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Leonor (nome fictício) aterrou em Lisboa na manhã de 19 de maio, há praticamente cinco anos, para pouco mais de duas horas de escala. Partiu de Fortaleza, no Brasil, e o destino era a Escócia, onde vivia o namorado. As visitas eram regulares, o namorado já tinha ido ao Brasil e esta era a vez de Leonor ficar uns tempos em Aberdeen, a cidade escocesa com mais habitantes. Do aeroporto Humberto Delgado, Leonor teria ainda de fazer outra escala, que seria a última, em Amesterdão. Mas a paragem em Lisboa mudou-lhe a rota — e a vida. A mulher voltou para o Brasil, depois de viver momentos de medo no aeroporto de Lisboa, dentro de uma carrinha, acompanhada por um inspetor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), concluiu o Ministério Público, que acusou o inspetor de três crimes: coação sexual, violação na forma tentada e coação agravada.
O Ministério Público pede ainda uma pena acessória de suspensão do exercício de funções. De acordo com as informações avançadas ao Observador pelo SEF, o inspetor continua, para já, a trabalhar, mas noutro local. “O inspetor em causa não se encontra a exercer funções no Aeroporto de Lisboa”, esclareceu este órgão de polícia criminal, acrescentando que o processo disciplinar aberto em 2021 “se encontra suspenso a aguardar a decisão final do processo crime”. O homem pediu entretanto a abertura de instrução – fase que antecede o julgamento e que serve para o tribunal avaliar se existem provas suficientes para que o arguido seja julgado.
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A acusação a que o Observador teve acesso, e que é deduzida cinco anos depois dos alegados crimes, tem apenas 16 páginas — e bastam 45 pontos para descrever aquilo que terá acontecido dentro do aeroporto de Lisboa e que foi contado pela vítima aos inspetores da Polícia Judiciária. E é por volta das 11h da manhã que começa esta história, quando dois inspetores do SEF faziam o controlo dos documentos de quem entrava no país ou fazia aqui escala.
Sendo brasileira, Leonor apresentou o seu passaporte, como consta da ficha de interceção feita nesse dia. Eram exatamente 11h11. E 19 minutos depois estava criado um relatório de ocorrência, porque a sua entrada no país tinha sido recusada — decisão que fora validada, mais tarde, pelo inspetor coordenador do SEF daquele aeroporto, como refere o despacho mencionado na acusação. Os motivos eram essencialmente três: primeiro, a justificação de que iria visitar o namorado à Escócia não era suficiente para convencer os inspetores de que não iria entrar no país ilegalmente, depois, não apresentava meios de subsistência suficientes e, por último, os inspetores do SEF que estavam de serviço naquele dia consideraram que o passaporte era falso.
Recusa feita, a mulher foi transportada para uma sala que pertence à unidade de apoio do SEF, instalada dentro do aeroporto. Nesta altura, não saberia ainda o que viria a acontecer, já que só mais tarde foi informada de que voltaria naquele mesmo dia, às 17h05, para Fortaleza.
A viagem entre a sala e o avião e a tentativa de violação
A notícia de que não seguiria para a Escócia e de que aquela viagem não passava, afinal, de uma tentativa falhada de ver o namorado, chegou pela voz de um inspetor do SEF – aquele que está agora acusado de três crimes pelo Ministério Público. O agente pediu a Leonor que a acompanhasse, pois seria ele quem iria conduzi-la até ao avião com destino a território brasileiro, numa das pistas daquele aeroporto. Ficaram os dois sozinhos e é precisamente neste momento que a história ganha outros contornos.
Ainda não estavam a caminho do avião quando começaram os comentários que terão deixado esta mulher desconfortável. O inspetor do SEF, segundo a acusação do Ministério Público, terá dito que não concordava com a decisão dos colegas, que tinham determinado a deportação de Leonor, e que ela deveria ter direito a permanecer em Portugal.
O inspetor do SEF terá repetido estas ideias duas vezes – uma quando estavam a caminho da carrinha em que seguiriam até ao avião, mas ainda antes de entrarem no elevador e percorrerem as escadas ainda dentro do edifício, e outra já dentro da carrinha, que tinha uma porta lateral, por onde entrou R, e cuja matrícula se desconhece.
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Ao lado do lugar do condutor, existiam mais dois lugares e, atrás, mais duas filas de bancos, para três ou quatro pessoas, indicou a mulher às autoridades quando apresentou a queixa. E é então que, ainda antes de entrarem na carrinha, o inspetor do SEF, insistindo na ideia de que Leonor deveria ficar em Portugal, fez uma comparação de carácter sexual entre as mulheres brasileiras e as portuguesas, refere a acusação. E é também aqui que começa o desconforto e o medo.
De seguida, o inspetor do SEF terá ocupado o lugar do condutor e Leonor sentou-se no banco de trás. Já em andamento, cruzaram-se com outros carros que tinham a mesma função – levar passageiros aos aviões – até que, já longe da sala onde passou horas à espera de saber o que lhe iria acontecer, o inspetor parou a carrinha e pediu a Leonor para que se sentasse à frente, mesmo ao seu lado.
Já no banco do pendura, Leonor começou a sentir a mão do inspetor do SEF dentro do seu decote, lê-se na acusação do Ministério Público. O homem terá dito que não havia motivos para se assustar e as suas mãos pararam nas mamas de Leonor, o que fez com que esta se afastasse num movimento reflexo. Mas este afastamento trouxe mais um aviso. Desta vez, para ficar quieta.
A mão do inspetor do SEF continuava, por isso, colada ao peito da mulher, refere a acusação, enquanto surgiam comentários sobre o seu corpo, mais especificamente sobre o tamanho do seu peito. Terá sido este o gatilho para que Leonor começasse a chorar e pedido o fim daqueles atos e comentários. Mas terá recebido apenas indiferença.
