A Câmara Municipal da Lousã, presidida pelo socialista Luís Antunes, entregou um contrato de 24 mil euros para a reabilitação de um pavilhão desportivo à empresa da presidente de uma junta do próprio município, liderada pela também socialista Sandra Fernandes. O contrato foi assinado no início de fevereiro — quase um ano depois de um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo clarificar a existência de um impedimento legal em casos idênticos. Confrontado com as questões do Observador, o gabinete de Luís Antunes garante agora que “o procedimento de ajuste direto em causa será anulado”.

O contrato para a realização de obras de “requalificação, beneficiação e amplificação do pavilhão desportivo n.º 2” da Lousã, disponível no portal Base, tem data de 2 de fevereiro de 2021. A validá-lo estão as assinaturas de Luís Miguel Correia Antunes, pela câmara da Lousã, e de Sandra Margarida Carvalho Fernandes, em nome da Sétimo Sentido, Lda. Aquilo que o contrato não refere é que, além de representante legal da empresa — de que detém uma quota de 75% —, Sandra Fernandes é também presidente da Junta de Freguesia de Gândaras, uma autarquia do município.

“À luz do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo [de março do ano passado], poderão ser responsabilizados não apenas o destinatário do contrato como também o seu autor”, admite Paulo Otero, especialista em Direito Administrativo, em declarações ao Observador. “Daqui decorrerá um processo do Ministério Público que poderá resultar em perda de mandato”, antecipa o advogado.

Na última quinta-feira, em reunião da Assembleia Municipal, o autarca do PS que lidera a câmara da Lousã foi confrontado pela oposição social-democrata com uma eventual irregularidade: o facto de o município ter entregado a obra, por ajuste direto e sem consulta de soluções alternativas, a uma empresa detida maioritariamente pela presidente de uma junta de freguesia do mesmo município. Uma decisão que, em última instância, pode ser punida com perda de mandato para os autarcas que violem a lei (como prevê o número 1 do art.11º da lei que estabelece o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos).

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[Vídeo da reunião da Assembleia Municipal. Questão do PSD pode ser vista no momento 1h01m; a resposta do presidente da CMLousã surge aos 02h01m10s]

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“É possível ao abrigo da lei a senhora presidente da Junta de Freguesia das Gândaras, Sandra Margarida Carvalho Fernandes, ter estabelecido e assinado, no dia 2 de fevereiro de 2021, um contrato de empreitadas de obras públicas, como representante legal da empresa Sétimo Sentido Lda?”, questionou o deputado municipal António José Gonçalves. O social-democrata que levantou a questão admitiu a possibilidade de avançar com uma “denúncia aos órgãos competentes” por considerar que “o contrato celebrado ultrapassa os limites da razoabilidade” e por configurar a prática de “ilícitos criminais que a serem provados implicarão, independentemente de responsabilidade civil e criminal, a perda de mandato, nos termos do n.°2 do artigo 8.° da Lei da Tutela Administrativa”.

Na mesma reunião de Assembleia Municipal participou, além de Luís Antunes, a presidente da Junta de Freguesia de Gândaras, Sandra Fernandes, também sócia-gerente da Sétimo Sentido, Lda. Mas nenhum dos dois intervenientes clarificou os contornos do caso. “Relativamente às assinaturas [do contrato] e aos participantes na decisão, é uma situação que não tenho presente mas que poderá ser verificado. Não sei responder se existirá a eventual — repito, a eventual — incompatibilidade”, disse apenas Luís Antunes, lamentando o tom acusatório da intervenção do deputado municipal do PSD. Sandra Fernandes não chegou a pronunciar-se sobre o caso nessa reunião.

Dúvida jurídica depois de autarca ser confrontado

No manhã seguinte, o Observador enviou questões a ambos. A questão central focava-se no impedimento, previsto por lei, de uma autarquia local contratualizar serviços a empresas detidas por autarcas do mesmo município, como aconteceu neste caso.

A esse respeito, o adjunto de Luís Antunes na autarquia, João Santos, afasta eventuais responsabilidades do autarca no processo. “A informação técnica dos serviços para decisão foi apresentada ao executivo sem suscitar quaisquer questões subjetivas face aos titulares da sociedade a quem se propôs a adjudicação”, lê-se na resposta enviada por escrito. Na prática, o presidente da Lousã sugere desconhecimento sobre a ligação de Sandra Fernandes, colega de partido e autarca do mesmo município, à Sétimo Sentido.

De resto, garante o gabinete de Luís Antunes, as dúvidas jurídicas sobre os contornos deste caso só surgiram nesse momento. Por isso, e quase um mês após a assinatura do contrato, quando o prazo (de 30 dias) para a realização da obra estava prestes a esgotar-se, a câmara decidiu “suscitar imediata apreciação jurídica” dos contornos da adjudicação direta. A “entidade externa ao município” que presta apoio jurídico à Lousã acabou por deparar-se com um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, com cerca de um ano, que deixa clara a existência de um impedimento num caso com o que envolve a autarquia:

“Para efeitos de aplicação do artigo 4.º, alínea b), subalínea v), do Estatuto dos Eleitos Locais, o sócio e único gerente de uma sociedade empreiteira que seja, simultaneamente, presidente de uma junta de freguesia e, por inerência, membro da assembleia do respetivo município, está impedido de celebrar contrato de empreitada entre essa sociedade e este município”.

