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RAQUEL MARTINS/ OBSERVADOR

RAQUEL MARTINS/ OBSERVADOR

As pessoas traficadas para Portugal como mercadoria e a equipa que as tenta salvar

“Vieste sozinho? Gostas do Ronaldo?” As perguntas são disparadas por inspetores do SEF, sempre que desconfiam de um passageiro. Procuram vítimas, como Ekaterina. Veio para trabalhar, acabou sem nada.

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É uma equação que pode fazer toda a diferença: 0+0+0+0+0 = 1. Pode parecer que a conta não faz sentido, mas o resultado pode distinguir um passageiro normal de uma vítima. É feita, todos os dias, no aeroporto de Lisboa pela equipa que tem como missão detetar pessoas que estejam a ser traficadas para Portugal — e, desejavelmente, chegar aos traficantes.

A explicação é simples: uma pessoa calada pode não ser nada; uma pessoa que desvia o olhar pode não ser nada; uma pessoa nervosa à entrada pode não ser nada. Mas todos os nadas juntos podem ser alguma coisa.

Os inspetores do Serviços de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) tentam, assim, travar situações potenciais de tráfico humano, sabendo que muitos podem ainda passar pela malha. Sobretudo tendo em conta que, em certos casos, as vítimas são trazidas por terra — como Ekaterina.

Os quase dois meses de exploração eram a única bagagem que trazia consigo. Ekaterina fugiu para Lisboa de comboio, mas continuava a sentir-me presa. Tinha passado a noite na estação, não tinha dinheiro nem para onde ir. Com ela, trazia apenas as marcas do campo, na zona centro do país, onde tinha sido explorada. A pele branca do frio da Moldávia estava agora queimada pelo sol do interior português. A roupa estava gasta. Lavava-a à mão sempre que podia, para arrancar a terra que nela se entranhava. “Suja nunca andei”, assegura, levantando a voz e as duas mãos como se quisesse travar quem pensasse o contrário.

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Não sabia como pedir ajuda ou sequer a quem fazê-lo. Não queria crer que chegava aos 50 e poucos anos a sentir-se uma mercadoria — o que realmente era, para a rede onde tinha caído. Ekaterina tinha sido vítima de tráfico de seres humanos para exploração laboral — uma designação que lhe parecia demasiado longa. Sentia-se apenas vítima de um sonho: o de ter uma vida melhor.

Se sinalizar a vítima, alertei o traficante. Se recuso a sua entrada, perdi a testemunha”

É no decurso da viagem que muitos casos de tráfico de seres humanos são travados pelos inspetores do SEF mobilizados ao longo da fronteira (seja nas entradas terrestres, seja nos aeroportos, por exemplo). É ali que acabam por se detetar situações iminentes, de vítimas que estão a chegar e, sem saber, vão começar a ser exploradas. Muitas vezes, conseguem evitar logo ali que o caso se desenvolva. “Normalmente, são investigadas as situações em que a vítima vem com o traficante. A vítima sozinha é uma situação mais invulgar. Os traficantes preocupam-se em controlar a mercadoria. É mais difícil ter mercadoria sem controlo”, explica fonte do SEF ao Observador.

O SEF criou, no ano passado, de uma equipa especializada para combate ao tráfico de seres humanos opera no posto de fronteira internacional do Aeroporto de Lisboa (Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Às vezes, porém, “é dada alguma distância”: o traficante passa antes ou depois da vítima, para não parecer relacionado com ela. “Conhece aquele senhor?”. A pergunta é feita, por isso mesmo, pelos inspetores do SEF que se encontram nas cabines de controlo de passaporte — a chamada primeira linha –, no aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. Foi repetida durante as horas que o Observador passou no aeroporto de Lisboa a acompanhar o trabalho do turno da manhã. Fazem-no quando chegam dois passageiros seguidos com a mesma nacionalidade e do mesmo local de partida. O ambiente e as perguntas — “Gostas do Ronaldo?”, por exemplo — são descontraídas, numa tentativa de diminuir a tensão que as fardas que usam possam originar. Mas os inspetores carregam nos ombros o peso de decidir o futuro daqueles passageiros e detetar eventuais suspeitas, em pouco mais do que 20 segundos.

