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Em "A Cultura na vida de todos os dias", Barreto Xavier reúne textos escritos antes e depois de passar pelo Governo PSD / CDS
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Em "A Cultura na vida de todos os dias", Barreto Xavier reúne textos escritos antes e depois de passar pelo Governo PSD / CDS

©Sara Matos / Global Imagens

Em "A Cultura na vida de todos os dias", Barreto Xavier reúne textos escritos antes e depois de passar pelo Governo PSD / CDS

©Sara Matos / Global Imagens

Barreto Xavier: "O próximo ministro da Cultura não vai ter tarefa fácil"

Na primeira vez que fala sobre os anos no governo, Barreto Xavier critica a forma como João Soares destituiu António Lamas do CCB, diz que fez bem em demitir-se e admite que há clientelismo na cultura

Poucos minutos depois de Jorge Barreto Xavier se sentar à mesa com o Observador num restaurante do Porto, esta sexta-feira, o telemóvel do ex-secretário de Estado da Cultura (SEC) toca e alguém do outro lado da linha anuncia a novidade: João Soares acaba de se demitir, na sequência da polémica que ganhou o nome de “bofetadasgate“. A partir daí, as chamadas sucedem-se, com jornalistas de vários meios de comunicação a quererem obter um comentário à demissão do ministro da Cultura que só aguentou quatro meses no cargo. “Perante a situação, creio que o dr. João Soares tomou a atitude adequada”, diz, simplesmente, antes de acrescentar uma certeza: ele, que tutelou a Cultura no Governo de Pedro Passos Coelho entre outubro de 2012 e outubro de 2015, não seria o substituto — o nome de Luís Castro Mendes foi, entretanto, anunciado.

Agora está concentrado em apresentar o seu novo livro, A Cultura na vida de todos os dias (Porto Editora), um conjunto de textos onde expõe as suas ideias sobre a importância da Cultura na construção de uma sociedade mais justa e onde defende, por exemplo, que as fórmulas do liberalismo e do marxismo se encontram esgotadas. É preciso encontrar um novo Humanismo que diminua a desigualdade social que está a aumentar e, para isso, o papel da cultura é central, escreve. Porque só com uma sociedade mais esclarecida se pode construir uma melhor democracia, orientada para o serviço público e sem permeabilidade a clientelismos, que continuam a existir — não nega que lhe tenham chegado propostas menos honestas à secretária durante o mandato.

A obra está dividida em duas partes: textos escritos entre 2004 e 2011 e outros elaborados durante o período em que foi membro do XIX Governo Constitucional, em substituição de Francisco José Viegas. Porque “a forma como se fala das coisas altera-se necessariamente em função da tarefa governativa“, pode ler-se no livro que apresentou esta semana em Lisboa, Coimbra e Porto. Em cima de mais uma substituição, pode dizer-se que a pasta da Cultura em Portugal é tumultuosa. Em 42 anos de democracia, e com apenas três anos de governação, Barreto Xavier consegue ser o terceiro titular com mais tempo à frente da pasta, perdendo só para Pedro Santana Lopes (SEC entre 1990 – 1994) e Manuel Maria Carrilho (ministro entre 1995 – 2000).

Após as eleições legislativas de outubro, Passos Coelho decide criar um Ministério que junta a Cultura à Igualdade e Cidadania e escolhe Teresa Morais para o cargo. “O primeiro-ministro preferiu fazer outra escolha. O que é legítimo“, diz ao Observador, na primeira entrevista em que comenta publicamente a sua passagem pelo Governo PSD/CDS. Afiança continuar a ter uma relação de amizade com o atual líder do PSD. O que o preocupa é ver que o Orçamento da Cultura do Governo de António Costa diminuiu quando comparado com o antecessor de direita, e contra a promessa de “mais oxigénio para a área”, aproveitando para lembrar que o próximo ministro da Cultura “não vai ter tarefa fácil”.

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barreto xavier livro

“O valor económico das atividades culturais não pode ater-se a uma perspetiva mercantilista”, escreve Guilherme d’Oliveira Martins no prefácio.

