O PS ainda tentou reduzir o tempo de audição, mas doze dias depois do caso ter sido noticiado, o ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos foi ao Parlamento dar explicações sobre a situação de incompatibilidade que existe no facto de a empresa que detém conjuntamente com o pai ter feito um contrato público em junho. As novidades nos argumentos do ministro — que já tinha emitido uma nota escrita, assim que foi conhecido o caso — são o facto de assumir que as dúvidas sobre a interpretação da lei “são legítimas” e que acatará o que o Tribunal Constitucional decidir — mesmo que a sanção seja a sua saída.
Na audição desta quarta-feira, o ministro mantém também o argumento de que o parecer da PGR de 2019 o defende, que a lei não mudou da versão anterior para a atual e que — se houvesse um impedimento no seu caso — esse poderia ser inconstitucional. Outra novidade é equiparar o seu caso ao de Graça Fonseca, que também detinha empresas em conjunto com familiares. Mas há diferenças: a então ministra da Cultura vendeu as ações que tinha ao pai dias depois de ser divulgado o parecer da PGR, Pedro Nuno Santos manteve a participação.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o caso de Pedro Nuno Santos.
O governante reiterou que nada mudou desde que a lei mudou em 2019, mas mudou: a atividade da Tecmacal. A empresa de Pedro Nuno Santos e do pai não fez nenhum contrato entre o verão de 2019 e o verão de 2022. Voltou a fazê-lo agora. E é isso que torna a participação que detém na empresa num impedimento.
Falar sobre um tema que, já não sendo estritamente político, tem um impacto muito maior em nós como pessoas, seres humanos e detentores de cargos públicos (…) Eu não sou jurista. Não sou advogado. E nem sequer invoco neste caso o desconhecimento da lei. Conhecia e conheço a lei. Queria que os senhores deputados, independentemente das suas posições, se colocassem agora por alguns minutos nos meus sapatos e percebessem o processo até ao momento em que estamos aqui hoje.”
O primeiro apelo de Pedro Nuno Santos acabou por ser mais emocional e para que os deputados se identificassem com o seu caso. O ministro começou por dizer que o tema o afetava até mais a nível pessoal e humano do que propriamente político. No PS não perdeu um único apoio, mas alega que o tema o desgasta a si e à família. Aos deputados disse que os queria ouvir, mas pediu-lhes, antes de tudo, que calçassem os mesmos sapatos. Alguns — não só do PS — acabariam por dizer, nas intervenções seguintes, que o compreendiam.
Exerço funções políticas já há muitos anos. Eu tenho uma participação social nas empresas da minha família, simbólica, há cerca de 20 anos. Eu e a minha irmã. Desde que faço política que a minha participação é declarada e é pública. Nunca foi omitida a ninguém. É pública desde sempre. A empresa da minha família trabalha 99% para o setor privado. (…) Quando olhamos para o intervalo que saiu numa notícia entre 2008 que era 1,1 milhões euros em contratos públicos…. É 2008 porque é quando há Portal Base. Mas nesse período, as empresas faturaram 110 milhões de euros, para termos desde logo uma noção do que estamos a falar”
O ministro reforçou várias vezes que a participação que tem na empresa é “simbólica”, alegando que nunca escondeu a ninguém essa ligação. Para desvalorizar o peso da contratação pública, Pedro Nuno Santos garantiu que os contratos com o Estado representaram apenas 1% da faturação da empresa. A ideia foi provar que a Tecmacal, sociedade que detém com o pai, não precisa dos contratos com o Estado para nada.
Esses contratos com entidades públicos existiram comigo no Governo, comigo fora do Governo, com Governos do PSD, com Governos do PS porque a Tecmacal não é só mais uma empresa no setor de equipamentos industriais nomeadamente para o calçado. É mesmo a maior empresa do País para equipamentos industriais no setor do calçado. Um setor que está fortemente concentrado e, portanto, é normal a relação de uma empresa destas com as entidades públicas.
Pedro Nuno Santos alega que a Tecmacal é praticamente incontornável para quem compra equipamentos na área da marroquinaria. Ou seja: é muito provável que entidades que necessitem desse tipo de máquinas (como o Centro de Formação Profissional para o Sector da Indústria de Calçado) recorram à empresa da sua família.