A escolha das perguntas não é, no entanto, feita ao acaso: “Tem alguém à sua espera? Vem fazer o quê? Quanto dinheiro traz consigo?“. Vão disparando questões ao mesmo tempo que verificam o passaporte e os documentos. Ali, os inspetores fazem um primeiro despiste, que é um jogo de cintura. Não podem reter qualquer pessoa à mínima suspeita: não só porque não há meios disponíveis para fazer analisar todos os casos, mas também porque podem estar a cometer uma injustiça. “Isto é sempre uma decisão condicionada pelo tempo”, explica um inspetor do SEF ao Observador, sem perder o ritmo de verificação de passaportes.

No aeroporto, existe uma primeira linha de controlo, onde os inspetores do SEF verificam os documentos e fazem algumas perguntas para eliminar suspeitas (Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Ao mesmo tempo, não podem desvalorizar todas as suspeitas. Um dos inspetores do SEF diz que ali se usa a equação do tráfico: 0+0+0+0+0 = 1. “Nada mais nada, mais nada, mais nada, em determinado contexto, é qualquer coisa”, resume, exemplificando: “A introspeção não quer dizer nada, uma linguagem pouco expressiva não quer dizer nada, o olhar que vai para o chão e vai para o teto, mas que não é direto nos olhos do interlocutor não quer dizer nada”. Mas tudo junto pode querer dizer alguma coisa. “Depois há condições objetivas de salubridade, habitação ou higiene que são evidentes”, acrescenta. É uma tarefa por vezes impossível. Especialmente porque muitas vítimas chegam à fronteira sem terem ainda a perceção de que são vítimas.

“É um somatório de pequenas coisas” que leva os inspetores a reter alguns passageiros na segunda linha — os gabinetes do SEF, também no aeroporto, onde os casos são analisados por mais inspetores e com mais tempo, sem a pressão de haver uma longa fila de passageiros da primeira linha. Não é isso que faz com que, no caso de ser detetado um caso de tráfico de pessoas, as decisões sejam mais fáceis de tomar. “Se sinalizar a vítima, alertei o traficante. Se recuso a sua entrada, perdi a testemunha. Na exploração laboral, o que se faz é: perante os indícios que aqui se recolhem, regista-se um processo e começa-se uma investigação”, explica fonte do SEF.

A falta de meios é um entrave, mas este órgão de investigação criminal tem “dedicado maior atenção, quer em quantidade quer em qualidade, a este crime”. “O controlo mais apertado, em primeira e segunda linha, acaba por poupar a ocupação e deslocação de recursos a jusante”, ou seja, para investigações posteriores no terreno, defende a mesma fonte.

A falta de meios é um entrave mas este órgão de investigação criminal tem dedicado uma maior atenção a este crime (Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Ekaterina e Liuba, duas vítimas de tráfico humano em Portugal, nunca poderiam ser sinalizadas ali: vieram de autocarro. Foram mais de quatro mil quilómetros de estrada, percorridos em mais de 42 horas. O desgaste da viagem não lhes parecia assim tão duro quando, no destino, estava a promessa de uma vida melhor, embora não soubessem que essa promessa estava longe de alguma vez ser cumprida.

Do desespero à oportunidade: 200 euros por mês para apanhar pêssego “não é tão mau”

A mãe tinha ficado acamada, fazia em maio de 2018 pouco mais de um ano. Acabaria por morrer no início desse verão. “Esgotou-se o dinheiro todo que tinha”, recorda ao Observador, auxiliada por uma tradutora. Ekaterina trabalhava numa mercearia e recebia “bem”, mas “os funerais lá são quase como casamentos” e gastou “tudo o que tinha” com a morte da mãe. Filhos criados, divorciada e a precisar de dinheiro: emigrar era a solução, acreditava, que acabaria com as suas dificuldades. Esta é, aliás, a característica em comum entre aqueles que acabam por cair em redes de tráfico de pessoas para exploração laboral. Não são mais manipuláveis nem se deixam enganar mais facilmente do que as outros: partilharam apenas o desejo de uma vida melhor, mais desafogada.