Defende no livro que “a Cultura não pode ser a última das decisões no âmbito das prioridades de dada comunidade, na política, na economia, na sociedade civil — é um erro que sai muito caro”. Olhando para as prioridades dos sucessivos governos, incluindo aquele que integrou, vemos que a Cultura não vale sequer 1% para o Orçamento do Estado. É um reflexo de que a Cultura continua a vir atrás de quase todas as outras áreas.

Continua. Aliás, o orçamento da Cultura de 2016 é mais uma vez a prova disso porque, se retirarmos a RTP da equação, vemos que ele baixou. Tive de gerir um orçamento muito limitado e disse sempre publicamente que não estava feliz por isso, mas que aceitava a responsabilidade de o fazer nas condições em que o país estava a viver.

Analisou o Orçamento do Governo de António Costa?

Analisei e foi com perplexidade que verifiquei que era contrário àquilo que foi prometido, que era dar mais oportunidades na área da Cultura. Apesar de isso ter sido dito, o que aconteceu foi que, se retirarmos da soma a presença da RTP — que foi integrada na tutela da Cultura –, o Orçamento da Cultura para 2016 é mais pequeno que o de 2015. Há menos cerca de dois milhões de euros. Claro que se pode argumentar: “Ah, mas é muito importante porque agora a Cultura tem a tutela da televisão.” Politicamente, isso tem muito valor.

Mas não vamos esconder o sentido das coisas, a verdade é que a Direção Geral das Artes tem menos dinheiro do que tinha antes, há uma perspetiva de receitas no cinema e audiovisual eventualmente otimista, que é um problema estrutural do Orçamento de 2016, o que pode levar a que o orçamento seja ainda menor do que é agora. O orçamento para os encargos dos gabinetes da Cultura duplicou, o que significa que esse dinheiro, num orçamento que já é mais baixo, tem de ser retirado da atividade cultural. Houve uma transferência de dinheiro a mais para o Centro Cultural de Belém que, se tivesse sido usado nos teatros nacionais ou no Opart, que estão muito necessitados, podia ser relevante. Mas é uma opção. Estou preocupado com o volte-face que se verificou, após a promessa de mais oxigénio para a área.

"Não há Ministério da Cultura porque este Governo seguiu aquilo que foi feito na passagem do XIX para o XX Governo Constitucional. Este Ministério da Cultura não tem estrutura própria."

O próximo ministro não vai ter tarefa fácil. Aliás, no fundo não há Ministério da Cultura porque este Governo seguiu aquilo que foi feito na passagem do XIX para o XX Governo Constitucional: Pedro Passos Coelho decidiu ter uma ministra da Cultura, mas a estrutura departamental responsável pela gestão financeira era da Presidência do Conselho de Ministros. E assim continua agora, pelo que este Ministério da Cultura não tem estrutura própria.

Quais são então os erros nesta área que andamos a pagar caro?

Há que dizer que Portugal é hoje uma sociedade muito melhor do que era em 1974. Não vamos ser miserabilistas e não reconhecer como a democracia portuguesa melhorou as condições de vida em Portugal. Dito isso, de facto na área da Cultura, em todo o período democrático, podia-se ter feito mais e melhor, mesmo num país com limitações financeiras grandes, com níveis de vida relativamente baixos no contexto europeu. Os erros que saem caros dizem respeito à maneira como nós depois no quotidiano tomamos opções. As nossas decisões baseiam-se em perspetivas sobre nós próprios e sobre os outros, na gestão de expectativas, sobre o que queremos, sobre o que achamos que é o mundo.

Com a sociedade digital passou-se para aquilo a que podemos chamar o império da opinião. Por exemplo, alguém põe um post no Facebook sobre um assunto, cria-se um movimento de cascata à volta do post, que cria um fenómeno ao qual podem aderir milhões de pessoas e que, ao fim de cinco dias, morreu. Mas, entretanto, movimentou economia, atitudes, decisões.

