Era um dia desafiante nas votações na especialidade das propostas para o Orçamento do Estado para 2023. Era o dia dedicado às medidas fiscais. E o debate de manhã, no Plenário, prometia. Não que se esperasse grandes alterações face ao que já se conhecia nas propostas do PS e na do Governo. Mas ainda assim houve espaço para algumas vitórias fiscais dos partidos da oposição, nomeadamente ao nível do IVA – que ficou reduzido nas bicicletas (Livre), e em alguns produtos alimentares (PAN), além do que se sabia já ser pretendido pelo PS (moluscos e produtos para aquecimento). Os custos fiscais das medidas aprovadas não foram divulgados.

Permitiu, no entanto, agregar pontos ao discurso do Governo de que maioria absoluta não é poder absoluto e que mostrou abertura para o diálogo. Este já resultou nos três dias de votação em 49 propostas da oposição que receberam o sinal verde do PS, o tubarão nesta discussão já que com maioria absoluta decide o que passa e o que não passa.

Tubarões e raias mergulham no Parlamento. O segundo dia de votações do Orçamento do Estado

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PAN e Livre estão a disputar taco a taco o primeiro lugar de quem conseguirá aprovar o maior número de propostas. Inês Sousa Real já conseguiu 21 e Rui Tavares 16.

Ao cair do pano, o PS ainda mudou alguns sentidos de voto, fazendo aprovar de uma assentada três propostas do Bloco (além da que já tinha aprovado no primeiro dia), mas apenas uma com impacto no terreno que pode ser imediato e em relação ao IMT (Imposto sobre Transmissões Onerosas de Imóveis) – a isenção do IMT ficará restringida nos casos de aquisição de prédios para revenda estabelecendo um limite mínimo de dois anos de atividade ao comprador de prédios para revenda. De resto a outra medida fiscal do Bloco aprovada (parcialmente) é apenas uma promessa: o Governo compromete-se a rever as taxas de retenção aplicáveis aos trabalhadores independentes em 2023. António Mendonça Mendes, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, já tinha revelado que iria avançar nesse sentido, pelo que nesta aprovação tratou-se de não recusar algo que já estava no pensamento do Governo.

Governo prepara mudanças nas retenções na fonte para trabalhadores independentes

Até porque foi precisamente nesta proposta que o PS aprovou a revisão, mas não se comprometeu com a taxa proposta pelo Bloco – de 21,5%. O que até levou Mariana Mortágua a sugerir que não valia a pena a mudança de voto do PS para que a primeira parte da proposta fosse aprovada. Também a IL tinha feito a proposta de alteração deste regime, mas nada deste partido em relação a esta medida foi aprovada.

De resto nenhuma das medidas emblemáticas do Bloco teve luz verde. E assim ficou chumbada a taxa google, a atualização dos escalões do IRS à taxa de inflação (que também tido sido proposta por outros partidos), taxas sobre lucros excessivos (Bloco e Livre queriam estendê-la à banca, com o partido de Rui Tavares ainda a abranger o setor de armamento), ou a eliminação dos benefícios fiscais para residentes não habituais. De resto aconteceu isso mesmo noutras propostas de partidos como o PAN – isenção do IVA de alguns bens alimentares. Claro que todas as medidas da IL de juntar escalões no IRS (que mereceu durante a manhã um bate boca entre Mendonça Mendes e Carlos Guimarães Pinto), ou de reduzir o IRC (tanto da IL como do PSD) ficaram pelo caminho.

A “pesca à linha” do PS e a tensão com os liberais

E sem propostas relevantes da oposição sem aprovação, o tapete vermelho foi estendido ao PS:

  • Agravamento do IMI para alojamento local em áreas de contenção;
  • Agravamento do IMI para habitação que não seja de residência permanente e que não esteja arrendada;
  • Desagravamento do IMI para imóveis devolutos ou degradados decorrente de incêndios;
  • Fim da isenção de IMT nas permutas técnicas;
  • Rum e licores da Madeira continuam com imposto mais baixo;
  • Renegociação dos créditos à habitação sem imposto de selo;
  • Bancos que aderiram ao regime especial de créditos fiscais sem direito a inscrever ad eternum prejuízos fiscais;
  • Isenção da taxa liberatória para as primeiras 50 horas de trabalho suplementar;
  • Fim da penalização fiscal de não residentes nas mais-valias imobiliárias;

Mas talvez uma das mais emblemáticas medidas deste orçamento e que já ficou inscrita nas votações desta quarta-feira é a da tributação para a atividade das criptomoedas, que o PS alargou, mas que o Bloco queria ver ir mais longe.

Partidos voltam à carga com descida do IVA na eletricidade — mas PS chumbou tudo

Em ano de crise energética, a descida do IVA para taxa reduzida na eletricidade e no gás natural voltou a ser proposta por quase todos os partidos da oposição (a proposta do PSD limitava a redução do IVA à parte da fatura que cobre a potência contratada). O PS voltou a chumbar estas propostas, cujo impacto financeiro seria muito relevante. No entanto acabou por viabilizar algumas reduções, cirúrgicas e com perda de receita pouco expressiva, na taxa de IVA, incluindo algumas a pensar no aumento dos custos com o aquecimento para as famílias.

