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“As pessoas gostam dele, mas será que percebem a grandeza?”: dois dias para discutir António Variações na universidade

Por ocasião do seu 80.º aniversário, um colóquio de dois dias junta familiares, amigos, colegas e investigadores para discutirem o homem, o músico e o contexto em que um legado único foi construído.

Esta semana, se fosse vivo, António Variações teria feito 80 anos. Dois dias após este aniversário redondo, esta quinta-feira, 5 de dezembro, arranca na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), da Universidade Nova de Lisboa, “Variações Em Torno de António — De Olhar Para Trás, Pensamento Em Frente”, um colóquio que celebra, homenageia e contextualiza a vida e obra deste singular músico português, que morreu meses antes de completar 40 anos, no já distante ano de 1984.

Canção de Engate, O Corpo é que Paga, Estou Além ou É P’ra Amanhã são alguns dos temas que o imortalizaram, que o tornaram um ícone da nova pop portuguesa dos anos 80. Uma figura criada entre Braga e Nova Iorque, entre a pop e o fado, as discotecas de vanguarda e as romarias tradicionais, de traços masculinos e femininos, um excêntrico queer que tanto abalava como conquistava um Portugal conservador, poucos anos após o fim da ditadura mais longa da Europa Ocidental.

Para Manuela Gonzaga, historiadora e biógrafa de António Variações — que é uma das organizadoras do evento, ao lado da investigadora Catarina Pimentel Neto — a sociedade portuguesa guarda hoje uma imagem positiva do artista e da pessoa que Variações foi, mas considera tratar-se de uma “visão muito superficial”. “Gostam dele, mas será que percebem a grandeza?”, pergunta.

A ideia de organizar este colóquio é antiga, posta agora em prática com os contributos de muitos. A iniciativa é aberta ao público, que se pode inscrever online para assistir às conversas. O objetivo é trocar ideias sobre o homem e o artista, claro. Por isso são muitos os que o conheceram e que foram importantes na sua história a marcar presença neste ciclo de conversas.

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Júlio Isidro é um dos participantes no colóquio que acontece na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

É o caso de David Ferreira, que editou, gravou e lançou António Variações para o grande público através do seu trabalho na Valentim de Carvalho. Ou de Vítor Rua, músico que trabalhou consigo em estúdio. Ou de Teresa Couto Pinto, amiga e fotógrafa que o retratou por diversas vezes. Ou do seu irmão Jaime Ribeiro, o mais envolvido na gestão do seu património. Carlos Maria Trindade, que co-produziu o seu último disco; Lena d’Água, amiga e colega de editora; Júlio Isidro, o apresentador que deu Variações a conhecer com o seu programa O Passeio dos Alegres, e que o entrevistaria várias vezes depois; o técnico de som Pedro Vasconcelos; ou o então A&R e diretor da Valentim de Carvalho Francisco Vasconcelos; são outros dos que irão participar nos painéis sobre o músico.

Outros dos que se cruzaram com António Variações vão partilhar experiências pessoais. O ator e encenador Fernando Heitor, por exemplo, era amigo e cliente da barbearia de António desde o início da década de 70. Chegou a escrever letras para ele e a levá-lo para o mundo do cinema, onde Variações fez uma aparição fugaz no filme O Bobo, só estreado em 1987. O jornalista e escritor Luís Filipe Sarmento, com fortes ligações às famílias circenses, trocava cortes de cabelo com António por bilhetes para o circo, que o músico adorava, com direito a entrar nos bastidores.

Por outro lado, e indo mais além da figura individual de António Variações, no centro da reflexão está o seu contexto familiar, geracional, político, social ou económico. Pois, como descreve Manuela Gonzaga, a sua vida percorre em grande parte “a história contemporânea de Portugal”.

O trabalho como criança, a emigração em massa, a guerra colonial

António Joaquim Rodrigues Ribeiro nasceu numa pequena aldeia de Amares, distrito de Braga, em 1944. Era o quinto de uma família humilde de 12 irmãos. Manuela Gonzaga, que o conheceu e muitos anos depois escreveu a sua biografia, editada originalmente em 2006, lembra que António nasceu no ano do “começo da libertação”, do Dia D, 6 de junho de 1944, quando as tropas dos Aliados desembarcaram na Normandia, em França. Era o princípio do fim do regime nazi e da Segunda Guerra Mundial.

"Não sabem como ele era, não sabem que lutou toda a vida para ser um músico, não sabem as dificuldades que atravessou, não sabem que foi viver para Lisboa sozinho aos 11 anos, numa viagem horrível de camioneta e comboio que era um dia inteiro, como muitas outras crianças que começavam a trabalhar com aquela idade."

