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Enviados especiais do Observador ao Reino Unido, Cátia Bruno e João Porfírio.
Quando Glyn viu aquela notícia na manhã de terça-feira, percebeu que ia ter de passar a noite numa fila junto ao Rio Tamisa. O jornal The Times avançava que as autoridades esperavam uma tal afluência para poder ver o caixão de Isabel II — que estará em câmara ardente no edifício do Parlamento até segunda-feira — que a entrada poderia ser limitada, a cerca de 350 mil pessoas. “Aí disse para mim mesmo: ‘Vamos pensar racionalmente. Vamos ativar o modo de sobrevivência.’”
Quando chegou à fila que se acumula na margem sul do rio, junto ao palácio de Lambeth, por volta das 15h, ficou espantado por descobrir que poucos tinham pensado como ele. À sua frente estavam apenas 22 pessoas. Mas Glyn, com 63 anos, era dos mais bem preparados que ali estavam. Para além de uma cadeira de plástico, trazia uma mala carregada com barras de proteína, bebidas energéticas, bananas, camarão e quatro ovos cozidos para serem racionados ao longo da noite e do dia seguinte — a fila só começará a avançar por volta das 17h de quarta-feira.
Glyn trouxe água com vitaminas para ver o sol nascer à beira do Tamisa. “Não estamos aqui por sermos loucos”
“Sua Majestade não quereria que os seus súbditos estivessem esfomeados ou desidratados só para a vir ver”, diz, sem margem para dúvidas. Por essa razão, Glyn trouxe ainda uma ajuda pesada, mas que crê que será fulcral: um garrafão de litro e meio de água onde desfez alguns suplementos energéticos para ir bebendo. Sem “aditivos, açúcares, nada, tudo natural”, garante. A isso somam-se ainda quatro carregadores portáteis para o telemóvel, incluindo um magnético que comprou nos Estados Unidos, extremamente rápido, que tem aconselhado às dezenas de jornalistas que o entrevistaram durante o dia: “Vocês que trabalham nesta área têm de arranjar um destes malandros”, aconselha.
Glyn tenta explicar que a racionalidade orienta a sua decisão de estar ali, apesar de haver um elemento de emoção envolvido. “Não estamos aqui por sermos loucos, estamos aqui por termos orgulho”, repete várias vezes. “Isabel II é como se fosse uma mãe que nunca conheci. Nunca foi tomar chá lá a casa, nunca fomos ao cinema juntos. Mas ela esteve presente.”
Quando ainda faltam mais de seis horas para o sol nascer e a chuva teima em não parar, Glyn prevê que passará a noite sentado na sua cadeira, mas acordado. “Estou com demasiada adrenalina. Isto é histórico, nunca fiz isto na vida, vou estar em frente a uma Rainha”, diz. Cofiando o seu bigode e barba grisalhos e aprumados — que já está a deixar crescer por trabalhar como Pai Natal em centros comerciais no inverno —, explica o seu entusiasmo. “Nunca vi Londres às 6h da manhã, nunca vi o sol nascer no Tamisa, tirando uma noite mais louca ou outra. Mas não estava assim, não estava neste estado de espírito. E estou acompanhado nisso, aqui estamos todos com um estado de espírito especial”.
Mil pessoas para organizar uma fila e a ajuda de anjos da guarda como Jacob
Se ao cair da noite a quantidade de jornalistas presentes no local era quase tão grande como o número de pessoas na fila, noite dentro a situação já é mais calma. A chuva que não pára de cair e o frio afugentaram algumas pessoas. De hora a hora, as autoridades presentes no local — e são muitas, entre polícias, seguranças contratados e voluntários de uma força de mil pessoas mobilizadas — fazem uma contagem. À meia-noite, estavam 141 pessoas na fila, menos do que já tinham estado umas horas antes. “Vamos garantir que não há ultrapassagens na fila e que tudo se mantém calmo”, afirma ao Observador um agente da polícia. “Está tudo organizado. De manhã começaremos a distribuir as pulseiras que dão acesso ao Westminster Hall.”