O acórdão foi publicado em Diário da República em março de 2020 e passou a fazer jurisprudência sobre situações desta natureza. Mas a lei do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, anterior ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, já se debruçava sobre situações de conflito.

No art. 9º lê-se que “os titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos de âmbito nacional, por si ou nas sociedades em que exerçam funções de gestão, e as sociedades por si detidas em percentagem superior a 10 % do respetivo capital social, ou cuja percentagem de capital detida seja superior a 50 000 (euros), não podem”, entre outros pontos, “participar em procedimentos de contratação pública”. Seria o caso de Sandra Fernandes, titular de 75% da empresa contratada pela câmara da Lousã

É, aliás, o próprio município que alude a essa lei nos esclarecimentos que enviou ao Observador. O gabinete de Luís Antunes acaba por assumir que, “confirmando-se a impossibilidade da contratação, o procedimento de ajuste direto em causa será anulado”.

Mas, na opinião do advogado Paulo Otero, esse recuo na contratação da empresa da autarca não impede a responsabilização criminal dos envolvidos. “Penso que não os desresponsabiliza porque a validade dos atos reporta-se à data em que eles foram praticados”, assinala. Essa anulação poderá, ainda assim, servir de “atenuante” num futuro inquérito do Ministério Público.

Nos esclarecimentos que disponibilizou ao Observador, o gabinete de Luís Antunes refere que todo o processo foi conduzido “pelos serviços técnicos do Município”, desde a “escolha do tipo de procedimento, empresas a convidar, análise da proposta e elaboração do projeto da decisão de contratar” (no documento que o Observador consultou, Paulo Oliveira, chefe de Divisão de Obras Municipais e Ambiente, é identificado como gestor do contrato).

Mas, apesar da referência a um alegado estudo prévio sobre as “empresas a convidar” para apresentação de propostas de orçamento — sugerindo-se que teriam sido procuradas alternativas à empresa escolhida — , o contrato publicado no portal Base não faz qualquer alusão a essa suposta consulta. O documento refere, apenas, a opção pelo modelo de “ajuste direto”.

O Observador procurou esclarecimentos sobre o fundamento para essa opção — ao invés de uma efetiva abertura ao mercado em busca de propostas com condições mais favoráveis para o município — mas o gabinete de Luís Antunes não adiantou qualquer dado a esse respeito.

Reiterando que o presidente da câmara da Lousã “atuou em consonância com as informações técnicas dos serviços”, a autarquia acrescenta que, “face ao sucedido, determinou uma averiguação interna”.

Autarca declarou não haver impedimentos

Sandra Fernandes, por outro lado, não respondeu diretamente às questões do Observador — sobre o papel exato que exerce, atualmente, na empresa e sobre a situação de aparente conflito existente neste caso ou as consequências que daí pudessem advir. Por escrito, a presidente da Junta de Freguesia de Gândaras, e responsável da Sétimo Sentido, Lda, optou por fazer uma declaração. “Neste momento apenas quero transmitir que considero lamentável ver o meu bom nome, honra e profissionalismo ser posto em causa, num jogo político. Estou de consciência tranquila, pois não tive qualquer interferência na decisão de adjudicação, deixando a minha tomada de posição para breve, em momento e instâncias adequadas.”

Há, no entanto, um dado equívoco que ressalta da declaração da autarca socialista. Nomeadamente, quando garante não ter tido “qualquer interferência” na escolha da sua empresa para a realização daquela obra. Como autarca, não só na Junta de Freguesia de Gândaras mas, também, e por inerência, enquanto membro da Assembleia Municipal da Lousã, Sandra Fernandes estava obrigada às regras a que estão vinculados os titulares de órgãos políticos. As regras que, como já vimos, impedem os autarcas que são, ao mesmo tempo, empresários de se envolverem em atos de contratação pública com os municípios em que foram eleitos.

Aliás, no contrato assinado entre a autarquia e a própria Sandra Fernandes pode ler-se que, entre a documentação entregue pela Sétimo Sentido para concluir o processo junto da câmara, consta uma declaração exigida pelo Código dos Contratos Públicos e referida como “documentos de habilitação”.

Essa declaração obriga o adjudicatário (a empresa da autarca) e declarar “sob compromisso de honra, que a sua representada (2) não se encontra em nenhuma das situações previstas no n.º 1 do artigo 55.º do Código dos Contratos Públicos (CCP)”. E o que diz o n.º 1 do artigo 55.º do CCP? Diz, taxativamente, que “não podem ser candidatos, concorrentes ou integrar qualquer agrupamento, as entidades que estejam abrangidas por conflitos de interesses que não possam ser eficazmente corrigidos por outras medidas menos gravosas que a exclusão”.

A mesma declaração, que Sandra Fernandes foi obrigada a apresentar para que pudesse ser atribuído o contrato à sua empresa, refere, no ponto 3, que “o declarante tem pleno conhecimento de que a prestação de falsas declarações implica a caducidade da adjudicação e constitui contraordenação muito grave”. E que, além de poder ficar impedido de participar em futuras contratações públicas, também pode ser alvo de “participação à entidade competente para efeitos de procedimento criminal”.