Encontrar um emprego não estava a ser tarefa fácil. Os dias iam passando, o pouco dinheiro que ainda tinha esgotava-se cada vez mais e o desespero aumentava. “Procurei nas agências, mas lá só havia emprego para a Polónia. As pessoas diziam-me que lá as coisas também não estavam assim tão bem. Desisti desta ideia e comecei a procurar na internet”, recorda. A afilhada, Liuba, que tinha entretanto ficado seduzida com a ideia de emigrar para amealhar algum dinheiro, começava também à procura de opções.

De todos os tipos de exploração associada ao tráfico de pessoas, a laboral é a que continua a predominar (Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Foi mesmo Liuba que encontrou na internet uma proposta de trabalho. A forma como as ofertas são feitas às vítimas também lhes dá uma segurança aparente: estão à vista de toda a gente. “Na esmagadora maioria dos casos, são feitas ofertas específicas às vítimas por pessoas que falam a mesma língua — que são, no fundo e sem saberem, angariadores”, explica Vera Carnapete, coordenadora da Associação para o Planeamento e Família (APF), da região centro, ao Observador.

Era “um romeno que trazia pessoas para Portugal para trabalhar e arranjava documentos” e tinha, de facto, a tal “oferta específica”: apanhar pêssego na zona centro do país. O horário? Dez horas por dia. O salário? Quatro euros à hora. Desse valor, 80 euros eram subtraídos para a renda da casa. “O romeno disse que tinha um espaço onde podíamos ficar a dormir”, explica. Alimentação e despesas da casa, como água, luz e gás, também estariam garantidas. Ekaterina não sabe bem que outros valores eram subtraídos, mas o valor final era “à volta de 200 euros por mês”.

Ekaterina não sabe bem que outros valores eram subtraídos mas o valor final era “à volta de 200 euros por mês”.

Face ao que recebia enquanto trabalhava na mercearia, era “bom dinheiro”. “Não era muito, mas dava para sobreviver, até porque já não tinha o filho para sustentar”, explica ao Observador. Foi a esse filho, que chegou a trabalhar quatro anos na República Checa, que Ekaterina pediu opinião. “Não é um valor muito elevado, mas também não é muito, muito baixo. Tens de ter em conta também o trabalho: para colher fruta, quatro euros não é mau. Não é muito bom, mas não é tão mau”, disse o filho.

O recrutamento é fácil — não é preciso apresentar condições excecionais para atrair trabalhadores. “As vítimas não têm noção de que as pessoas que fazem aquilo que elas fazem, no sítio onde se encontram, têm outras condições. Não têm noção de que o trabalhador português recebe outros valores e tem outros horários. Que termo de comparação é que têm? O do país deles. Se lá estiverem desempregados e aqui, ao fim do mês, conseguirem ganhar 150 euros, é excelente”, exemplifica uma fonte do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) ao Observador.

"As vítimas não têm noção de que o trabalhador português recebe outros valores e tem outros horários. Que termo de comparação é que têm? O do país deles"
Fonte do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras

Ainda para mais, aquele seria um trabalho temporário. Madrinha e afilhada ficariam em Portugal apenas três meses — o tempo do visto que o tal romeno lhes arranjava. Ekaterina não sabe bem explicar que visto era esse. “Era uma maneira de estar três meses legal no país, mas só para viajar. Disseram-me que não ia fazer documentos nem nada e, ao fim de três meses, como não havia registo de trabalho, voltava“, tenta resumir ao Observador. Pareceu-lhes a oportunidade ideal: “Amealhávamos algum dinheiro e voltávamos para a Moldávia”.

O contacto foi feito pelo telefone. O angariador confirmou as condições que já estavam explicadas no anúncio. Disse que queria fazer um grupo considerável de trabalhadores para depois virem todos juntos para Portugal. Assim que conseguisse fazê-lo, avisava-as para poderem comprar os bilhetes todos na mesma altura.