Kim trabalha para uma empresa de segurança privada e é uma das centenas de pessoas que estão ali para garantir que tudo se mantém de forma ordeira. Entrou às 19h e o turno durará até às 7h da manhã, ao frio e à chuva. “Se não fosse o tempo, acho que estaria aqui mais gente. Mas amanhã está previsto melhorar e tenho a certeza que vão chegar muitos, vai crescer de forma lenta, mas vai crescer”, prevê. Não podia estar mais certa: na manhã seguinte, previa-se já que a fila pudesse atingir os 16 quilómetros de extensão — esta tarde tinha já 5 quilómetros, segundo a BBC.
“Funcionamos como uma espécie de apoio ao cliente. Respondemos a perguntas, ajudamos no que for preciso, observamos para garantir que está tudo bem”, explica sobre o seu trabalho. Já trabalhou em eventos do género, como no último Jubileu da Rainha, mas diz que nunca viu nada assim, com pessoas de meia-idade a pernoitarem junto ao rio. “Damos-lhes dicas, como por exemplo ‘Vá ali ao Tesco comprar uma gabardine para a chuva, há umas baratas lá’. Fazemos o possível.”
A sociedade civil também está mobilizada para ajudar. À hora de jantar, o próprio Arcebispo da Cantuária apareceu com pizzas quentes. Agora, à noite, voluntários da SWAT, uma associação sikh de apoio aos sem-abrigo, vem oferecer café quente aos que estão na fila. E, para além deles, há a bondade individual. “Um estranho ajudou-nos, acredita?”, comenta Suzanne com o Observador. A habitante de Surrey, no sul de Londres, estava no final do dia à chuva na fila a conversar com algumas pessoas que também estão na fila. Consigo trouxe apenas algumas sandes, chocolate e uma pequena garrafa de vinho rosé.
Ao final do dia, o corpo de Isabel II chegava ao Palácio de Buckingham. Mais ou menos por essa altura, um homem passou e viu as três mulheres e outros dois homens que ali se juntaram — um deles com 80 anos — e decidiu que tinha de os ajudar. Foi comprar cadeiras de plástico, gabardines para a chuva, sacos do lixo e trouxe-lhes.
Agora, já noite escura, o homem, que se chama Jacob e vive ali perto, voltou para ver se estão bem. “Sei que não posso ajudar toda a gente, mas vi estas cinco pessoas, algumas de idade, e decidi que pelo menos por elas tinha de fazer algo”, conta ao Observador. Recusa, porém, deixar-se fotografar. “As verdadeiras boas ações não querem publicidade, devem ser discretas. É nisso que acredito”, explica, com um largo sorriso.
Patricia não trouxe nada, a não ser a memória do marido que quase apertou a mão ao príncipe Carlos
Patricia, de 69 anos, é uma dessas pessoas ajudadas por Jacob, que lhe trouxe um guarda-chuva maior do que o pequeno e frágil que trouxe consigo de Norfolk, um condado de Inglaterra que fica a quatro horas de distância por comboio. Veio sozinha, não trouxe nada. Mas sentiu o impulso de ali estar. “É claro que vou passar a noite! Não há ninguém como a Rainha. Uma noite não é nada”, diz ao Observador, convicta, destacando que nasceu em abril como Isabel II, mas de 1954, dez meses depois da cerimónia da Coroação. “Sou um bebé nascido do ambiente de festa”, conta, piscando o olho. “Ela é eterna, de certa forma. Não era uma num milhão, era uma num bilião.”
