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O último ato oficial do imperador Akihito está marcado para esta terça-feira e consiste na cerimónia oficial que anuncia a abdicação, a ter lugar no Palácio Imperial, na zona de Chyioda, em Tóquio. No dia seguinte, Naruhito, de 59 anos, filho mais velho do imperador, inicia um caminho de ascensão ao Trono do Crisântemo. Mas não será soberano de imediato. O cerimonial inclui várias fases e estende-se até abril do próximo ano, com rituais e protocolo a desempenharem o papel que lhes cabe. A família imperial japonesa observa tradições milenares. É a mais antiga monarquia contínua em todo o mundo. Mas também já deu provas de que sabe criar as suas regras.
Ao sair de cena, Akihito passa a imperador emérito e deixa de participar em quaisquer atos oficiais. É a primeira vez em cerca de dois séculos que um monarca japonês renuncia, em vez de a sucessão dinástica ser determinada pela morte do monarca. A partir de terça-feira, termina o período Heisei e inicia-se o período Reiwa. Os períodos imperiais nipónicos (ou “gengo”) são um costume ancestral de inspiração chinesa e convivem com o calendário ocidental. O nome do novo período, designado pelo governo, como mandam as regras, significa esperança e realização e compõe-se de apenas dois caracteres, outro costume que se observa.
Sérios problemas de saúde — cancro na próstata em 2002 e operação ao coração em 2012 — são os motivos oficiais da renúncia do 125º imperador, ainda que alguns comentadores vejam nesta movimentação uma forma de retirar protagonismo ao primeiro-ministro Shinzo Abe, conservador com pretensões militaristas, por oposição ao declarado pacifismo de Akihito.
Aos 85 anos, ele goza de boa reputação junto da maioria dos japoneses. Sucedeu ao pai em 1989, o célebre imperador Hirohito (1901-1989), que guiou o país antes e depois da II Guerra Mundial e que em 1946 aceitou a imposição americana do pós-guerra de retirar poderes constitucionais ao soberano, ao mesmo tempo que quis ativamente desconstruir a imagem semidivina que rodeava os imperadores até então, não adorados mas venerados.
Ao imperador cabem-lhe hoje 11 tipos de funções oficiais, como sejam o acolhimento de almoços e jantares oficiais, a administração de cerimónias de inspiração religiosa ou as audiências com chefes de Estado e representantes de países estrangeiros (em outubro do ano passado, recebeu o embaixador português no Japão, Francisco Xavier Esteves). O soberano deve também promulgar leis, e até pode dissolver a câmara baixa do parlamento japonês, mas precisa sempre da aprovação da câmara alta.
Pioneiro em muitos aspetos, como a seguir se verá, Akihito não se afastou por completo dos costumes, ao mesmo tempo que cultivou proximidade com os outros cidadãos, porventura à procura de manter a casa imperial relevante num Japão que voltava costas ao tradicionalismo.
Em 1990, por exemplo, a equipa oficial que filmou o encontro em Tóquio do primeiro-ministro Cavaco Silva com Akihito não pôde ser constituída por japoneses, em observância à regra de que as pessoas comuns só em ocasiões especiais podiam ver o imperador. Subsistiam na casa imperial duas visões, à época resumidas como de confronto entre puristas e progressistas. Os primeiros defendiam o recato da família e aparições públicas controladas. Os segundos pretendiam um monarca ativista, capaz de ajudar o Japão na frente do comércio externo.
O imperador também planta arroz
Reza a lenda que o primeiro imperador do Japão foi Jimmu, há 2600 anos, e que deste descende a família ainda no trono. Por sua vez, Jimmu teria tido origem na deusa do sol xintoísta, Amaterasu, através do seu neto celeste Ninigi. Algumas tradições começaram aí, outras remontam à fase de ocidentalização nipónica, a partir da segunda metade do século XIX.
Suas majestades têm o hábito de assistir a jogos de “dakyu”, uma modalidade equestre que terá chegado ao Japão por volta do século oitavo, vinda da Ásia central. Akihito e a mulher também a praticaram quando os filhos eram pequenos e a casa imperial preserva o costume através da criação dos seus próprios cavalos e do treino de atletas.