Mas a mais relevante do ponto de vista do incentivo à mudança de comportamentos foi a passagem da taxa aplicada à compra de bicicletas de 23% para 6%. A reparação de velocípedes já estava na taxa mínima, mas a partir de 2023, e por iniciativa do Livre, também a aquisição pagará a taxa reduzida em vez da atual de 23%. As vendas de bicicletas estão a acelerar em Portugal desde a pandemia e a indústria nacional é campeã de produção na Europa para a qual aliás exporta grande parte do que produz. Na justificação da proposta o Livre cita a meta ambiciosa da estratégia nacional a qual aponta para 10% das deslocações dentro de cidade feitas em bicicleta até 2030 e 4% até 2025.

Num ano em que o Governo estudou (e afastou) o corte da taxa reduzida do IVA na alimentação para 3%, a lista de produtos alimentares que vai pagar a taxa de 6% vai crescer para receber as manteigas, margarinas e cremes para barrar produzidas a partir de origem vegetal. Uma mudança que irá custar, nas contas do partido que a propôs, o PAN, 0,06% da receita de IVA. O mesmo partido também obteve taxa reduzida para as bebidas e iogurtes de base vegetal, sem leite e laticínios, produzidos à base de frutos secos, cereais, preparados à base de cereais, frutas, legumes ou produtos hortícolas.

Por iniciativa dos socialistas, a lista da taxa reduzida do IVA passará a incluir em 2023 conservas à base de moluscos, desde que o teor do peixe e do molusco seja superior a 50%, equiparando a outras conservas de peixe. Os péletes produzidos a partir de biomassa e os aquecedores e caldeiras com elevada eficiência energética também passarão a ter o bónus do IVA a 6% por proposta socialista.

E mais uma vez a descida do IVA nas touradas foi chumbada.

Outra novidade no IVA, mas com impacto no IRS, é a possibilidade de deduzir o imposto cobrado na compra de bilhetes de transportes públicos a partir de 2023. Esta dedução era permitida, mas apenas relativa à compra de passes sociais e agora por proposta do PAN passa a abranger os títulos individuais. Foi também aprovada a proposta do PAN para que, em sede de IRC, suba o valor das deduções de gastos das empresas com a aquisição de passes sociais em benefício dos seus trabalhadores, de 130% para 150%, “por forma a incentivar as empresas a adquirirem passes aos seus trabalhadores”.

Governo pode atualizar valor de aumento das pensões — e o mais provável é que o venha a fazer

Tinha aprovação garantida por ser do PS e já teve luz verde: o Governo pode atualizar os valores de aumento das pensões em 2023 face àquilo que inscreveu na proposta de OE se os valores do crescimento do PIB e da inflação que contam para o cálculo das pensões sejam superiores ao previsto. E o mais provável é que isso venha a acontecer, dado que a inflação média dos últimos 12 meses sem habitação — a que conta — tem nos últimos meses subido face ao valor de agosto, quando foi aprovado o modelo de aumento das pensões. O valor que conta, ainda que provisório, só será conhecido no final de novembro. Só o Chega votou contra a proposta do PS, todos os outros abstiveram-se e apenas o PS foi favorável.

O Governo tinha proposto uma atualização das pensões para 2023 limitada face ao que dita a lei, traduzindo-se entre 4,43% e os 3,53% consoante o valor da pensão. Ou seja, aumentos que são inferiores aos que resultariam da aplicação da lei das atualização das pensões, sem limitações. O Governo, porém, já assegurou que o valor será atualizado caso a inflação no final do ano supere o previsto pelo Governo. Esta proposta do PS aprovada permite que tal aconteça.

O tema das pensões tem aquecido os debates das manhãs. Logo no primeiro dia, o Chega acusou o PS de estar “nas tintas para os pensionistas” e de mostrar “cegueira”. O PCP também insistiu no empobrecimento dos pensionistas, criticando que o PS insista “no incumprimento da lei”, ao dar aval à proposta do Governo de repartir em dois momentos a atualização das pensões à taxa da inflação: em outubro com a meia pensão, e em janeiro com uma atualização limitada que, se nada for feito em 2023, tem implicações nas pensões futuras.

No segundo dia, os deputados voltaram ao tema e Gabriel Bastos, secretário de Estado da Segurança Social, respondeu-lhes para defender a proposta do Governo e lembrar que não foi nenhum governo do PS a cortar pensões em pagamento.

No dossiê das pensões, só o PS saiu a ganhar. Os outros partidos viram todas as suas propostas rejeitadas. O Bloco tinha pedido uma atualização das pensões de acordo com a lei, sem a limitação que o Governo vai impor em janeiro, mas a medida acabou chumbada. Já o Livre queria que o complemento excecional de meia pensão estivesse incluído na base de cálculo das pensões para 2024, só que também ficou pelo caminho.