Ou então, precisamente por serem movimentos que só duram cinco dias, não movimentam ação suficiente.

Mas são feitos com base na ideia de que as opiniões são todas iguais. Em termos de dignidade humana, de facto são todas iguais. Mas, em termos de valor efetivo, as opiniões não são todas iguais. E esta indistinção que hoje em dia grassa no espaço mediático leva a que grandes empresas, estruturas de modelação de opinião, utilizem as redes para manipular opiniões, atitudes e até mercados.

"Não é com um estado de alma qualquer que eu vou ao Facebook ou mando tweets a dizer que estou irritado ou apaixonado pelo mundo. Nem estou muito preocupado com a presença na rede, porque ela pode tornar-se uma espécie de escravatura."

Fazer face a isso implica mais cultura na vida de todos os dias?

Obviamente! Porque se as pessoas tiverem uma perceção mais sofisticada sobre si próprias e sobre os outros, também tem um exercício crítico superior, o que faz com que as democracias sejam mais fortes.

Escreve que “a forma como se fala das coisas altera-se necessariamente em função da tarefa governativa”. Por isso dividiu o livro em duas partes, antes e depois de ser governante.

Não tem a ver com a substância do que se diz, mas sim com a maneira como se diz. Quando ocupamos um lugar de Governo, há um registo mais oficial, menos informal. Na minha perspetiva, a instituição que representamos passa a ser mais importante do que a pessoa específica. Temos de adequar o que dizemos à nossa posição institucional. Não é uma questão de castração, mas sim da compreensão da posição que se ocupa. Para um empregado de restaurante, por exemplo, não é boa ideia insultar os seus clientes, tal como para um governante não é correto tomar certas atitudes.

A sua página de Facebook, mesmo agora que já não está no Governo, continua a ser muito institucional.

Tem a ver com o registo público, percebe? Eu não sou repentista. Não é com um estado de alma qualquer que eu vou ao Facebook ou mando tweets a dizer que estou irritado ou apaixonado pelo mundo. Nem estou muito preocupado com a presença na rede, porque ela pode tornar-se uma espécie de escravatura. De repente podemos estar a trabalhar para um abstrato, umas pessoas que de vez em quando nos leem, e eu sinceramente prefiro fazer as coisas que me interessam do que estar a fazer parte desse movimento muitas vezes pouco consequente.

Esse movimento acaba de levar a uma demissão, a de João Soares.

Precisamente. Eu desvalorizo muito porque acho que, às vezes, até revelam o pior das pessoas. De vez em quando via comentários, não necessariamente a meu respeito, cujo nível era de uma baixeza extraordinária. É bom no sentido da liberdade de expressão, mas também é doloroso quando se percebe o que vai no espírito das pessoas, que é amargura, por vezes quase ódio, crítica fácil que só serve para mandar abaixo. Um dia qualquer fui ver uma informação que dizia respeito a uma coisa que eu tinha feito e estava lá um comentário que dizia: “Pois, e esta atitude só acontece porque o Jorge Barreto Xavier trabalhou na Câmara de Sintra” [risos]. Achei extraordinário porque eu nunca lá trabalhei. Provavelmente a seguir deve ter havido uma sequência de insultos por causa da minha ligação à Câmara de Sintra. Esta falta de seriedade no espaço online, que tantas vezes acontece, não é necessariamente uma coisa boa. Acho que as pessoas ainda não encontraram o seu registo no espaço digital. É uma dinâmica que está na sua infância e muita gente comporta-se de maneira infantil.

Os membros do XIX Governo tinham alguma indicação de como usar as redes sociais? Havia um código de conduta?

Eu pessoalmente nunca tive indicação nenhuma a esse nível. Optei sempre pela sobriedade que creio ser essencial ao exercício da tarefa governativa.

João Soares tomou a atitude certa ao demitir-se?

Perante o que foi dito, creio que o Dr. João Soares tomou a atitude adequada. Acho que não teria condições para continuar.