O romeno acabaria por conseguir reunir um grupo de 16 pessoas. Nem um mês depois,  já estava a ligar-lhes. “Têm de preparar logo tudo e daqui a três dias vão”, terá dito. Logo ali, Ekaterina percebeu que algo estava errado: “Ele tinha prometido que entrava em contacto connosco com três semanas de antecedência”. Mas nem o presságio a fez desistir do sonho — que começou a desfazer-se logo à chegada a Portugal.

O sonho transformado em pesadelo. E a promessa de um contrato que os fez continuar

Não havia água canalizada. Nem quente, nem fria. As paredes estavam pretas do bolor. O duche era não mais do que um pano encardido pendurado em volta de um ralo no chão. Por cima, um chuveiro ligado a um depósito. Ali, caía apenas a água que lá pusessem e que aquecia com o calor do sol. Água essa que só teriam se a fossem buscar a um ribeiro. “A casa era quase inabitável“, recorda Ekaterina. De tal forma que o grupo — especialmente os homens — começou a reclamar: “Se nós ficarmos aqui, basta só um mês para ficarmos doentes. E nós pretendemos ficar três meses. Para que é que vamos ficar a trabalhar por este valor se é para gastar em tratamento?”, perguntavam.

Sem querer acreditar que o seu sonho podia vir a tornar-se um pesadelo, Ekaterina admite que, logo naquele momento, percebeu que “algo era estranho”. O romeno disse que ia tentar melhorar as condições da casa, mas o grupo não ficou satisfeito porque “levaria sempre tempo para arranjar”. Com o pouco dinheiro que cada um dos elementos do grupo tinha levado, conseguiram comprar cartões para os telemóveis e ligaram para familiares e amigos que tinham deixado na Moldávia, na tentativa de encontrarem alguém que os pudesse ajudar a encontrar outro emprego.

Sem querer acreditar que o seu sonho podia vir a tonar-se um pesadelo, Ekaterina admite que, logo naquele momento, percebeu que “algo era estranho”.

Conseguiram encontrar outra propriedade agrícola, a poucos quilómetros da inicial, a precisar de trabalhadores. “Encontrámos um outro patrão, também romeno, que era ‘amigado’ com o primeiro”, conta Ekaterina. A oferta não era muito diferente: três euros por hora para apanhar melancia e melão, durante 10 horas por dia. Também este patrão tinha uma casa onde podiam ficar, por 75 euros por mês, e garantia alimentação e despesas. “O ordenado era menos, mas aceitámos. Íamos para trás de mãos a abanar? Ainda por cima, já tínhamos gasto o dinheiro com a viagem”, desabafa, acrescentando: “Concordámos especialmente porque ele prometeu, no final do mês, fazer um contrato a todos. E ficámos com a expectativa de poder ficar mais tempo.”

Quando há suspeitas, os passageiros são levados para a segunda linha, os gabinetes do posto onde os casos são analisados com mais tempo JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Foram todos de táxi. O novo patrão, Sasha, e o irmão foram ao encontro deles. “Queriam dividir o grupo, mas nós tínhamos um acordo de não nos dividirmos e de ficarmos sempre todos juntos”, conta Ekaterina. O patrão cedeu e foram todos para a mesma casa — pequena demais para 16 pessoas mas, ali, “as condições eram melhores”. “Tínhamos uma casa de banho com duche, embora o esquentador não funcionasse — ele prometeu, prometeu, mas nunca arranjou. Havia, pelo menos, a possibilidade de aquecer a água para nos lavarmos”, recorda ao Observador.

O sonho que voltava, então, a renascer depressa se transformou novamente num pesadelo. No primeiro dia de trabalho perceberam que, afinal, não iam apanhar nem melancia nem melão, mas fazer outro tipo de trabalhos agrícolas, mais pesados. No regresso a casa, ao final de dez horas de trabalho, a comida não estava, como prometido, em cima da mesa. As refeições acabaram por ficar por conta dos trabalhadores. Por sorte ou como se, no fundo, já previssem o pior, cada um tinha trazido da Moldávia alguns alimentos. “Legumes que davam para manter, cereais, açúcar”, exemplifica Ekaterina, acrescentando: “Como ainda tínhamos algum dinheiro, comprávamos o básico: um bocadinho de água, um bocadinho de pão. Mas não gastávamos muito”. Até porque não era muito e depressa acabou.