O Governo tem remetido decisões para 2024 para o final do ano de 2023, tendo em conta a evolução da situação do país e as conclusões que o grupo de trabalho sobre a Segurança Social apresentar. Foi também rejeitada a proposta do Chega que previa uma atualização extraordinária das pensões por escalões, sendo de 50 euros por pensionista para as pensões que não ultrapassem o valor de IAS, de 20 euros para que estão entre esse valor e o salário mínimo e de 10 euros para quem tem uma pensão entre o salário mínimo e 2,5 vezes o IAS.

Já o PCP queria a eliminação do fator de sustentabilidade e que a atualização das pensões das pensões de janeiro fosse de 8%, com um mínimo de 50 euros, em ambos os casos sem sucesso.

A menstruação volta ao OE

Já tinha marcado o Orçamento do Estado para 2022 — com algumas propostas sobre o tema a serem aprovadas na altura — e volta a marcar este OE. E com medidas repescadas porque embora tenham sido aprovadas em maio, ainda não foram implementadas.

É o caso do estudo sobre o impacto da menstruação na saúde e na qualidade de vida em Portugal. O Livre tinha conseguido aprová-la em maio durante as votações do OE de 2022, mas não chegou a materializar-se, pelo que retomou a proposta agora. E voltou a ser aprovada.

Vai também avançar um projeto-piloto de distribuição de bens menstruais. Vários partidos apresentaram propostas nesse sentido: tanto o PS como o PAN viram as suas aprovadas, praticamente iguais. Em ambos os casos, o Governo fica obrigado a desenvolver, em 2023, um projeto-piloto de distribuição gratuita de bens de higiene pessoal feminina. Nesse piloto, terá também de divulgar tipologias e condições de utilização.

O Livre também tinha uma proposta semelhante, mas foi rejeitada. Previa um programa de distribuição de produtos de higiene menstrual, mas através de várias entidades: organizações não-governamentais, centros de saúde, hospitais, centros de emergência para pessoas em situação de sem-abrigo, casas de abrigo para vítimas de violência doméstica, estabelecimentos de ensino, estabelecimentos prisionais e centros educativos.

Também o Bloco de Esquerda tinha uma proposta que pretendia a distribuição gratuita de produtos de recolha menstrual em centros de saúde, escolas, instituições de ensino superior, prisões, e junto de populações socialmente excluídas, mas não conseguiu ir avante com a sua sugestão.

Mais estudos a caminho

Este é também o Orçamento dos estudos, dos grupos de trabalho e de avaliações. Esta quarta-feira, o Livre conseguiu mais duas propostas nesse campo. O PS permitiu responsabilizar o Governo a criar uma comissão técnica e científica para avaliar e apresentar propostas para mitigação da poluição luminosa e controlo da luz artificial exterior, e para definir metas nacionais de redução de contaminação luminosa. Terá ainda de promover um estudo nacional sobre poluição luminosa que avalie “o grau de contaminação provocado pela luz artificial e seu impacto na biodiversidade, na saúde humana, na qualidade de vida e na qualidade do céu noturno”.

Mas o PS não se quis comprometer com a parte da proposta que implicava compromisso financeiro, com orçamentação específica para garantir a inspeção e monitorização do brilho do céu noturno, luz intrusiva e impactos da luz nos ecossistemas. Nesse ponto, o PS votou contra.

O Livre também viu aprovada, ainda que parcialmente, uma proposta para a a implementação do programa Cartão +Cultura, +Cidadania. Ficou aprovado o lançamento de um estudo em 2023, regulamentado por despacho do membro do Governo responsável pela área da cultura e estabelece-se “mediante contributos recolhidos por um grupo de trabalho alargado que envolve entidades do setor da cultura, artistas e organizações da sociedade civil que trabalham na área”. O programa pretende ser “um mecanismo de democratização do acesso e fruição cultural”.

Mas não passou pelo crivo socialista a pretensão deste programa prever a atribuição de um abono para atividades e produtos culturais e o incentivo para o consumo cultural, nem a sua extensão às áreas do conhecimento e da ciência (+Conhecimento, +Ciência). Na área cultural, o LIvre conseguiu aprovar uma transferência de 5 milhões para o Fundo de Salvaguarda do Património Cultural para compensar o fim da raspadinha do património.

Na reta final das votações, o PS decidiu ainda mudar um sentido de voto a uma proposta do PCP que reforçava o orçamento do Instituto da Conservação Natureza e Florestas em um milhão de euros. Mais: a proposta do PCP previa que o ICNF coordenasse a atualização do diagnóstico do estado de conservação dos valores naturais nos territórios integrados em áreas protegidas.

Este processo, segundo a proposta comunista, terá de incluir a análise dos elementos de base constantes dos planos de ordenamento em vigor e identificação das alterações registadas no território integrado em cada área protegida em termos de uso do solo e de atividades económicas, excluindo as atividades tradicionais.

O PS mudou também o sentido de voto e aprovou a proposta do Bloco para um inquérito nacional de caraterização sociodemográfica da população com deficiência.

E assim terminou o terceiro de dia de votações. Falta apenas o de quinta-feira, cuja comissão vai decorrer enquanto Portugal joga pela primeira vez no Mundial.

Aprovada taxa reduzida de 6% na compra de bicicletas proposta pelo Livre

(notícia atualizada. O PAN já fez aprovar 21 propostas)