A reformada sentiu a necessidade particular de vir em homenagem ao marido, atualmente num lar com demência. “Ele é um verdadeiro aficionado da monarquia, ia adorar estar aqui”, confessa. Toda a vida foi pintor e costumava ir frequentemente a Londres com Patricia para exibir alguns trabalhos em exposições. Foi numa dessas visitas que se juntaram à multidão para assistir ao anúncio do noivado do príncipe Carlos com Diana de Gales. “O Carlos estava a cumprimentar as pessoas e o meu marido estava de mão estendida e ia ser o próximo a apertar-lhe a mão… Quando alguém meteu a mão à frente. Ele passou a referir-se àquele momento como “O dia em que quase apertei a mão ao príncipe Carlos’”, conta, com uma gargalhada.
“Ele ia gostar mesmo de estar aqui…”, diz, com o riso a transformar-se em sorriso triste. “Gostava muito de poder ser eu a cuidar dele, mas não consigo. Mas estava com ele no lar quando saiu a notícia da morte da Rainha. Eu chorei muito. Ele já quase não reage, mas mesmo assim apercebeu-se daquilo e ficou agitado. Foi muito triste. Por isso tinha de estar aqui hoje, para o representar.” As amigas que acabou de fazer na fila há algumas horas, Suzanne e Jacqueline, tentam animá-la: “E estás aqui por ele, era o que ele quereria.” As três passam grande parte da noite a formar um círculo com as suas cadeiras e a conversarem para matar o tempo. À meia-noite, a pequena garrafa de vinho que Suzanne trouxe já está vazia. “Fizemos um brinde em homenagem à Rainha”, conta ao Observador.
Mais à frente na fila, Glyn também fez alguns amigos. Um emprestou-lhe umas calças impermeáveis, por já ter “o rabo e os joelhos encharcados” pela chuva. Glyn partilha que, como Patricia, também está ali a representar outra pessoa: “Para além de fazer de Pai Natal e de gerir um cinema ao ar livre no verão, trabalho como cuidador de uma amiga que tem esclerose múltipla. Ela gostou muito da ideia de eu vir e estar aqui em nome dos dois. Vou fazer uma vénia à Rainha por ela.”
O ambiente junto às margens do Tamisa é de confraternização. Um grupo tenta montar uma tenda com a ajuda das lanternas dos telemóveis e de um papel com instruções, à chuva, e acaba por conseguir fazê-lo graças ao auxílio de outros. Um pequeno grupo reúne-se em torno de uma pequenina fogueira improvisada. Outros trocam histórias à luz de duas velas acesas em cima do muro, com vista para Westminster, do outro lado do rio.
Mas à medida que o tempo passa, a hora tardia e o ambiente escuro, com as luzes do Parlamento ao fundo, lembram que todos ali estão por causa de uma morte. Glyn, mais introspetivo do que sociável a esta hora, recorda o último funeral a que foi há alguns meses, de um amigo que morreu de AVC. “Fui um dos que carreguei o caixão e aquele foi o dia mais triste da minha vida desde que a minha mãe morreu. Não consigo deixar de pensar ‘Quem é o próximo?’”
Perante isso, só lhe resta pensar no quão importantes são as últimas homenagens e é por isso que ali está, para no dia seguinte poder entrar no Westminster Hall e despedir-se pessoalmente de Isabel II. “Amanhã é o dia em que tenho a minha audiência com a Rainha. Não vou ser feito cavaleiro, vou simplesmente como sou, mas poderei fazer-lhe uma vénia”, diz. Continua a beber um pouco da solução de água com vitaminas de quando em vez e, confessa, pediu aos vizinhos da fila que lhe guardassem o lugar à hora de jantar para ir beber um copo de whisky com um amigo ali perto. O momento é solene demais para ser passado em branco e a noite promete ser o prenúncio de um dia inesquecível.
“Enquanto eu for vivo não haverá outra Rainha”, acrescenta Glyn, encolhendo os ombros, como quem acha que essa frase explica tudo. “Amanhã vou ter a oportunidade de ver a Rainha. A minha Rainha.”