Não tenho qualquer participação na vida da empresa. Nem na gestão, nem nas suas decisões. Estive lá, saí da empresa e não tenho atividade na empresa. Não sigo a atividade, não quero seguir, não me interessa, mas tenho uma participação simbólica, que o meu pai deu a mim e à minha irmã: 0,5%. Achei até que era 1%, mas [o Observador] é que me ajudou a perceber que eu tinha metade do que o que eu pensava tinha. São 0,5% a participação que tenho na empresa.”
O ministro das Infraestruturas disse várias vezes que declarou a participação na empresa ao longo dos anos. No entanto, acabou por admitir que pecou por excesso. Pedro Nuno Santos terá declarado valores errados na documentação que entregou no Tribunal Constitucional e nos registos de interesses que depositou na Assembleia da República. O Tribunal Constitucional tem agora que notificar Pedro Nuno Santos para corrigir esse erro e o ministro tem, após receber essa notificação, 60 dias, nos termos da lei, para fazer a correção.
Há uma lei e em 2019 foram suscitadas dúvidas sobre vários casos. Sobre uma empresa de um familiar de um secretário de Estado da Proteção Civil, sobre o marido da ministra da Justiça da altura, depois a empresa da minha família e a seguir a empresa da família da Graça Fonseca. As dúvidas que hoje estão a ser explanadas [são as mesmas] e foi pedido um parecer à Procuradoria-Geral da República.”
Pedro Nuno Santos insiste no argumento que a lei não mudou desde 2019. Mas mudou. Na nova lei (a passagem da 64/93 para a 52/2019) há alterações ao articulado, mas mantém-se o essencial no que está em causa: o impedimento que uma empresa detida “conjuntamente” pelo titular do cargo político e por um familiar em mais de 10% possa fazer contratação pública.
Isto porque o parecer da PGR diz que a referida “redução teleológica” (que alegadamente levantaria o impedimento para o governante) é relativa não a todo o artigo 8.º da lei n.º 64/93, mas apenas à alínea a).
Acontece que o que está em causa nesta situação não é a alínea a) do n.º 2 do artigo 8.º — que é referente aos casos em que as empresas são detidas apenas por familiares –, mas sim a alínea b), que trata de empresas detidas “conjuntamente” pelo titular do órgão e um seu familiar.
O legislador (neste caso a Assembleia da República) quando mexeu na lei, que entrou em vigor em julho de 2019, decidiu manter este impedimento, dedicando-lhe um ponto próprio — o 3 do artigo 9ª (antes era a alínea b) dentro do ponto 2).
A partir desse momento, quando sai o parecer, a questão na altura — e peço que façam uma avaliação desse momento, seja comentadores, notícias, posições de partidos — não houve uma única pessoa que tivesse dito: “Alto, esse parecer não se aplica ao caso de Pedro Nuno Santos e da ministra Graça Fonseca”. E isto é importante para perceber duas coisas: boa fé e porque é que a participação nunca foi cedida.”
De todos os casos que Pedro Nuno Santos elenca, o único que é similar ao seu é o da antiga ministra da Cultura, Graça Fonseca. Isto porque a antiga governante também detinha mais de 10% em algumas empresas “conjuntamente” com outros familiares. Mas há uma diferença que o ministro não referiu: menos de duas semanas depois do parecer da PGR, Graça Fonseca vendeu as participações que tinha nas empresas ao pai. Pedro Nuno Santos, não.
A questão para mim, para o Governo e para toda a gente ficou sanada a partir daquele momento. Eu não sou jurista nem advogado. Naquele momento havia dúvidas, foi pedido um parecer ao Conselho Consultivo. Esse parecer, naquele momento, esclareceu as dúvidas. A questão ficou sanada. Quando eu oiço alguns, como o senhor deputado Cotrim Figueiredo, a dizer: ‘A lei prevê mecanismos de suspensão da participação, teria resolvido a questão’.
Pedro Nuno Santos ataca o líder da Iniciativa Liberal, que disse que o ministro devia ter suspendido a participação que tem na empresa. E acabou por abrir uma divergência dentro do partido liberal, já que o antigo presidente do partido, Carlos Guimarães Pinto, sairia minutos depois em sua defesa de forma quase incondicional. Sem saber, o ministro estava a expor uma dissonância entre Cotrim Figueiredo e Guimarães Pinto.
