“Recusamo-nos a comunicar com a polícia, porque não somos criminosos. Somos revolucionários. O nosso objetivo é a defesa dos legítimos direitos do povo arménio”
Antes de chegarem à embaixada da Turquia, em Lisboa, para o massacre, a 28 de julho de 1983, o grupo de cinco elementos do recém criado Exército Revolucionário Arménio deixava na portaria do jornal Diário de Notícias, à data na Avenida da Liberdade, uma carta com condições. O documento, escrito em inglês e por pontos, anunciava um plano de ataque que duraria 48 horas e clamava para que a polícia se abstivesse de intervir, caso contrário os seus autores estariam disponíveis para morrer com os reféns. “Uma ação deste tipo redundará sem dúvidas em baixas entre a Polícia e os reféns”, lia-se. E assim foi.
Pelas 10h30, estavam os elementos do recém criado Grupo de Operações Especiais (GOE) da PSP a treinar em Belas, no seu quartel general, quando o plano entrava em marcha. Os cinco arménios, com idades entre os 19 e 21 anos, deixaram um carro alugado carregado de explosivos à porta da embaixada e entraram a matar apanhando os seguranças de surpresa, como relatava o Diário de Lisboa desse dia. A primeira rajada de tiros atingiu de imediato um elemento da PSP, que fazia segurança à embaixada, mas que sobreviveria. Um segurança privado ripostou e atingiu mortalmente um dos atacantes, levando os restantes a irromperem de imediato nas instalações diplomáticas, deixando para trás parte da carga explosiva que levavam.
Minutos depois, já com a PSP no local, ouvia-se uma explosão no interior. Sem saber bem o que tinha acontecido, a polícia ainda conseguiu resgatar a mulher e o filho do encarregado de negócios. Ela morreria a caminho do hospital. Só pelas 13h30 chegavam os operacionais do GOE para aquela que seria a sua primeira missão num cenário de terrorismo. Eram cerca de 30 e as imagens da altura mostram-nos a cercar o edifício e a entrar para aquilo a que chamam de “operação de limpeza”, com rajadas e granadas de fumo. Lá dentro encontrariam cinco corpos carbonizados no primeiro piso: os quatro arménios suspeitos do ataque e um elemento da PSP que fazia serviço gratificado no local.
O ataque em Lisboa aconteceu na sequência de outros noutros países, levados a acabo por grupos anti-Turquia e pró-independência da Arménia. Era uma altura quente, com vários grupos terroristas identificados no mundo inteiro. Pouco mais de dez anos antes, tinha sido a organização terrorista palestiniana “Setembro Negro” a deixar um rasto de sangue nos Jogos Olímpicos de Munique, na Alemanha, ao tomar como reféns 11 membros da comitiva israelita, que acabariam mortos numa intervenção policial que correu mal. Seria este, aliás, o gatilho para começarem a ser criadas, em vários países, forças especiais no seio da polícia. Em Portugal, essa necessidade seria reconhecida em 1977, num decreto-lei que criava o Grupo de Operações Especiais (hoje integrado na Unidade Especial de Polícia da PSP), mas o primeiro curso com contributo dos militares britânicos do 22.º Regimento do Special Air Service (SAS) só acontecia em março de 1982, com 47 polícias a serem integrados nesta unidade.
40 anos e ainda não há mulheres no GOE
Quarenta anos depois, já foram feitos 15 cursos de operações especiais de acesso a esta unidade de elite, dos quais saíram 250 polícias. Apenas uma pequena percentagem do total de candidatos que tentaram entrar, como explicou ao Observador o subintendente Francisco Fonseca por ocasião do lançamento do livro “GOE 40 anos ao serviço de Portugal” — uma publicação repleta de fotografias que assinala o que esta unidade fez nas últimas quatro décadas e quais as suas valências.
“A média dos que chegam ao final do curso com aproveitamento anda nos 30%”, diz o adjunto do comandante do GOE, sem conseguir apontar o dedo a uma prova que seja a derradeira. Certo é que fobias a animais, às alturas ou ao sangue, por exemplo, são imediatamente eliminatórias. “As maiores dificuldades são a capacidade de resiliência. Temos um processo de seleção faseado em três partes: uma de cariz mais motivacional, outra para testar algumas fobias que os candidatos possam ter, e que são incompatíveis com a frequência do curso, e a apetência para os candidatos poderem trabalhar em equipa. Um elemento do GOE não vai a lado nenhum sozinho”.
Todas as fases do curso, que tem, assim, as componentes física, técnica, tática e psicológica, são de caráter eliminatório. E há mesmo quem desista antes de ser eliminado. “Tanto se pode ser eliminado no inicio do curso como no fim, a maior dificuldade era manter essa resiliência constante”, diz o subintendente. Os instruendos são testados com situações próximas do real do que possa vir a acontecer. São privados do sono, das refeições, expostos a desconforto, como dormir com a roupa molhada. Tudo é testado. Um curso exigente ao qual, nos últimos 40 anos, nenhuma mulher resistiu.
