente desse perdão, o qual deverá ser desconsiderado”.
Na prática, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa está a querer dizer que o perdão pode ser anulado. O que significa que Armando Vara ainda teria uma pena de prisão de dois anos e um mês para cumprir.
Contudo, não foi isso que o juiz Rui Coelho decidiu. Pelo contrário, e apesar de indiciar qual seria a sua decisão, o coletivo manifestou-se incompetente para apreciar a questão e passou a ‘batata quente’ para o Tribunal de Execução de Penas. Porquê? De acordo com a lei 9/2020 de 10 de abril, tal competência “foi conferida aos tribunais de execução de penas”, lê-se no acórdão.
E é a estes que compete a “reapreciação da aplicabilidade do perdão (porquanto o condenado estava preso à data da aplicação do mesmo)”, conclui o juiz Rui Coelho na sua decisão.
O que defende a defesa de Armando Vara?
A defesa de Armando Vara, a cargo do advogado Tiago Rodrigues Bastos, tem pontos válidos que ainda poderá utilizar, não só no Tribunal de Execução de Penas, como também em outras instâncias superiores.
Em primeiro lugar, é preciso perceber que o cúmulo jurídico visa sempre beneficiar o arguido (e é esse o princípio e a lógica jurídica), pois a soma aritmética das penas parcelares é sempre superior ao cúmulo. Por exemplo, as penas parcelares de Armando Vara pelos três crimes de tráfico de influência resultaram em 3 anos + 3 anos + 2 anos e 9 meses, o que perfaz um total de 8 anos e 9 meses. Ora, o cúmulo jurídico feito pelo Tribunal de Aveiro resultou numa pena única de cinco anos de prisão efetiva.
Sendo a lógica do cúmulo beneficiar o arguido, alega a defesa de Vara que não podemos cair na situação caricata de o cúmulo jurídico acabar por prejudicar o réu.
Neste caso de Vara a realização do respetivo cúmulo jurídico pode levar à anulação do perdão de dois anos da pena e fazer com que o arguido tenha de ser preso novamente por uma pena única de dois anos e seis meses que é superior à pena parcelar de dois anos decidida em julho de 2022 pelo coletivo liderado pelo juiz Rui Coelho.
Ou seja, alega a defesa, o cúmulo vai prejudicar o réu, não o vai beneficiar.
Por outro lado, Tiago Rodrigues Bastos também defende que, se não fosse o perdão de penas, o seu cliente já estaria em liberdade condicional há mais de um ano. Se o perdão de pena for revogado, Vara será, segundo a sua defesa, duplamente prejudicado: fica sem o perdão da pena e não poderá beneficiar do período de liberdade condicional a que legalmente teria direito.
Em declarações ao jornalistas após a decisão sobre o cúmulo jurídico, Rodrigues Bastos até admitiu que ficasse por cumprir uma pena de 30 dias de prisão — o tal mês que o tribunal acrescentou à pena de prisão efetiva de cinco anos. “É um bocadinho ridículo estar a sujeitar Armando Vara a entrar no sistema por causa de um mês”, censurou o advogado
O que defende o Ministério Público e o que poderá acontecer?
Na audiência de cúmulo jurídico realizada no Juízo Central Criminal de Lisboa, o procurador-geral adjunto Vítor Pinto defendeu que o perdão aplicado ao ex-ministro sobre a pena do caso Face Oculta deveria “ficar sem efeito”.
“O MP entende que este cúmulo deve ser efetuado sem consideração do perdão anteriormente concedido, pelo que uma pena agora única a rondar os cinco anos e seis meses de prisão será adequada. Nessa pena única a fixar pelo tribunal terá de ser descontada a prisão já cumprida nesse processo, sendo certo que não haverá que descontar qualquer perdão concedido”, afirmou.
Ou seja, os quase três anos que Armando Vara cumpriu na prisão de Évora teriam de ser descontados aos cinco anos e meio de prisão de pena única que Vítor Pinto defendeu, restando assim mais dois anos e seis meses de prisão para o antigo ministro cumprir.
O Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa acabou por dar uma pena única mais reduzida do que aquela que o MP defendia, mas tomou por bons os argumentos sobre a inaplicabilidade do perdão de penas ao crime de branqueamento de capitais.
O que pode acontecer a seguir?
Em primeiro lugar, a defesa de Armando Vara já anunciou recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa e, ao que o Observador apurou, o Ministério Público também está a ponderar um eventual recurso. Tais recursos têm efeito suspensivo.
Quando a decisão sobre o cúmulo jurídico transitar em julgado, entra em ação o Tribunal de Execução de Penas (TEP). E aqui é preciso começar por dizer que o juiz que apreciar a questão não está obrigado a seguir a interpretação que o juiz Rui Coelho já deixou expresso no seu acórdão do cúmulo jurídico.
Será o TEP — resta saber qual — que irá decidir se Armando Vara será preso novamente (e por quanto tempo), se ficará em liberdade condicional ou se já não tem mais contas a prestar à Justiça. Seja qual for a decisão, a mesma também poderá ser alvo de recurso para as instâncias superiores.