Discurso de Lagarde no Fórum BCE, em Sintra
O nosso trabalho não terminou. E precisamos de continuar vigilantes. Mas os progressos que já realizámos permitem-nos olhar para trás e refletir sobre o caminho que fizemos.”
Logo no início do discurso em Sintra, Christine Lagarde sublinhou a ideia que não poderia deixar de sublinhar. O “trabalho [do BCE] ainda não terminou” e há que continuar “vigilante” face aos riscos de a inflação voltar a subir. Sem estas palavras, o discurso da presidente do BCE correria o risco de parecer displicente. Isso, em si, seria algo que não lhe seria muito favorável porque poderia, desde logo, levar a uma desvalorização do euro face ao dólar (o que gera inflação porque significa gastar mais euros para comprar a mesma quantidade de produtos negociados em dólares, como a generalidade dos produtos petrolíferos e energéticos). Mas a referência à “reflexão” sobre “os progressos que já realizámos” foi o mote para um discurso em que a francesa enveredou pelo auto-elogio mais do que alguma vez tinha feito.
A política monetária tomou decisões no calor do momento. Foi preciso enviar um sinal forte, um sinal de que valores permanentemente mais elevados na inflação não seriam tolerados.”
Foram decisões tomadas “no calor do momento“, afirmou Christine Lagarde, numa das várias vezes que, no seu discurso, fugiu ao guião oficial que tinha sido distribuído aos jornalistas. Recordando o aperto monetário historicamente rápido que aconteceu entre julho de 2022 e setembro de 2023, a presidente do BCE quis sensibilizar a sua audiência para a tarefa difícil que foi liderar a autoridade monetária neste momento crucial. O surto inflacionista, que surgiu no final de uma pandemia mundial e se agravou com uma guerra na Europa, tinha características “pouco usuais” – o que tornava a tomada de decisões um desafio ainda maior do que o habitual. Lagarde deu a entender que o BCE podia falhar em tudo menos na missão de garantir aos agentes económicos que a inflação estava em níveis elevados (mais de 10%, a dada altura) mas o banco central não iria deixar de a combater com todos os meios ao seu alcance.
Se não tivéssemos intervindo, o risco de uma desancoragem [das expectativas de inflação] teria sido superior a 30% tanto em 2023 como em 2024. Mesmo que tivéssemos tido uma resposta apenas moderada, como se tivéssemos parado de subir os juros aos 2%, o risco de desancoragem ainda teria sido próximo de 24%.”
Na análise feita pelos economistas do BCE que estão, nesta fase, a autopsiar o surto inflacionista, a zona euro esteve muito perto de uma situação potencialmente explosiva: o pior pesadelo de um banqueiro central, que é a “desancoragem” das expectativas de inflação. Quando falam em “desancoragem”, os bancos centrais referem-se ao risco de se gerar uma espiral de inflação indomável que coloca em perigo a credibilidade do banco central e, em última análise, a própria divisa. No caso da zona euro, isso poderia significar que o projeto da moeda única estaria em risco. Criticada por ter, na opinião de alguns, reagido demasiado tarde à subida da inflação, Lagarde também foi criticada, noutra fase, por estar a levar longe demais o aumento dos juros, para níveis acima de 3%. Mas Lagarde usou estas conclusões académicas – que não são, apesar de tudo, totalmente independentes – para se defender dessas críticas.
As nossas decisões de política monetária foram bem sucedidas em manter as expectativas de inflação ancoradas. Tendo em conta a gravidade do choque inflacionista que existiu, esta correção é assinalável. Sei que parece arrogante falar assim mas, afinal de contas, eu sou francesa…”
Num improviso (ou num comentário estudado mas bem preparado), Christine Lagarde reconheceu que poderia soar a “arrogância” ler a passagem do discurso onde se dizia que a correção da inflação elevada, sem grande prejuízo para a economia, foi algo de “assinalável“. “Sei que isto pode parecer arrogância mas, afinal de contas, eu sou francesa…”, atirou a presidente do BCE, arrancando sonoras gargalhadas da audiência. Mesmo tendo dito que “ainda é cedo para baixar a guarda”, terá ficado claro na cabeça de todos os presentes que Christine Lagarde quis usar este discurso em Sintra para cantar vitória – tanto quanto é possível – no combate à inflação.
Tendo em conta a magnitude do choque inflacionista, uma aterragem suave ainda não é um dado adquirido. Só 15% das aterragens suaves bem sucedidas tinham tido choques nos preços da energia.”
As conferências de imprensa regulares do BCE, a partir de Frankfurt, não são o cenário ideal para contextualizações históricas. Nessas conferências, espera-se de um banqueiro central que comunique e justifique as decisões tomadas com clareza e assertividade. É por isso que Christine Lagarde costuma aproveitar discursos em conferências como o Fórum BCE, em Sintra, para se alongar um pouco mais no enquadramento da crise inflacionista e na comparação com outros episódios da História. “Se olharmos para os ciclos de subida de taxas de juro desde os anos 70, podemos ver que quando os bancos centrais aumentaram os juros num contexto de elevados preços da energia, os custos para a economia foram, por regra, muito pesados”, disse Christine Lagarde, salientando novamente quão “assinalável” foi a resposta do BCE, que apesar de ter sido brusca acabou por gerar uma “aterragem suave”, ou seja, evitando-se uma recessão ou uma grande deterioração das condições no mercado de trabalho.