Embora Portugal mantivesse, oficialmente, uma posição neutra no conflito internacional; o país atravessava grandes dificuldades nesse período. “O António nasce também no ano de grandes greves contra o anterior regime, das pessoas que tinham fome.” A menos de 40 quilómetros da sua aldeia, ficou célebre a Marcha da Fome de Pevidém, quando em maio de 1944 os operários do Vale do Ave faltaram ao trabalho e marcharam até Guimarães em silêncio, ostentando bandeiras negras da fome, em direção à câmara municipal. Eram cerca de dois mil e lutavam pelo direito ao pão. Foram recebidos e, alegadamente — pois não há registos oficiais nem notícias da imprensa sobre o assunto, uma vez que vigorava um regime de censura — receberam em troca palavras de esperança. Regressaram pacificamente a casa, mas nada mudou.

Foi neste contexto de um mundo rural extremamente pobre e iletrado que António Variações nasceu. Em terras em que muitos milhares escapavam à fome (e, mais tarde, à guerra colonial) fugindo pelas fronteiras, em direção ao coração da Europa.

“As pessoas não o conhecem”, afirma Manuela Gonzaga. “Uma vez fui ao norte, por causa do livro, falar para uma população estudantil. Não sabiam nada sobre a emigração e aquilo foi uma terra sangrada de gente. Foram muitos milhares de pessoas. Os pais não falam disso, ou os filhos não estão para ouvir os pais. Perguntei se conheciam o Variações, houve um que disse ‘a minha mãe acho que sim’, mas quase com desprezo. E iam todos eles, a seguir, fazer uma festinha e ser filmados a brincar ao Variações. Cantar as canções dele em playback, rebolarem pelo chão… Fiquei escandalizada. Não sabem como ele era, não sabem que lutou toda a vida para ser um músico, não sabem as dificuldades que atravessou, não sabem que foi viver para Lisboa sozinho aos 11 anos, numa viagem horrível de camioneta e comboio que era um dia inteiro, como muitas outras crianças que começavam a trabalhar com aquela idade.”

Para a biógrafa do músico, a importância de celebrar e prestar tributo a António Variações neste momento prende-se com o facto de “precisarmos sempre destas fontes de inspiração”

LUSA/LUSA

Em Lisboa, onde António começou por tirar um curso de comercial na Voz do Operário, a historiadora explica que os miúdos que chegavam do interior, do mundo rural, “nem eram vistos como crianças e eram vistos com desdém, como parolos, porque falavam de uma forma esquisita”. “E quando ele acolhe o seu irmão Luiz em Lisboa, praticamente faz de pai dele.”

Neste colóquio realizado na FCSH, vai falar-se do trabalho infantil em Portugal entre as décadas de 40 e 80. António já trabalhava como marceneiro aos nove anos. Muitos dos irmãos também se tinham mudado para Lisboa em busca de uma vida melhor, longe da servidão do campo, remediando-se como podiam. Vários acabariam por emigrar, para a Europa ou para África. Como tantos outros, foram crianças sem infância.

Como todos os jovens da sua geração, António Variações cumpriu o serviço militar obrigatório e foi enviado para a guerra colonial, tendo servido em Angola no final dos anos 60. Só não viu uma frente de combate durante os dois anos que esteve em África graças às influências movidas pelo irmão Delfim, dois anos mais velho e já a viver no então Ultramar desde os 14 anos. Numa sessão do colóquio dedicada às questões queer, vai falar-se da homossexualidade no contexto da guerra colonial portuguesa.

"Temos que ter pessoas inspiradoras que nos orientem. Somos um país pouco letrado, muito ignorante da nossa história. Quando é um legado nosso, quando o Variações é nosso, como é que é possível ignorar que esta pessoa tem uma vida que pode ressoar com a nossa e dar-nos até pistas para os nossos próprios caminhos?"

Embora tenha sido marceneiro, comercial de mercearias, empregado de escritório e barbeiro, Manuela Gonzaga não tem dúvidas de que António Variações “sempre soube que queria ser músico”. “O António em pequenino já dizia que iria ser cantor. E atravessava a estradinha em frente da casa dos pais, uma casa portuguesa em granito muito bonita e tradicional, havia um penedo muito grande do outro lado e ele, criança, com cinco ou seis anos, talvez menos, subia para aquele penedo, punha-se a cantar e era ouvido por quilómetros em seu redor. Agora, liguemos isso a um miúdo muito tímido que ele também era. É uma imagem muito engraçada.”