“Já tivemos mulheres que, do ponto de vista físico, eram completamente capazes, mesmo não fazendo distinção de género nas provas, mas que depois desistiram”, diz o oficial da PSP ao Observador. “Talvez por ser um ambiente onde, de facto, não se faz distinção entre géneros, pelo que nem sequer há espaços físicos preparados para separar homens e mulheres”, avança o polícia, sem grande convicção da sua explicação.
Francisco Fonseca, agora com 52 anos, tem dificuldades em voltar atrás no tempo, lembrar como viveu este curso e falar nas maiores dificuldades que enfrentou. Tinha 23 anos quando completou pouco mais de um ano ao serviço da PSP do Calvário e decidiu concorrer. O ataque à embaixada da Turquia tinha acontecido há já uma década, mas outros eventos iriam acontecer que seriam igualmente mediatizados, como aconteceu com o assalto com sequestro no BES de Campolide.
Oito horas à porta do BES de Campolide
Há um momento no assalto ao BES de Campolide, em Lisboa (instalações que já não existem), que permanece na memória do subintendente Fonseca: quando os dois assaltantes se aproximam da porta do banco para saírem com as suas armas apontadas à cabeça dos dois reféns que ainda ali permaneciam, gerente e subgerente do banco. Tinham passado oito horas desde o início do sequestro, naquele dia 7 de agosto de 2008, e a polícia percebeu que nada mais havia a fazer. Os atiradores especiais do GOE, um grupo muito restrito de polícias que são conhecidos por snipers, estavam localizados em locais estratégicos e com as miras apontadas à porta do banco. Foi quando se ouviram os disparos e os dois homens tombaram no chão, com os operacionais do GOE a entrarem de rompante no banco e a retirarem as vítimas em segurança.
O que aconteceu até aqui, para ser contado, precisa da ajuda do que os jornais reportaram à data. Wellington Nazaré e Nilson Souza, dois brasileiros a viverem em Portugal sem autorização de residência, entraram armados no BES pela hora de almoço. Queriam dinheiro. O alarme ligado à polícia traiu-lhes o plano, fez disparar os nervos e toldou-lhes o raciocínio. No local estavam quatro clientes, que conseguiram fugir já de mãos algemadas pelos suspeitos, durante a chegada da polícia. Permaneceu, no entanto, um casal, gerente e subgerente, que conheciam os segredos do cofre que a dupla queria abrir.
A Rua Marquês de Fronteira encheu-se rapidamente de polícias, que montaram um perímetro de segurança que impedia a circulação de carros e de pessoas. O GOE foi chamado, sobretudo por causa dos seus negociadores, e os jornalistas começaram a chegar. Lá de dentro, depois de estabelecida a comunicação entre polícia e suspeitos, os dois brasileiros pediram comida, bebida e até um carro para fugirem. Mas não havia meio de se entregarem. Mais tarde saber-se-ia que tinham já juntado num saco 96 mil euros, com os quais pretendiam escapar.
Durante as negociações, os restantes elementos do GOE colocaram-se em posições estratégicas, sobretudo os atiradores especiais da PSP. Uma equipa da investigação criminal trouxe-lhes mais informações, depois de fazer uma busca às casas onde ambos os assaltantes viviam, um em frente ao outro, não muito longe do local do crime. Na casa de Wellington estava o primo, Rodrigo, aparentemente alheio ao que se estava a passar. A Polícia ainda o tentou usar para a negociação, para que o assaltante se rendesse. Mas Wellington ligou diretamente ao primo e foi claro: preferia “morrer a entregar-se.”.
Rodrigo comunicou isso mesmo à polícia e esse telefonema acabaria por corroborar o que a polícia já tinha percebido. Os dois assaltantes nunca se iriam entregar e iriam fugir provavelmente no carro Smart, pertencente a um dos gerentes, que se encontrava estacionado mesmo à frente do banco. A intervenção do GOE travou-lhes as intenções. Assim que ambos os assaltantes, os dois de óculos de sol, se aproximaram da porta do banco agarrados aos reféns e apontando-lhes as armas à cabeça, ouviram-se dois disparos. Ambos caíram. Um morreu de imediato, o outro foi levado para o hospital, atingido na cabeça, e acabou por sobreviver. Wellington ainda foi julgado em Portugal, onde esteve 5 anos preso, e só depois foi extraditado para o Brasil. Desde 2021 que é livre para regressar.
Quando o suspeito em causa é colega da PSP
Menos mediático, mas mais marcante para o subintendente Fonseca, foi um caso que se passou no Laranjeiro, em Almada, e que terminou na morte de um colega de profissão. O oficial da PSP revela apenas que esse foi um dos trabalhos que mais lhe custou, sem pormenorizar o que aconteceu. Mas, mais uma vez, os jornais contam como o Grupo de Operações Especiais resolveu a contenda naquela madrugada do dia 8 de maio de 2010, quando José Pereira, que tinha sido subchefe no Corpo de Segurança Pessoal da PSP, chamou a polícia por suspeitar de que lhe estavam a assaltar a casa.
