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Como diria Karl Marx, anda um espectro pela Europa. O espectro do Despacito. Seja nas rádios de todo o continente, que continuam a apostar nos êxitos mais orelhudos e no abanar das ancas, seja nas campanhas eleitorais dos países latinos, como Portugal. Este ano as candidaturas autárquicas apostaram a sério no fabrico de hinos eleitorais, o que é bom, usando como inspiração alguns êxitos que não lhes pertencem, o que é mau. Num país de Tonys Carreiras, o plágio de campanha generalizou-se e a maior vítima é mesmo o êxito de Luis Fonsi. E escusa de procurar, o Luis não é candidato a uma junta de freguesia, embora seja o responsável indirecto por uma série de odes de fancaria mais ou menos conseguidas. Portanto, é pelo Despacito que lá vamos. Mas há mais, entre pop electrónica, pitadas de hip-hop e até, imagine-se, composições próprias.

O caso José Carlos

O efeito de contaminação de Despacito é então de grande escala, a roçar a pandemia. Da Póvoa de Lanhoso a Gondomar, de Baião a Vila das Aves, passando por Vila Pouca de Aguiar, muitas foram as candidaturas que se renderam ao poder de sedução daquela síntese conseguida a partir da cumbia, da pop e do reggaeton. O primeiro a sair à liça com a colagem ao mega-êxito internacional terá sido o PS de Vila Pouca de Aguiar, que quis pôr as ancas dos eleitores a balançar a caminho das mesas de voto. O que é curioso, e verdadeiramente distintivo, é a forma como a canção original foi reinterpretada. Na versão socialista, arrancamos assim:

Sim, o José Carlos é o nosso candidato
agora temos que o apoiar

https://www.youtube.com/watch?v=vjzX7S3GrjE

Ou seja, há toda uma carga de conformismo e resignação que raramente associamos a um puxar de galões na arena política. Temos que o apoiar é assim uma espécie de novo Yes, we can. Só que em registo autodepreciativo, coisa que costuma resultar bem no humor mas que pode ser uma aposta de risco nestas autárquicas. Será que o PS de Vila Pouca de Aguiar esperava outro candidato? Haverá uma mensagem subliminar nesta preposição? O que é facto é que o hino anuncia que Pelos nossos filhos ele vai ganhar e não é comum pormos os nossos filhos nas mãos de qualquer um. Por exemplo, na versão mais afirmativa adoptada pelo PSD da Póvoa de Lanhoso, e em relação ao candidato Avelino Silva, todos nós sabemos as qualidades que tem, o que significa que ninguém parece conformado à inevitabilidade de apoiá-lo.

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https://www.youtube.com/watch?v=n1MxJGsoe6g

Vão lá por convicção. Mas regressando a Trás-os-Montes, nota ainda para o momento spoken word da canção, pela voz do próprio José Carlos, aventurando-se no território de um Gil Scott-Heron ou de um Henry Rollins, também eles cantautores eminentemente políticos. De Washington D.C. a Vila Pouca vai um (des)passito de distância.

Covilhã, a Manchester portuguesa

Quem o afirma é Marco Baptista, o candidato com a verdadeira Vontade de Mudar. Infelizmente, o chavão repescado pelo social-democrata terá a ver com a indústria das confecções e lanifícios e não com referências como os The Smiths, os Joy Division, os Happy Mondays ou os Stone Roses. E isso nota-se. Para ilustrar a candidatura e a vontade imperiosa de mudança, o PSD da Covilhã apostou numa versão da canção Waving Flag, do músico K’naan (hoje uma vedeta internacioal), uma canção de 2008 que tem na sua origem uma preocupação profunda em relação às condições de vida dos refugiados na Somália, na sequência da guerra civil que devastou o país natal do intérprete. Mas o sociais-democratas não fazem a coisa por menos. Na sua versão muito própria de Waving Flag, ficamos a saber que os laranjinhas estão