A família gosta de escrever poesia, apurando a arte da caligrafia, que chegou a ser muito cultivada pelos soberanos até meados do século XIX. A 1 de janeiro, todos os anos, promovem uma sessão de leitura de poesia (“Utakai Hajime”, com provável origem no século XIII), também transmitida na televisão.
Em termos de ligação à terra, há um hábito recente, instituído por Hirohito: o próprio imperador planta arroz nos jardins do Palácio Imperial para transmitir esperança de boas colheitas. O novo soberano deverá fazer a sua primeira plantação ainda em maio. A 200 quilómetros a sul do Tóquio, na zona de Shizuoka, a família mantém plantações de chá, cuja colheita acontece precisamente nesta época do ano.
Assim que nascem, os filhos dos príncipes passam por vários procedimentos simbólicos. Assim aconteceu com a princesa Aiko, nascida em 2001 e única descendente do novo casal imperial. Duas horas depois de vir ao mundo, recebeu no hospital uma espada oferecida pelo imperador, um símbolo de protecção desde o ano 794. Sete dias depois, foi batizada pelo avô, através de um mensageiro que levou um papel manuscrito com o nome, depois colocado junto à almofada da criança na maternidade.
A casa imperial foi, e é, mecenas de artistas plásticos, possuindo uma vasta coleção de mais de 9800 peças pouco conhecidas do grande público e de que estão ausentes, segundo alguns críticos, quer estéticas vanguardistas quer temáticas fora do cânone. As pinturas mais antigas vêm do século XIV.
Depois de morrerem, os imperadores ganham um nome póstumo decalcado do nome do período em que governaram. Hirohito é hoje conhecido como imperador Showa (“Japão radiante”), tal como Akihito passará a ser Heisei (“pacificação”).
13 dias solenes mais um ano inteiro pela frente
A primeira fase de entronização de Naruhito vai durar pelo menos 13 dias, de 1 a 13 de maio, quase sempre no Palácio Imperial. Uma das exceções é uma tradicional cerimónia xintoísta, no dia 10, protagonizada por um enviado do imperador ao Santuário de Ise, na província de Mie, a uma hora de avião de Tóquio.
As cerimónias do dia 1 consistem na entrega ao novo soberano de uma espada e uma joia, elementos herdados por inerência do cargo e integrantes dos chamados Três Tesouros Sagrados imperiais (além de um espelho, que não será visto nesta ocasião). São-lhe também transmitidos os selos privado e de Estado, provas do acesso ao Trono do Crisântemo.
Naruhito levará vestido um fraque e o momento será testemunhado por um pequeno grupo de pessoas, incluindo responsáveis políticos e judiciais. As mulheres da família real estão excluídas da cerimónia, de acordo com a tradição. A única mulher presente, a primeira numa ocasião destas, é Satsuki Katayama, ministra para a igualdade de género (também a única mulher no executivo de Shinzo Abe).
Aliás, esta é uma prática arreigada e ciclicamente posta em causa: as mulheres não têm acesso ao poder imperial, porque desde há quase três mil anos vigora no Japão a chamada sucessão agnatícia, cada vez mais rara em regimes monárquicos, segundo a qual o trono tem de ser forçosamente ocupado por um homem. Houve exceções ao longo da história japonesa, mas nenhuma desde fins do século XIX.
O protocolo indica também que os japoneses terão oportunidade de cumprimentar o novo imperador ao vivo a 4 de maio, durante uma série de aparições da família imperial à varanda do edifício principal do palácio. É o mesmo local onde o soberano tradicionalmente se dirige aos japoneses a seguir à passagem de ano e onde escuta a famosa saudação “banzai”.
O início do período Reiwa é encarado pela sociedade japonesa como uma das maiores celebrações coletivas dos últimos anos, sinal de prosperidade e bonança e razão por que muitos casais decidiram casar-se por estes dias. Comerciantes e empresas esperam um encaixe de milhões, também com a ajuda dos incontáveis turistas que optam por visitar o Japão neste momento. Foram decretados 10 dias de feriado — de 27 de abril a 6 de maio —, a acrescer aos quatro feriados seguidos que todos os anos compõem a Semana Dourada nipónica entre fins de abril e inícios de maio.