Quando Passos Coelho anunciou os nomes do XX Governo, em outubro do ano passado, o seu nome não estava lá. Porquê?

Porque o primeiro-ministro preferiu fazer outra escolha. O que é legítimo.

Aguentou três anos com um orçamento risível e integrado num Governo muito contestado. Sentiu-se injustiçado?

Vejamos, essas são situações de organização política, do foro da constituição dos Governos, e que eu considero absolutamente respeitáveis. Vai-me desculpar mas eu não tenho interesse em expressar-me sobre aquilo que é a minha relação institucional e pessoal com o então primeiro-ministro, com quem continuo a manter não só uma relação de respeito, como de amizade.

No Porto, o livro foi apresentado pelo presidente Rui Moreira e pelo sociólogo João Teixeira Lopes, do Bloco de Esquerda. © Filipa Brito / CMP

© Filipa Brito / CMP

Sobre o livro que agora lança: para quem se dirige? Académicos, agentes culturais, futuros governantes?

Este livro quer ser um contributo para a academia mas, essencialmente, eu gostava que fosse um conjunto de argumentos em defesa da importância da cultura para os agentes culturais e para a população em geral. A minha defesa essencial é que o mundo contemporâneo, no modo como se pensa a política e a economia, se esgotou, assim como as fórmulas e receitas do liberalismo e do marxismo. Continuam a ser relevantes no contexto da explicação das sociedades mas, manifestamente, estão ultrapassadas como fórmulas que resolvam as necessidades e as expectativas do presente. Por isso, tal como ao longo dos séculos fomos capazes de conceber conceitos como o Estado, parlamento, fronteira ou propriedade, às vezes esquecemo-nos de que tudo isto são construções culturais e, como tal, é possível destruí-las e fazer novas construções. Com isto não estou a dizer que quero destruir o parlamentarismo ou o Estado, mas sim que tudo o que é construído culturalmente pode ser alterado. É que, perante os desafios do presente, as soluções que tínhamos já não chegam.

É a ideia principal do livro, a construção de um novo Humanismo?

Eu disse isto no meu lançamento em Lisboa: temos de acabar com a ideia de que o crescimento económico é a base de orientação do exercício governativo e ter outro paradigma, o do desenvolvimento humano. Durante décadas houve a ideia associada à prosperidade de que é possível crescer sempre economicamente. Isso cria um problema sério em termos de sustentabilidade, nomeadamente se a economia for baseada em matéria-prima, em transação de bens e serviços.

A partir dos anos 1980, a desregulação muito acentuada dos mercados financeiros fez com que a dinâmica da economia fosse ultrapassada pela dinâmica dos mercados financeiros, que hoje valem mais de 90% daquilo que é o referencial de ativos em circulação. E isto são construções de mercado financeiro, tão sofisticadas quanto fantasiosas, que condicionam a vida de toda a Humanidade neste momento. Uma quebra como a que houve no subprime nos Estados Unidos, em 2008, destruiu a vida de milhões de pessoas. Curiosamente, para esses vícios privados os pagamentos são públicos e em todo o Ocidente quem pagou os custos do desastre provocado por uma série de entidades privadas foi o erário público.

Portugal incluído.

Sim, e é inaceitável. O padrão do crescimento económico que nas últimas décadas ficou muito associado ao crescimento financeiro tem de ser ultrapassado por uma lógica e um modelo de desenvolvimento humano, que não passa por ter x horas de trabalho ou x ordenado. Já não vivemos no século XIX, já passámos por várias revoluções industriais e, neste momento, pelo menos um quinto da população europeia, apesar de estar ativa, não trabalha. Estou a falar de idosos com 65, 70 anos, que estão em plena atividade física e intelectual, de milhões de desempregados que há na Europa, e dos jovens entre os 15 e os 20 e tantos anos, estamos a falar de uma parte muito significativa da população que não pode ser meramente referenciada como estando a orientar-se para o mercado de trabalho, estar no mercado de trabalho ou estar fora dele. Esse paradigma, que é útil tanto para a interpretação marxista como para a interpretação liberal da História, estão ultrapassados.