cansados de ver o povo a sofrer
muitos sem saber se vão ter para comer

Sinal claro de que a situação social na Covilhã é muito mais grave do que aquilo que pensávamos. Surpreende até que, nessas condições, os lúgubres Joy Division não sejam mais populares do que o somali-canadiano K’naan, mas as campanhas eleitorais servem para isto mesmo, para ficarmos mais esclarecidos. E também para darmos um pezinho de dança. Em termos melódicos, o PSD da Covilhã mantém a colagem à estrutura definida pela canção original – a mesma batida sincopada, os mesmos teclados à espreita – fazendo diferente na muito nacional arte de desafinar. Já no que diz respeito à política, e sabendo que também esta versão é um poderoso alerta contra a miséria, realce-se a fuga ao culto da personalidade, que abunda nos hinos autárquicos. Há um desejo de combater as injustiças, há “paz, pão, povo e liberdade” enxertados na letra, fazendo a ponte com os salmos do PSD nacional, há um sentido colectivo da candidatura e da luta. Tendo em conta as palavras e o facto de tirem ido buscar a inspiração a um homem que se sente à vontade entre rastas e dreadlocks, não há razão para Vontade de Mudar não ser um êxito no próximo acampamento de Verão do Bloco de Esquerda.

Like a Boss

A febre dos hinos chegou ao hip-hop. Ou vice-versa. E a culpa é do CDS do Marco de Canaveses, que arrasta o candidato Paulo Teixeira para o groove. Como tem sido apanágio deste género musical ao longo dos tempos, o hino “Chegou a Hora!” traz consigo um capital de contestação que é de assinalar. E só podia ser assim, quando não estão cumpridas as condições mínimas de civilização e salubridade. O MC de serviço acusa:

É mesmo falta de empenho
Querem que ande limpinho mas nem água tenho

O que vale é que:

Em Outubro acreditamos na mudança desta terra
Nada mexe aqui, esta gente só enterra

Arriscaria dizer que será a estreia do verbo “enterrar” numa refrega política oficial mas o hip-hop nunca teve medo das palavras, antes pelo contrário. A produção musical de Chegou a Hora! é inatacável, com uma qualidade que ombreia com a original. A mesma secção rítmica, os mesmos apontamentos de guitarra, o mesmo teclado vibrante, umas vozes afinadas, até. O mote principal é a mudança, tratando-se de mais uma candidatura da oposição, e uma coisa é certa: tendo em conta que o candidato do CDS é o ex-presidente da câmara de Castelo de Paiva, então eleito pelo PSD, digamos que esta pessoa está longe de Frei Tomás. Olhem para o que ele diz, olhem para o que ele faz (que é, essencialmente, mudar. Pelo menos de partido).

Ideiafix

O CDS, de novo, desta feita o de Oliveira do Bairro. Por lá, os centristas disputam a liderança da câmara municipal com o PSD, e o escolhido para o combate foi Duarte Novo. Duarte Novo. Sim, Duarte Novo. Um tal de Duarte Novo. Se ainda não conseguiu reter o nome do candidato do CDS em Oliveira do Bairro (Duarte Novo), aproveite para ouvir o hino de campanha. Tem cerca de minuto e meio de duração, o suficiente para ouvir uma dúzia de vezes as palavras “Duarte Novo”.

A entrada faz-se com Oliveira do Bairro, terra onde naturalmente só vive boa gente, a letra amparando-se numa malha sonora de baixo, bateria e teclas, a fazer lembrar os Ben Folds Five. A diferença é que as palavras, bom, as palavras estão mais ao nível Duarte Novo do single Duarte Novo On Repeat Duarte Novo dos LCD Duarte Soundsystem. Duarte Novo. E você, ainda se lembra de quem é o candidato do CDS em Oliveira do Bairro? Não? Enfim, se calhar a informação colava-se com mais facilidade à memória ao som de uma cumbia. Por alguma razão se tornaram tão populares.