Variações como um “exemplo de autenticidade”

Para a biógrafa do músico, a importância de celebrar e prestar tributo a António Variações neste momento prende-se com o facto de “precisarmos sempre destas fontes de inspiração”. “Ele era ele próprio, é um exemplo de autenticidade. Foi às raízes de si mesmo, deve ter sido desconfortável e doloroso assumir, num país em que a homossexualidade era um crime até 1983, ‘é isso que eu sou’. E perder a vergonha, porque não temos de ter vergonha da nossa identidade. Da cor dos nossos olhos, da cor da nossa pele, da nossa identidade de género, do país onde nascemos… Somos isso tudo e muito mais do que isso. E só nos conhecemos bem quando também conhecemos o mundo à nossa volta. Somos consciência em expansão. E o António é assunção plena de um projeto de vida, com toda a coragem, grandeza e beleza que isso implica.”

A historiadora acredita que a sua história inspiradora é mais pertinente do que nunca, uma vez que afirma estarmos “a viver tempos de muitíssima futilidade”. “Hoje em dia há uma dinâmica em torno do ser famoso completamente desprovida de conteúdo. É muito triste, são fogos-fátuos, fagulhas que brilham um bocadinho e depois desaparecem porque vem uma nova revoada. É bom que a gente saiba como é que as coisas acontecem, porque o António não apareceu num palco porque tinha umas roupas esquisitas na altura e se mexia de uma forma diferente. Não, ele tem um trabalho de vida inteiro por trás daquilo que ele faz. Foi um longo corredor até chegar ao palco. As pessoas não sabem os esforços que este homem fez e onde este homem chegou. Hoje há muito um exagero na imagem. Com o António Variações e, no fundo, com os anos 80, havia muita imagem, mas aquilo tinha um propósito.”

António Variações, pioneiro pop e ícone queer numa sociedade conservadora e ao mesmo tempo revolucionária como o Portugal dos anos 70 e 80

A moda como transgressão e os clubes transformistas são outros dos temas abordados neste evento de dois dias. Carlos Ferreira, mais conhecido como Guida Scarlatty e responsável pelo antigo Scarlatty Clube, inaugurado em 1975, estará presente no painel; ao lado de Rudolfo Pimentel, conhecido como a “Rita Hayworth do Bairro Alto”; e da investigadora Margarida Amaro, especializada em moda.

Manuela Gonzaga lembra um homem “extremamente educado”, “doce”, com um “sorriso inimitável”. Era “tímido”, mesmo que “muito crítico” e “irónico”, e com uma “autoridade natural”. Também era “solitário”, gostava de dançar em discotecas vazias, com pouca gente. Era muito “solicitado, mas de uma enorme simplicidade”. Não dizia palavrões nem tinha vícios. “Era extremamente português, adorava o seu país e a sua terra, a mãe e o pai. Era ligado à família. O António era muito compartimentado, os próprios amigos não se conheciam entre si. Ele tinha um mundo muito vasto mas não misturava mundos, porque as pessoas não iam entender.”

Ao longo dos anos, a biógrafa habituou-se a ver o seu trabalho citado em teses académicas espalhadas um pouco por todo o mundo. António Variações é, muitas vezes, apontado como um pioneiro e ícone queer numa sociedade conservadora e ao mesmo tempo revolucionária como o Portugal dos anos 70 e 80; mas também uma referência para abordar as dicotomias entre a vida no campo e na cidade. A historiadora gostava que se realizassem passeios no Minho para conhecer melhor o seu contexto e terra de origem.

“Ele é exemplar no sentido em que atravessa todas as dificuldades, porque compromete a sua vida ao serviço da música. Ele tinha um desígnio na vida dele e acho que temos de perceber isso porque todos nós temos”, acredita Manuela Gonzaga. “Todo o ser humano é criador. Se não tivermos estes exemplos para nos inspirar… Somos únicos, mas somos uma parte de um todo. Temos que ter pessoas inspiradoras que nos orientem. Somos um país pouco letrado, muito ignorante da nossa história. Quando é um legado nosso, quando o Variações é nosso, como é que é possível ignorar que esta pessoa tem uma vida que pode ressoar com a nossa e dar-nos até pistas para os nossos próprios caminhos? E hoje há um culto da superficialidade e da futilidade levada a um ponto que é impossível que as pessoas não adoeçam. A história é fundamental. Sem história, somos poeira no ar.”

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