Como é que se garante um estatuto de Humanidade a esta parte da população?

O papel da cultura, tanto em termos de possibilidade de ter um papel de criação como de fruição da cultura, são, ou podem ser, parte de um modelo mais virado para as pessoas, ao invés de uma questão adjetiva ao lado de se ter uma casa, um salário e saúde. Deu-se a ideia de que primeiro temos de comer e depois filosofar. Isto é errado. Temos de filosofar ao mesmo tempo que comemos, senão comemos o que os outros nos dão a comer sem ter capacidade para escolher.

"Quando os decisores não têm noção de que o seu lugar é de serviço público, podem sempre encontrar forma de, sob a máscara de uma decisão tomada com toda a justiça e legalidade, criar situações de favorecimento."

Se vivemos numa sociedade dominada pela economia, onde aquilo que não é trabalho, produtividade, é lazer ou passatempo, e enquanto esse novo Humanismo não chega, como pode uma atividade cultural escapar da etiqueta “passatempo” ou “bem de mercado”?

Acho que essa questão é central. Quando hoje falamos de cultura, habitualmente falamos do apoio do Estado, ou dos comportamentos de visita a exposições e espetáculos, que são parte daquilo que é a participação cultural. Há que ter a consciência de que todo o exercício humano é cultural. As pessoas são muito mais do que isso, e os reducionismos a que temos sido levados e que têm condicionado o nosso modo de vida, colocando o exercício do individual e do coletivo nas horas de fim de semana, nas horas depois do trabalho ou nas férias, esse tipo de organização tem de mudar. E para isso é preciso uma nova linguagem, com novos conceitos, novos modelos de organização pessoal e social que não são baseados na lógica de mercado ou de organização do trabalho. Não tenho respostas, mas é importante questionar, desconstruir clichés.

Defende que há projetos culturais que precisam de ser financiados pelo Estado, na ausência de um mecenato que verdadeiramente funcione em Portugal. Mas, para esses casos, argumenta que a relação deve ser “contratualizada” para além do “mero ato de formalização da atribuição” de um subsídio. Em que moldes, concretamente?

A ideia de subsídio está muitas vezes associada à concessão de um apoio do Estado, o que, por sua vez, muitas vezes se associa à ideia de favor, ou dependência. Como se o Estado, majestaticamente, concedesse à pessoa ou à organização x o seu apoio. Acho que é fundamental desconstruir essa perspetiva. A melhor noção para a relação entre o Estado e os agentes que apoia na área da Cultura é a de um contrato, que implica direitos e deveres de ambos os lados. Quando o Estado atribui um montante, tem o direito a ver um resultado do lado de quem recebe o apoio, e quem o recebe tem o dever de concretizar uma atividade em função do que solicitou, mas o Estado também tem o dever de ser transparente e dedicado numa ótica de serviço público.

E esse contrato elimina da equação o gosto pessoal do governante em funções ou o clientelismo na hora de se decidir um apoio?

A única coisa que, em essência, pode evitar esse risco, é quem exerce o poder ter consciência de que ninguém tem o direito de se apropriar para fins particulares do dinheiro que é de todos, e a análise crítica e consciente dos cidadãos em geral. Quando os decisores não têm noção de que o seu lugar é de serviço público, podem sempre encontrar forma de, sob a máscara de uma decisão tomada com toda a justiça e legalidade, criar situações de favorecimento. E isso dificilmente é detetável em termos legais. É uma questão de cultura democrática e nós não temos uma sociedade suficientemente crítica. A população em geral pode estar insatisfeita com um certo Governo ou decisão governamental, mas a maior parte das vezes não existe uma análise mais fina do exercício governativo. Eu no meu site tenho um registo público do trabalho feito e acho que isso devia ser obrigatório, para permitir a análise. E, que eu saiba, ninguém olhou criticamente para o documento.

Teve propostas de clientelismo?