Vizela sou eu e és tu

É uma pérola pop que poderia animar as manhãs de qualquer ouvinte de rádio entalado no garrafão da ponte 25 de Abril. Melodia orelhuda, baixo gordinho, estrutura muito próxima do clássico ABABCBB, garantia de estalar de dedos e votos como pãezinhos quentes em João Ilídio. Homem que rima experiência com competência e que apostou as fichas num hino pela positiva. Mais que criticar, capacidade para mudar. Provavelmente uma alusão velada a quem o acusa de se preparar para abandonar a presidência dos Bombeiros Voluntários a meio do mandato, trocando-os pela câmara municipal. A pop é assim, cheia de subtilezas.

Apesar da habilidade na composição do hino, onde também não têm lugar as vozes esganiçadas que enxameiam a campanha, por vezes a métrica é um tudo-nada atropelada. É o caso da passagem Vizela, sou eu e és tu, seguida de um Pê Ésseeeeee enfiado a martelo no final da frase, mas dêem-me um concelho urbano que esteja imune aos problemas do tráfego. Unzinho. Em suma, os soldados da paz que se preparem para a orfandade.

De Bragança a Lisboa, com passagem pelo Alto Alentejo

Os acordes de guitarra são imediatamente reconhecíveis. Estamos no território Xutos & Pontapés, verdadeiro património nacional e transgeracional, ao som do êxito “Para ti, Maria”. A diferença é que os azimutes foram mudados de Trás-os-Montes para a zona da rota dos vinhos do Alentejo, o que implica também uma troca de musas. Se na versão original vamos correndo para ti, Maria, neste caso o PS aposta tudo numa cidade para ti, Estremooooooooz.

E onde estava tudo para ti encontramos futuro é aqui, Sadio, beneficiando da enorme vantagem de apresentar um candidato com um sobrenome que passa por adjectivo. Se a nota artística é baixinha – afinal trata-se de mais uma colagem descarada a um sucesso consolidado – atribua-se um louvor pela toada rock. Num mundo eleitoral contaminado pelo reggaeton e seus afilhados, sabe bem ouvir uns riffs de antanho.

Deixa-me rir. E unir pelo coração

O hino de campanha da coligação Gondomar no Coração (PSD/CDS) à União de Freguesias de Gondomar (S. Cosme), Valbom e Jovim oferece um quentinho no peito. Aos primeiros acordes de “Unidos pelo Coração”, percebemos que estamos no mundo de Jorge Palma, se ele tivesse trocado a boémia por uma senha de presença na assembleia de freguesia. O piano competente, o tom baladeiro, a atmosfera de temática humanista

procura ajudar os velhos
e os jovens igualmente

acabam por vincar a originalidade desta candidatura, que entendeu não ceder aos encantos dos sintetizadores e do maldito vocoder. Saúde-se assim quem defende a universidade sénior e a horta da subsistência, fazendo votos para que, em caso de vitória e na melhor tradição palmense, José António Macedo nunca venha a ser lembrado como José António, o fora-da-lei.

O nosso amigo Marco

Zeferino Vieira, candidato do PSD à freguesia do Marco, leva a palma nesta selecção de hinos, odes e canções. Num minuto apenas, com meia-dúzia de palavras chave e um tom jovial, sem esquecer uma complexidade harmónica notável neste contexto, Somos Marco é um achado eleitoral. Vozes em camadas, apontamentos de instrumentos regionais, teclas que dão o tom e o corpo.

É certo que arriscam a entrada no terreno dos jingles publicitários das grandes cadeias de supermercado e das feiras do fumeiro mas este é sem dúvida um dos hinos mais originais e conseguidos da propaganda musical autárquica deste ano. Se tivesse de encontrar um paralelo, diria que “Somos Marco” é a “Good Vibrations” desta campanha. E se acha que exagero, experimente passar umas horas a percorrer o país ao som das mil variedades de Despacito, a soldo de um jornal. Vai ver que a propensão para psicadelismo o invade, ao ponto de encontrar o Brian Wilson aos comandos do órgão da igreja de Santa Maria dos Fornos.

Pedro Vieira é pivô de televisão e ilustrador relutante