O ordenado que teimava em não chegar e um crime que é “muito rentável”

A promessa era de que, ao fim de cada duas semanas, recebiam o salário. Mas os dias de trabalho iam-se acumulando e o dinheiro não chegava. Sasha fez o que Ekaterina agora considera ter sido “um bom jogo”: “Num dia, um de nós ficava em casa, noutro dia, ficava outro. Então, quando alguém começava a reclamar de dinheiro porque já tinham tinham passado duas semanas, ele respondia que não porque nem todos trabalharam 14 dias. ‘Quando todos tiverem 14 dias, aí eu pago’, dizia ele”.

Já todos tinham cumprido os 14 dias de trabalho e o salário continuava sem chegar. Aí, a desculpa já era outra. Sasha dizia que o proprietário do terreno, português, ainda não lhe tinha pagado a ele. “Ainda não me pagaram a mim para pagar a vocês. Ainda não tenho dinheiro. Aguentem mais um bocadinho“, tenta imitar Ekaterina, reproduzindo as desculpas — sabe-o agora — que Sasha dava.

Por sorte ou como se, no fundo, já previssem o pior, cada um tinha trazido da Moldávia alguns alimentos. “Legumes que davam para manter, cereais, açúcar”, exemplifica Ekaterina.

Não tardou até que o grupo começasse a perceber que estava a ser enganado. Como forma de acalmar os ânimos, Sasha ia dando aos trabalhadores cinco ou dez euros de vez em quando. “Quando acabava qualquer coisa, dava cinco euros a um, dez euros a outro. Diziam: ‘Vai lá comprar um maço de tabaco. Toma lá cinco euros para comprares carne e mais não sei o quê'”, conta Ekaterina imitando Sasha, como se estivesse a distribuir dinheiro. Além disso, de duas em duas semanas, o grupo trabalhava ao sábado — esse dia era pago logo, embora recebessem apenas 25 euros e não 30 como Sasha tinha prometido. “Íamos aproveitando isso e conseguíamos sobreviver. Era difícil, mas tínhamos todos a expectativa de que íamos receber o dinheiro e ainda, no final, um contrato. Havia ainda aquela tolerância.”

Mas chegou a uma altura que já não tinham dinheiro nem sequer para comprar água. “Íamos a ribeiros sujos. Encontrámos uns garrafões e levávamos à volta de cinco litros de água para o campo. Mas ao meio-dia, aquilo já não era água e tínhamos de aguentar”, conta Ekaterina. Logo nos primeiros dias, a afilhada desmaiou, com falta de água. “Tiveram de lhe fazer respiração boca a boca. Entrei em pânico porque achei que ela tinha morrido“, recorda, explicando que, ao todo, houve seis pessoas que desmaiaram durante aquele período. “Ainda por cima, não permitiram que levassem quem desmaiava para fora do campo. Diziam para os meter à sombrinha para o português não ver”, conta.

Na segunda linha, alguns casos acabam por despoletar uma investigação (Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Ekaterina não sabe bem quem era esse português. Sabia que era o proprietário do terreno onde eram explorados. Não falava com eles. “Costumava aparecer à tarde, mas só falava com um romeno que sabia português”, recorda ao Observador. Era esse romeno que falava com Sasha e servia, assim, de intermediário. “Dava a entender que não sabia, no geral, o que se passava. Talvez os outros [o romeno e Sasha] recebessem o dinheiro, diziam-lhe que nos pagavam e não pagavam”, diz Ekaterina enquanto vai encolhendo os ombros.