Há sempre quem procure, por uma razão ou outra, obter ilegitimamente uma posição. Não sou nada permeável a isso. Em Portugal devíamos ter um registo dos lobbies, porque há lobbies em todas as sociedades e ajudava-nos que fossem mais transparentes, seja a maçonaria, o Opus Dei, grupos económicos, de comunicação social e por aí fora.

"Política de terra queimada continua a acontecer. Há um bocado o vício de quem chega a certos lugares de, mesmo antes de prestar atenção ao que foi feito, dizer que quer fazer de maneira diferente. (...) não é adequado dizer-se que certas coisas não são as melhores e não ter uma alternativa para apresentar."

As políticas públicas de cultura em Portugal não têm a estabilidade que deveriam ter?

Só pode ser uma ironia que, em 42 anos de democracia, eu tenha sido o terceiro titular da pasta com mais tempo no cargo.

Para além desse fator, refere no livro que é comum os responsáveis políticos “fazerem política de terra queimada”. Isto é, desaproveitarem o bom trabalho feito sem avaliarem os custos e benefícios. Escreve que “o poder é tomado, por vezes, como uma propriedade pessoal”.

Eu não quebrei nada do que vinha de trás, acrescentei para a frente. Não me viu substituir ninguém a meio de mandato. Elísio Summavielle era diretor do Património Cultural (DGPC) quando eu tomei posse, apresentou-me a demissão e eu aceitei, mas não fui eu que lhe pedi para sair e foi caso único. Mas a política de terra queimada continua a acontecer. Há um bocado o vício de quem chega a certos lugares de, mesmo antes de prestar atenção ao que foi feito, dizer que quer fazer de maneira diferente, às vezes estragando investimentos e projetos bem feitos que vinham do passado.

A decisão do Governo PS de suspender o projeto para a gestão conjunta dos equipamentos do eixo Belém-Ajuda, que ajudou a impulsionar, é um exemplo disso?

Não vou comentar nenhum caso específico. Falo com o à-vontade de não ter feito isso enquanto fui responsável pela Cultura no Governo.

Decidiu deixar o projeto para o eixo Belém-Ajuda para consulta pública mesmo sabendo que, se um novo Governo que não o PSD/CDS entrasse em funções, tudo poderia ser suspenso, como acabou por acontecer.

Mas isso é uma questão de vivência em regime democrático. O Governo ao qual eu pertenci considerou que o eixo Belém-Ajuda precisava de um raciocínio de gestão integrada. O que pode estar em causa é o modelo dessa gestão, porque creio que as estruturas não põem em causa que é necessário encontrar uma solução para a zona monumental com mais visitantes do país. Uma coisa é ter opiniões diferentes sobre as propostas apresentadas, outra é dizer que é um disparate [João Soares, em fevereiro deste ano]. Isso não é uma boa ajuda a uma discussão séria dos problemas. A nível do exercício governativo, julgo que não é adequado dizer-se que certas coisas não são as melhores e não ter uma alternativa para apresentar.

Espero que, independentemente do que agora o Governo em funções acha, que não deixe de agir para resolver a situação, sendo que não vamos esquecer o documento que foi deixado para consulta pública, Se aquela proposta não era adequada, e ela era tão gravemente desadequada que levou a uma forma nunca antes exercida de substituição no CCB no início de mandato de um presidente, tenho expectativa de ver qual é a alternativa viável a ser estudada para o eixo.

"Creio que as coisas poderiam ter corrido melhor no que respeita à articulação entre o CCB e a Câmara [de Lisboa]. Mas não se pode, por causa disso, dizer que o projeto é bom ou é mau. E muito menos se pode passar para uma situação de fulanização em que não se respeita o estatuto institucional das organizações e se põe em causa a respeitabilidade de altos quadros da administração (...) como é o caso de António Lamas."

O argumento apresentado foi que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) não teve a participação que deveria ter tido. Na altura não se apercebeu desta situação?