Longe de locais de passagem, o inspetor do SEF terá parado o carro que conduzia. E, a seguir, chega a primeira ameaça, indicam os procuradores: se o seu comportamento não satisfizesse os interesses do inspetor, seria atirada para fora do carro e todas as pessoas iriam ouvir e acreditar que estava louca. Tudo começou a escalar, até que o inspetor do SEF a terá beijado na cara, no pescoço e nos lábios, sempre sob avisos de que aquele episódio nunca poderia ser conhecido por ninguém.
Mesmo quando o carro começou novamente a andar as mãos do inspetor, segundo as memórias desta mulher, continuavam a tocar no seu corpo. Leonor acusa o inspetor do SEF de, a determinado momento, ter colocado as mãos dentro das suas calças, por várias vezes, mesmo depois de lhe ter pedido, também por várias vezes, para parar. Isto aconteceu, pelo menos, quatro vezes.
No meio destas tentativas, o inspetor do SEF voltou a colocar o pé no travão. Desta vez, terá parado junto a um armazém, longe da pista onde estacionam os aviões e longe de qualquer olhar. Saiu do carro, trancou as portas, deixou Leonor lá dentro e regressou depois de cinco minutos. E foi neste regresso que se adicionou mais uma camada de medo em R, assim que esta mulher olhou para as calças do inspetor do SEF. Com medo daquilo que poderia acontecer, e com o pedido para sair do carro, a mulher conta que começou novamente a chorar, ajoelhada ainda dentro do carro.
E foi aí que a atitude do inspetor terá mudado: puxou-a, fazendo com que saísse do carro e empurrou-a para o banco de trás, onde se sentou inicialmente. E terá dito que não merecia que fizesse o que quer que fosse com ela e que estava proibida de falar sobre o que tinha acontecido — nem com a sua amiga mais próxima.
A história que resultou numa acusação por três crimes terminou neste momento, quando o inspetor do SEF voltou a sentar-se no banco do condutor e levou então a mulher até ao avião, que partiria para Fortaleza.
A queixa que chegou dois dias depois e as divergências entre PJ e MP
Leonor não seguiu a ordem de silêncio que terá sido dada pelo inspetor do SEF e contou o que aconteceu a outra mulher, também de nacionalidade brasileira, que se encontrava no mesmo voo. E contou também toda a história ao seu namorado, que enviou mais do que um e-mail ao SEF, apresentando queixa. Ainda de acordo com a acusação, o SEF abriu um processo disciplinar em junho daquele ano e encerrou-o cerca de três meses depois. Durante este inquérito, Leonor nunca foi ouvida pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, nem questionada sobre o que terá acontecido.
A queixa chegou à Polícia Judiciária, mas só dois anos e oito meses depois é que Leonor foi chamada para prestar declarações, avançou o Expresso. Mas há ainda pontas soltas neste caso, que a defesa do inspetor do SEF — que requereu abertura de instrução — poderá querer aproveitar. Uma delas é a folha de registos de entradas e de saídas, que mostram que o inspetor entrou às 6h30 e saiu do serviço às 13h30, antes de Leonor ter entrado na sala da Unidade de Apoio do SEF. Segundo o Expresso, o inspetor mostrou à PJ um comprovativo de compras que terá feito no AKI, naquele dia, às 16h51 — minutos antes da partido do avião para Fortaleza.
Aliás, o relatório dos inspetores da PJ, com data de junho do ano passado, chega a conclusões diferentes daquelas a que chegou o Ministério Público na recente acusação. “Não pode a investigação afirmar que o referido inspetor foi efetivamente o autor dos factos descritos”, indicou a PJ no relatório, que inclui também o reconhecimento do inspetor do SEF pela mulher que viu recusada a entrada em espaço europeu.
O facto de já ter passado muito tempo e de o depoimento de Leonor não ter sido feito logo após os acontecimentos, que descreveu mais tarde à PJ, é também um ponto apontado pela defesa. Raquel Alves, uma das advogadas do inspetor, disse em entrevista à SIC, na semana passada, que “a acusação parece basear-se numa coisa apenas, que é o relato da vítima”. “Relato esse que é feito decorrido já muito tempo, com base num reconhecimento também feito já muito tempo depois — mais de dois anos depois — da suposta prática dos factos”, acrescentou.
E há ainda outra questão que dificulta a obtenção de prova e que está relacionada com as câmaras de vigilância colocadas nos diferentes serviços do aeroporto de Lisboa. As imagens ficam guardadas apenas durante 30 dias, o que significa que, depois desse período, a informação é automaticamente apagada, impedindo assim a prova de que o inspetor ficou ou saiu do aeroporto durante a tarde de 19 de maio de 2018.
Leonor apresentou duas queixas, mas acabou por retirar uma
O inspetor do SEF agora acusado dos crimes de violação na forma tentada, de coação e de coação sexual não é o único que surge na acusação do Ministério Público. Leonor fez também queixa contra o inspetor que lhe disse, no momento em que mostrou o seu passaporte, que aquele documento era falso.
Além de não aceitar o passaporte como válido, esta mulher avançou ainda às autoridades que o inspetor em questão a terá ofendido, o que poderia configurar, segundo o Ministério Público, o crime de injúria agravada. A mulher terá dito que utilizava sempre aquele passaporte e terá também perguntado qual o motivo pelo qual o inspetor considerava que o documento de identificação era falso. Mas a justificação passou, segundo o relato de Leonor, por dizer que a mulher estava a tentar entrar em Portugal para se prostituir.
Apesar da descrição feita, não foi possível identificar esse outro inspetor, ao contrário do que aconteceu com o homem que é agora arguido, e a mulher acabou por desistir desta queixa.