Uma segunda fase de cerimónias decorrerá em outubro, com o anúncio da entronização e uma sessão de cumprimentos de autoridades nacionais e estrangeiras — mais de 200 países convidados —, seguida de marcha solene do novo casal imperial a bordo de uma limusine Toyota. A 23 de outubro está previsto um banquete para monarcas e chefes de Estado e de governo, a ter lugar no hotel New Otani, em Tóquio, uma estrutura concebida para alojamento durante os Jogos Olímpicos de 1964.
Finalmente, a 19 de abril de 2020, Naruhito será proclamado imperador, em nova cerimónia no Palácio Imperial. A imprensa japonesa não coincide na avaliação dos custos totais das cerimónias, mas estes não deverão ser inferiores a cerca de 30 milhões de euros.
Quebrar a tradição
Mas se a tradição tem peso, dificilmente se pode comparar à de monarquias aparentemente mais conservadoras como a britânica. E muitos têm sido os sinais de disrupção dos monarcas nipónicos.
Desde logo, Akihito casou-se em 1959 com uma plebeia, Michiko Shoda, que tinha conhecido dois anos antes num court de ténis, desporto que ambos praticavam. Viria a ser a primeira imperatriz não aristocrata do Japão. Os 60 anos do matrimónio foram assinalados há poucos dias.
Quando tomou posse, em 1989, Akihito herdou a constituição japonesa do pós-guerra e disse que pretendia adotar um novo estilo, para que a família encaixasse na modernidade. Terá feito por isso, não se podendo esquecer que já o pai dera passos inéditos, quando, por exemplo, visitou a Europa em 1971, na primeira viagem ao estrangeiro de um monarca japonês em funções, e em 1975 encontrou-se nos EUA com o então presidente Nixon, outro momento sem precedentes.
De resto, Hirohito está na história como o primeiro imperador a que os súbditos ouviram a voz, através do conhecido discurso radiofónico em agosto de 1945, a seguir à destruição nuclear em Hiroshima e Nagasaki. Ainda hoje, a voz do imperador raramente é escutada, apenas em discursos anuais ou no exercício de funções diplomáticas.
Akihito chamou a si o papel de apaziguador de tensões históricas entre o Japão e outros países, por causa dos crimes cometidos pelas forças militares nipónicas durante a II Guerra Mundial, que custaram a vida a milhões de pessoas. A imprensa japonesa diz que ele teve muito mais aparições públicas do que o pai, incluindo na visita a cenários de desastres e tragédias naturais, acompanhado da mulher. Por exemplo, em 1995 esteve com as vítimas do grande terramoto em Kobe, e em 2011 fez o mesmo a seguir ao terramoto e tsunami no nordeste da ilha — por vezes em mangas de camisa, descalço, só com meias, ajoelhado frente às pessoas.
O próprio Naruhito segue um caminho de mudança. Nasceu em 1960 e teve uma educação que também rompeu com as normas, ao ser criado pela mãe e não por amas e tutores, como era de regra, o que foi interpretado como uma forma de a família se mostrar próxima dos cidadãos. Tem mais dois irmãos: o príncipe Akishino e a princesa Nori. É o primeiro imperador a ter estudado fora do país, na Universidade de Oxford, em Inglaterra, razão por que aparece descrito na imprensa como “príncipe anglófilo”.
Tem-se destacado no apoio à mulher, a ainda princesa Masako Owada, cujas conhecidas dificuldades de adaptação às funções oficiais a têm conduzido a estados depressivos. De agora em diante, serão eles os soberanos. Masako declarou recentemente que gostaria de manter viva a tradição a que a sogra e ainda imperatriz Michiko se tem dedicado: a sericicultura, isto é, a cultura de amoreiras e criação de bichos-da-seda no próprio palácio. Como prática imperial, iniciou-se no fim do século XIX e será apenas interrompida nas próximas semanas devido à transição de poder, fase em os empregados se ocuparão da tarefa. A realeza segue dentro de momentos.