É difícil perceber, até mesmo para as autoridades. Quando questionados, no decorrer das investigações, os proprietários dos campos alegaram que não sabiam o que se estava a passar. E é difícil provar que sabiam. “Alguns não têm mesmo conhecimento. Acham que está tudo legal, mas não está“, explica fonte da Diretoria do Centro da Polícia Judiciária (PJ) ao Observador. Ali, na zona centro, já foram investigadas algumas situações de tráfico de pessoas para exploração laboral, que permitiram perceber que existia uma “grande organização de redes de portugueses e de estrangeiros” dedicados a este crime — um crime “muito rentável”. “Os traficantes eram de leste, traziam as pessoas e contactavam os portugueses. Depois, o que servia de intermediário não pagava aos trabalhadores o dinheiro que recebia do proprietário”, acrescenta a mesma fonte. Outras vezes, os proprietários, sabendo que alguma coisa errada se passa, “fecham os olhos”.

Tráfico ou ação de caridade? “Foram vocês que vieram ter comigo”

A fome, o cansaço e a falta de dinheiro começa a fazer aumentar o desespero do grupo. Vários começaram a revoltar-se. E Sasha começou também a mudar a postura. “Assim que o grupo se revoltava por causa do dinheiro, ele chamava os dois irmãos, que eram grandes e mais agressivos, falavam mais alto, para nos intimidar”, recorda Ekaterina ao Observador. Assim que as coisas se tornaram mais tensas, muitos começaram a fazer chamadas para fugir dali.

“Assim que o grupo se revoltava por causa do dinheiro, ele chamava os dois irmãos que eram grandes e mais agressivos, falavam mais alto, para nos intimidar"
Ekaterina

Liuba foi um dos membros do grupo que quis fugir. “A minha afilhada era uma rapariga nova e bonita e Sasha começou a pedir favores sexuais para a deixar ir embora. Dizia: ‘Enquanto não cederes, nem tu nem a tua tia vão trabalhar’. Nós não cedemos. Eu liguei para um primo que estava em Itália e ele ficou todo preocupado. Mandou dinheiro e ela fugiu”, conta Ekaterina, acrescentando: “A minha afilhada também foi inteligente e contou a todo o grupo o que se tinha passado. Como foi no início, ainda havia muitos homens e protegeram-na. Foram com ela falar com Sasha para lhe exigir o dinheiro — o que não aconteceu”

Os homens foram os primeiros a fugir. A eles, Sasha não fazia frente. Pagava-lhes alguma coisa — “pouco, mas pagou” — para irem embora. Na maioria das vezes, dava-lhes apenas o dinheiro para a viagem de regresso. Como não queriam que a situação chamasse a atenção de alguém, muito menos que fossem fazer queixa às autoridades, pagava-lhes o suficiente para lhes comprar o silêncio e deixava-os ir embora.

Quando Ekaterina decidiu fugir, já só sobravam quatro pessoas. Por essa altura, “já acontecia tudo e mais alguma coisa”. À mínima reclamação, eram agredidos. “Um dos rapazes mais novinhos foi reclamar que não tinha dinheiro e ele [Sasha] bateu-lhe com tanta força que o rapaz se dobrou todo no chão. Depois ainda o obrigou a ir trabalhar”, recorda Ekaterina.

O combate ao tráfico de seres humanos é uma das principais prioridades da União Europeia (Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Também ela tinha atingido o seu limite. Nem a esperança de ter contrato de trabalho compensava o desespero que sentia. Já tinha 22 dias de trabalho e não via um tostão. Por isso, informou Sasha que também ela ia embora, tentado receber o dinheiro que ele lhe devia. “Podes sair à vontade porque eu não te vou pagar na mesma. Foram vocês que me contactaram, não fui eu que vos trouxe. Foram vocês que vieram ter comigo”, respondia.

O facto de as vítimas não estarem presas e de as deixarem ir embora faz com que muitos destes casos não sejam sinalizados e, mais do que isso, compreendidos. “A maioria das pessoas reconhece o tráfico do que vê dos filmes. Aí, as pessoas estão presas, limitadas a um sítio, proibidas de comunicar. Mas não é assim”, explica Vera Carnapete ao Observador. Na maioria dos casos, a expectativa de ter uma vida melhor é a única coisa que os prende.