Vamos precisar de tempo para reunir dados suficientes para ter a certeza de que foram ultrapassados os riscos de uma inflação acima do objetivo. O mercado de trabalho robusto dá-nos alguma margem para esperar por essa nova informação, mas temos de ter presente que as perspetivas de crescimento continuam envoltas em incerteza”
Christine Lagarde salientou que, apesar do abrandamento do crescimento económico, há mais 2,6 milhões de pessoas a trabalhar do que havia em 2022. E isso dá a um banco central como o BCE alguma margem para esperar pelo maior conjunto de dados económicos, para tomar as decisões o mais sustentadas que for possível. Por outras palavras, estando as taxas de juro num nível que se pode considerar muito restritivo (3,75%), o facto de não estarem a soar os alarmes no mercado de trabalho permite ao BCE gerir de forma mais tranquila a fase de descida das taxas de juro – se o desemprego estivesse a subir rapidamente, a pressão sobre o BCE seria, certamente, outra. Assim, Lagarde dá a entender que a economia (e, em particular, o emprego) não se estão a ressentir em demasia do atual nível de juros: o que pode significar que não é muito provável que haja uma nova descida dos juros em julho.
Mesmo com milhões de empresas e trabalhadores a lutarem, cada um do seu lado, para proteger os seus lucros e os seus rendimentos, o nosso objetivo de uma inflação de 2% continuou a ser credível.”
Sempre que há um surto inflacionista, gera-se uma espécie de jogo das cadeiras em que cada agente económico tenta passar a maior parte possível da perda de valor (gerada pela inflação): as empresas tentam passar os custos mais elevados para o consumidor e o trabalhador tenta aumentar os seus rendimentos para recuperar o mais possível do poder de compra perdido. Ora, Lagarde congratulou-se pelo facto de o BCE ter conseguido manter as expectativas de inflação “ancoradas” – ou seja, mesmo quando a inflação estava acima de 10%, as previsões para o futuro, em cada momento, nunca apontaram para um descontrolo. Se nos primeiros meses do surto inflacionista vários membros do BCE (incluindo Mário Centeno) alertavam para as subidas de preços promovidas pelas empresas (que queriam proteger as suas margens), noutra fase o maior perigo para a inflação vinha dos aumentos salariais que, quando não são absorvidos pelas margens das empresas e quando superam o ritmo de crescimento da produtividade, podem fomentar a rápida subida dos preços – isto é, a inflação. Mas Lagarde, sem querer parecer “arrogante”, Lagarde quis salientar que o BCE interveio na economia da forma adequada, respondendo ao desafio inflacionista corretamente, nas diferentes fases.
Não iremos baixar os braços no nosso compromisso de trazer a inflação de volta para o objetivo, em benefício de todos os europeus.“
Embora tenha apenas uma missão, o controlo da inflação, o BCE tem a difícil missão de gerir a política monetária numa zona económica muito heterogénea e onde as transferências entre os vários membros são proibidas pelos tratados europeus (o que contrasta, por exemplo, com os Estados Unidos da América). Cabe ao BCE tomar decisões que, do ponto de vista do controlo dos preços (e da estabilidade financeira), sirvam a países mais ricos e mais pobres, países mais industrializados ou mais dependentes de atividades como o turismo, países onde as empresas dependem mais ou menos do crédito bancário, países há mais crédito à habitação e onde há menos, e países onde esse crédito mais frequentemente tem associado uma taxa fixa ou uma taxa variável. Assim, ciente de que facilmente se lhe pode colar uma imagem de insensibilidade perante as dificuldades sentidas por muitas pessoas, Christine Lagarde reforçou que é para “benefício de todos os europeus” garantir que a zona euro é um bloco económico e monetário onde os preços sobem a um ritmo lento e controlado. Caso contrário, como tanto Lagarde como o norte-americano Jerome (Jay) Powell já várias vezes sublinharam, são os cidadãos com menos recursos que sofrem mais com os surtos inflacionistas.
Os primeiros 90 minutos são os mais importantes” (Bobby Robson)
Se um bom discurso deve começar ou acabar com uma citação, em pleno campeonato europeu de futebol, na conclusão Lagarde decidiu lembrar o lendário treinador Bobby Robson, que passou parte da sua longa carreira em Portugal: “Os primeiros 90 minutos são os mais importantes“, dizia Robson, com a fina ironia que lhe era reconhecida. A presidente do BCE acrescentou ao discurso escrito uma explicação para aqueles que “não suportam futebol”: “um jogo de futebol tem duas parte de 45 minutos”. No caso do controlo da inflação, tal como no jogo de Portugal esta segunda-feira, “poderá levar um pouco mais de 90 minutos, mas chegaremos ao objetivo em termo oportuno”, garantiu Christine Lagarde.
BCE. Christine Lagarde, em Sintra, diz que “o trabalho ainda não terminou” no controlo da inflação