Segundo Correio da Manhã, José Pereira, 52 anos, já tinha feito segurança a António Guterres, mas tinha sido reformado compulsivamente na sequência de um processo disciplinar. Quando ligou para a polícia, pediu ajuda, dizendo que achava que lhe estavam a assaltar a casa. Mas, assim que a patrulha da PSP chegou ao local, o agente abriu fogo. Uma das balas atingiria um dos polícias, salvo pelo colete anti-bala e por um ecoponto naquela rua, trespassado pela munição disparada por José.
O Grupo de Operações Especiais acabaria por ser chamado ao local. “Diria que, quando nos chamam, é porque, até à altura, ninguém conseguiu resolver. Por isso, sentimos que há um alívio de quem está”, conta Francisco Fonseca. Não foi o caso nessa noite, em que “os ânimos estavam exaltados e foi muito difícil serená-los”. Aparentemente, José Pereira continuava a disparar, barricado em casa, obrigando os operacionais do GOE a entrar no edifício para conseguir imobilizá-lo. José Carlos acabou por morrer com os únicos dois tiros disparados contra ele.
Francisco Fonseca tem alguma dificuldade em utilizar o verbo “morrer”. Foi “neutralizado”, corrige, para explicar depois porquê. “Nós, quando atuamos, atuamos sempre dentro de um padrão ético e de um padrão de normas e valores inegociável. Atuamos em situações extremas quando mais ninguém consegue resolver o problema, mas não atuamos de qualquer maneira. Costumo dizer que somos cirurgiões, em termos de segurança. Vamos atuar, mas provocar o mínimo dos danos e sempre com a preservação da vida humana”.
As conturbadas missões internacionais, sobretudo no Iraque
Na sala museu da Quinta das Águas Livres, em Belas, onde o GOE tem o seu quartel general, há várias fotografias de embaixadas portuguesas no estrangeiro e de diplomatas portugueses com quem estes operacionais estiveram em missão. Esta é uma das atribuições da unidade de elite da PSP desde 1991: garantir a segurança dos representantes e representações diplomáticas nacionais em países com problemas de segurança, assim como garantir a evacuação de cidadãos portugueses em países de risco.
O subintendente Francisco Fonseca conta já com 12 missões internacionais no currículo, mas, mais uma vez, é parco nas descrições. Começou em Luanda, Angola, em 1996, com sete outros colegas que tinham sob sua responsabilidade a residência da embaixada. “Nessa altura, Angola vivia um processo conturbado e notava-se uma preocupação com a proteção da nossa representação, mas nunca tivemos uma situação crítica, ao contrário de outros países onde estive também, como o Iraque, a Bósnia, ou a Líbia, Argélia, Guiné Bissau e República do Congo”. “Houve situações mais perigosas, ataques diretos, mas, até hoje, nunca tivemos nenhum ferido grave em qualquer missão, o que nos dá confiança de que estamos a trabalhar bem, mas não nos podemos descurar”, conta o oficial.
Em 2004, já depois da intervenção militar na capital iraquiana de Bagdad que destituiu Saddam Hussein, recorda o desafio que era manter a segurança do embaixador português no percurso que fazia da sua residência até à representação diplomática. A distância eram apenas quatro quilómetros, mas pareciam 20, dado o número de checkpoints e de todas as estradas que eram diariamente cortadas, obrigando a um planeamento do percurso constante.
“Havia alturas em que íamos numa estrada e não sabíamos se era um checkpoint. Tínhamos de passar em contramão e ir por um itinerário alternativo. Foi uma missão muito desafiante para toda a gente que lá passou porque não havia estruturas securitárias, o Iraque estava desarmado de qualquer poder estatal que controlasse o que fosse, havia uma insegurança reinante todos os dias, tínhamos de fazer um esforço muito grande”, conta.
A participação no Iraque foi, à data, anunciada pelo então segundo comandante do GOE, Magina da Silva — que criou, mais tarde, a Unidade Especial de Polícia onde foi integrado o Grupo de Operações Especiais e que hoje é diretor nacional da PSP —, explicando que, apesar da preparação dos operacionais, iriam fazer um programa específico de preparação para cada missão de três meses. Esta missão foi marcada por, pelo menos, três situações de risco, como contou o Correio da Manhã já em 2007. Uma delas ocorrida dois anos antes, em 2005, quando um automóvel rebentou a menos de 50 metros da residência do embaixador Francisco Falcão Machado, quando ele e a sua família se encontravam no interior. Num outro episódio, o blindado que a PSP usava na patrulha foi atingido nos vidros com uma granada, provocando apenas danos materiais. E numa outra situação, em 2006, duas viaturas do GOE foram atacadas com tiros de metralhadora. A representação diplomática acabou por ser encerrada por ordem do ministro dos Negócios Estrangeiros de então, Luís Amado, precisamente por causa da situação de insegurança que ali se vivia.
Francisco Fonseca é discreto e não conta estas histórias. Das missões internacionais revela apenas aquela em que acompanhou uma representação diplomática numa visita ao centro de refugiados na República do Chade e viu uma criança completamente nua a beber água suja de uma poça. “São aquelas imagens que marcam, mais do que um tiroteio. Ajuda-nos a preparar para a vida, ajuda-nos a posicionar enquanto seres humanos”, diz. E será das poucas que contará ao seu filho, que tem agora apenas dois anos.