Essa questão para mim não foi colocada porque, para mim, em 2019 a questão estava resolvida. Depois de 2019 tomei posse como ministro mais duas vezes. Nunca ninguém desde 2019, a não ser agora, disse: atenção, que aquele parecer do Conselho Consultivo não se aplica à situação do ministro Pedro Nuno Santos.”
O ministro volta a insistir que nada mudou nos últimos três anos. E que, desde a saída do parecer, já tomou posse duas vezes e nunca houve problema. Pedro Nuno Santos não incorria, aliás, em nenhuma incompatibilidade, já que, à luz da lei, pode ter a participação na empresa. O que não pode ter é contratação pública. Ora, desde o parecer da PGR de 2019 (e da mudança da lei, na mesma altura) a Tecmacal ainda não tinha feito nenhum contrato público. Só fez recentemente: em junho de 2022. Foi isso que mudou.
Pedro Nuno Santos insistiu que, não houve uma única pessoa a contestar o parecer, e até lembrou um artigo do Observador que dizia que o parecer da PGR ilibava os ministros. Falou ainda de “comentadores”, “partidos” e “jornalistas”. Na altura, a tónica do debate público estava, porém, nas empresas detidas por familiares e não pelos próprios.
Obviamente que se, naquele momento, alguém tivesse dito: ‘Atenção, que aquele parecer não se aplica ao ministro Pedro Nuno Santos tinha logo acontecido uma de duas coisas: primeiro, tinha sido aberto um processo por parte do MP, coisa que não foi feita. Se sai um Conselho Consultivo que, supostamente, deixaria expressamente de fora o caso do ministro Pedro Nuno Santos e a ministra Graça Fonseca, obviamente que a consequência natural era um processo a decorrer para perda de mandato. Isso não aconteceu. E essa é a razão para a qual não houve cedência de participação social.”
Pedro Nuno Santos acredita que, se houvesse algum problema com a sua situação, o Ministério Público teria aberto um caso. Ora, a PGR não analisou o caso específico do ministro. Ou seja: os magistrados não foram analisar a declaração de rendimentos Pedro Nuno Santos, fizeram um parecer genérico sobre os impedimentos a nível da contratação pública em empresas de familiares e dos próprios governantes. Assim que o MP, já em outubro de 2022, soube do caso, suscitou um processo de averiguações. Na altura, o próprio MP desconhecia esta situação.
Independentemente de hoje existirem dúvidas que possam ser legítimas. Estarei cá obviamente para ouvir qualquer decisão de qualquer instância que tenha efetivamente o poder para determinar não só a interpretação da lei, mas a aplicação das sanções previstas.“
O ministro admite, pela primeira vez, que existem “dúvidas que possam ser legítimas” e que existem interpretações diferentes da sua. Diz, no entanto, que quem vai decidir é o Ministério Público e o Tribunal Constitucional. O que estas entidades decidirem, o ministro vai acatar.
A lei se for interpretada e aplicada de forma literal põe em causa um conjunto de preceitos constitucionais que têm de ser preservados: não só o da proporcionalidade, mas também o da liberdade de iniciativa económica privada. Isto decorre não só do parecer como de muitas interpretações que eu tenho visto ao longo das últimas semanas, de diferentes juristas, advogados e juízes.”
É o argumento da Constituição, que tem sido utilizado pela guarda pretoriana de Pedro Nuno Santos nesta questão, com Isabel Moreira e Pedro Delgado Alves à cabeça. Para o PS, o cumprimento da lei nesta matéria colocaria em causa princípios constitucionais. Na leitura do ministro, o parecer da PGR também o diz sobre o seu próprio caso.
Se eu tiver 9% de uma empresa e, portanto, capacidade de influência nela, essa empresa pode fazer os negócios que quiser com o Estado. Se a empresa for detida a 100% pelo meu pai pode fazer os negócios que quiser com o Estado, se eu tiver 0,5% e o meu pai 44%, segundo a interpretação de alguns não pode fazer. E isto tem de ser relevante para a forma como nós encaramos e avaliamos esta questão ao dia de hoje (…) Chegámos a esta situação: eu com 0,5% não tenho sequer a capacidade nem o poder de impedir que a empresa possa impedir contratos com o Estado. Eu não tenho essa capacidade, esse poder, nem influência dentro da empresa para que ela não possa fazer contratos com o Estado. Eu não tutelo nenhuma das áreas, com as quais a empresa fez negócio.”