“A maioria das pessoas reconhece o tráfico do que vê dos filmes. Aí, as pessoas estão presas, limitadas a um sítio, proibidas de comunicar. Mas não é assim”
Vera Carnapete, coordenadora na Associação para o Planeamento e Família

Além disso, continua a coordenadora da APF Centro, “o tráfico é muitas vezes confundido com caridade”, o que impede, muitas vezes, possíveis sinalizações. “As pessoas acham que os donos dos terrenos estão a ajudar aqueles trabalhadores. E até lhes dão um sítio para dormir”, diz Vera em tom irónico. Felizmente, diz, as pessoas “estão cada vez mais alerta”. “Nas ações de formação que fazemos, dizemos às pessoas para nos ligarem para discutir o caso. Se falarmos durante 20 minutos e chegarmos à conclusão que é falso alarme, não tem problema nenhum”, diz ao Observador.

Da fuga à casa abrigo. Caso está a ser investigado e Ekaterina continua à procura de trabalho

Ekaterina vive, agora, numa casa-abrigo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). A conversa com o Observador aconteceu num local perto. A localização mantém-se secreta para a proteger.

Com tudo o que lhe aconteceu, passou a ser uma das vítimas contabilizadas no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI). Os dados relativos ao ano passado ainda não foram divulgados. Sabe-se que o número de vítimas sinalizadas diminui de 2016 para 2017. Nesse ano, foram sinalizadas 175 presumíveis vítimas — menos 86 do que no ano anterior, 2016. O que não é necessariamente bom: pode significar apenas que as autoridades receberam menos alertas em relação a presumíveis vítimas e não que existam menos. De todos os tipos de exploração associada ao tráfico de pessoas, a laboral é a que continua a predominar: do total de 37 inquéritos instaurados pelo SEF, em 2017, só 15 eram de exploração laboral. E a agricultura é o setor de atividade em que as condições de trabalho são piores.

Quando relata o momento da fuga, a moldava começa a chorar. “Entrei em desespero porque não tinha dinheiro para ir embora”, recorda. Ainda ouviu de Sasha: “Isto aqui não é o infantário. Se quiseres, podes ir embora. Não te vou pagar na mesma”. Ekaterina foi até à rua para respirar e acalmar-se. Acabou por ser agredida. “O irmão de Sasha empurrou-me para dentro da casa. Felizmente, estava uma pessoa atrás de mim e manteve-me de pé. Não queriam que eu fosse para a rua, para não fazer escândalo”, conta ao Observador.

Foi o senhor com quem dividiu o quarto que lhe deu dinheiro para a viagem de comboio até Lisboa. Prometeu-lhe que ia ter com ela no dia seguinte. Mas nunca apareceu. Ainda hoje, Ekaterina não sabe o que é feito dele. Quando acordou, na estação, ligou para “uma vizinha lá da terra que trabalhava em Lisboa” e para o filho. Foi ele que encontrou, na internet, o número da linha de apoio da Cruz Vermelha. Encontrou-se com uma equipa no dia seguinte, num parque.

O caso está agora a ser investigado pelo SEF. À casa abrigo da APAV, Ekaterina chegou como tantas outras vítimas, independentemente da finalidade do tráfico de que foram alvos: num estado de vulnerabilidade total. “O sentimento inicial é medo. Vêm assustadas porque foram surpreendidas com uma situação que não esperavam. Manifestam alguma desilusão porque vinham com uma expetativa e acabam por ver frustrados os sonhos que traziam“, explica, ao Observador, fonte da APAV que se cruzou com Ekaterina.

"[As vítimas] manifestam alguma desilusão porque vinham com uma expetativa e acabam por ver frustrados os sonhos que traziam"
Fonte da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima

“Numa fase posterior, acabam por ir ganhando confiança e por desenvolver uma vontade de tentar, por elas, conseguir arranjar outro trabalho”, continua a mesma fonte. É o caso de Ekaterina. Só lhe falta arranjar um trabalho para, pelo menos, tornar realidade o sonho que a fez vir para Portugal. “Estive tanto tempo aqui para sair de mãos a abanar? Pelo menos, que faça o dinheiro da viagem.”

[Os nomes e quaisquer dados que pudessem identificar as vítimas e suspeitos foram alterados por razões de segurança]

 
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