Outro argumento do ministro é que não tem qualquer influência na empresa, logo não pode ser castigado por atos de outros. Este argumento é utilizado pelo parecer da PGR de 2019 relativamente aos familiares, limitando os impedimentos às áreas tituladas pelos governantes. A lógica é: se não consegue impedir os contratos públicos, Pedro Nuno Santos entende que não é justo ser castigado pelos mesmos. Mas há algo que o ministro pode fazer que depende dele, cumprindo o parecer da PGR: vender a participação na empresa.
O nosso entendimento jurídico é diferente do vosso. O entendimento não é só meu, é do Governo também. O Governo também emitiu uma nota e também tem uma interpretação deste parecer do Conselho Consultivo. Temos entendimento diferente de alguns jornalistas, de comentadores. Como eu também quero cumprir a lei, neste momento foi desencadeado o processo. Se há coisa que eu não quero é estar no exercício de funções não cumprindo a lei. Foi por essa razão que não cedi a participação de 0,5%. Houve algum dolo em manter a participação de 0,5%?
Pedro Nuno Santos reforça que o entendimento de que o seu caso não constitui uma incompatibilidade não é apenas dele, mas de todo o Governo, numa alusão à nota que a Presidência do Conselho de Ministros emitiu no dia seguinte ao caso ter sido noticiado. Nessa nota, a PCM, tutelada por Mariana Vieira da Silva, dizia que só haveria incompatibilidade caso a contratação fosse numa área tutelada pelo Ministério das Infraestruturas e da Habitação — leitura que o parecer da PGR faz, mas para os casos em que a empresa é detida em mais de 10% apenas pelo familiar. A nota omitia, no entanto, a situação que se verifica neste caso particular, em que o titular do cargo e o pai detêm “conjuntamente” mais de 10% da empresa. Esta situação está, aliás, tipificada num ponto próprio do artigo da lei que estabelece os “impedimentos” a que estão sujeitos os governantes: o ponto 3, do artigo 9º, da lei nº52/2019.
Queria agradecer a intervenção do senhor deputado Carlos Guimarães Pinto. Objetivamente é um dos deputados com quem tenho mais confrontos políticos e ideológicos e, portanto, queria agradecer porque a tentação de no combate político confundirmos as coisas porque dá jeito também era a oportunidade para o deputado servir também para combater o adversário. E por isso, queria cumprimentar.”
Pedro Nuno Santos teve uma defesa de onde não esperava, o que o ajudou particularmente nesta batalha. O deputado e antigo líder da Iniciativa Liberal, Carlos Guimarães Pinto, precisou apenas de algumas horas para pedir a demissão da ministra Ana Abrunhosa — que estava perante uma incompatibilidade ética e não legal –, mas defendeu o ministro das Infraestruturas de forma quase incondicional. Para Guimarães Pinto não é Pedro Nuno que tem de mudar, é a lei.
Há um processo de averiguações, que terei de esperar com muito respeito, como fiz em 2019. Se a interpretação que for feita, cumprirei com toda a responsabilidade. Sairei sempre, caso isso aconteça com profundo sentimento de injustiça pessoal, para a minha família, para a empresa e para a democracia. É um tema muito relevante e o que devemos fazer quando trabalhamos sobre legislação que trabalha para evitar essa injustiça. Mas não me quero pronunciar. (…) Cumprirei a sanção que me for aplicada. A única questão que obviamente me revolta é que eu estive três anos a achar que estava bem. E não é porque desconhecia a lei, que já ouvi outros políticos a dizer que desconheciam a lei. Eu não. Eu conhecia a lei, mas também conhecia a interpretação que estava a ser feita da lei.
O ministro volta a garantir que irá respeitar aquela que for a decisão do Tribunal Constitucional. Se o sancionar com a demissão, vai acatar. No entanto, destaca que isso será uma grande injustiça. Atirou ainda indiretamente ao antigo ministro da economia, Pedro Siza Vieira, que, quando apanhado numa incompatibilidade, alegou o desconhecimento da lei. Ao dizer que “durante três anos” achou que estava bem, é porque admite não estar. É uma novidade na postura de Pedro Nuno Santos: admite que a sua interpretação pode não estar correta.