O que foi dito foi que a CML não tinha sido ouvida. E isso não é verdade. Questão diferente é saber se a CML teve a participação que deveria. Eu falei com o Dr. Fernando Medina e, de facto, havia diferenças numa série de matérias. Eu percebo que a Câmara possa querer ter uma participação ativa naquilo que possa ser o futuro da área Belém-Ajuda, sendo que nela existem vários equipamentos que são geridos diretamente pela administração central, o espaço público é que é gerido pela Câmara.

Creio que as coisas poderiam ter corrido melhor no que respeita à articulação entre o CCB e a Câmara. Mas não se pode, por causa disso, dizer que o projeto é bom ou é mau. E muito menos se pode passar para uma situação de fulanização em que não se respeita o estatuto institucional das organizações e se põe em causa a respeitabilidade de altos quadros da administração que, ao longo da sua vida profissional, sempre honraram o Estado português, como é o caso de António Lamas. O Governo ao qual pertenci decidiu não aprovar o plano porque não seria adequado, por respeito às diferenças com a CML, e dado o momento em que ele foi recebido ser já muito próximo das eleições legislativas,

O mesmo Governo fez outras aprovações às portas das eleições.

Eu só posso falar da área da minha tutela direta. Creio que está a falar de outras situações na área dos transportes. As pessoas às vezes esquecem-se que esses são processos que demoraram anos, ao contrário da situação do eixo Belém-Ajuda, que tinha poucos meses de trabalho por cima. Basta fazer o histórico das situações da TAP e outras no contexto da área dos transportes. É fácil dizer que foram feitas à última da hora, mas não. Foram feitas na sequência de procedimentos que demoraram vários anos.

Sobre o fim das entradas gratuitas nos museus aos domingos, "é sempre possível fazer mais", reconhece. "Mas temos de ponderar as diferenças entre aquilo que é o desejável. " © Global Imagens

© Gonçalo Delgado / Global Imagens

Sobre a Lei do Mecenato, que alterou no seu mandato, resume-a no livro como “uma forma de o Estado se financiar na área da cultura” por ter ido para ele a maior parte dos fundos obtidos” das empresas para financiamento cultural. O que é que está a falhar?

O Estado induziu de alguma maneira as empresas, nomeadamente as empresas públicas, a encaminhar o seu mecenato para apoiar projetos do Estado. Aconteceu isso durante décadas. E não haja dúvida de que as grandes empresas saíam beneficiadas em termos da fórmula matemática de isenção fiscal, que era mais favorável, como também porque…

Era mais favorável apoiar um projeto do Estado do que um particular?

Creio que haveria ali uma equação que permitia uma majoração mais significativa. Ao nível administrativo, sem dúvida, porque não implicava pedidos de apoio mecenático, por exemplo. O XIX Governo fez alterações à Lei do Mecenato, melhorou os benefícios, simplificou e criou novas formas de mecenato. Mas ainda há muito a fazer para melhorar os incentivos fiscais.

Até 2014, as entradas nos equipamentos da DGPC eram gratuitas aos domingos de manhã, permitindo a democratização no acesso à Cultura que defende. Se é precisamente às camadas mais desfavorecidas da sociedade que ela tem mais dificuldade em chegar, uma manhã gratuita por mês é suficiente?

Se olhar para o quadro das isenções que há nas visitas aos museus verificará que as isenções são muito alargadas. Os desempregados não pagam, crianças até 12 anos e estudantes em visitas de estudo também não, e assim sucessivamente. Com estas isenções, muita gente pode visitar gratuitamente em qualquer dia da semana. Ouça, é sempre possível fazer mais. Mas temos de ponderar as diferenças entre aquilo que é o desejável e aquilo que é o possível para garantir a sustentabilidade dos museus. Por isso se teve de aumentar o preço dos bilhetes, e apesar disso aumentou o número de visitas.

Mas ao defender no seu livro a existência de uma política inclusiva, a importância da cultura na vida de todos os dias para que se construa uma sociedade mais esclarecida, e reconhecendo que as desigualdades sociais têm aumentado, ter apenas um domingo gratuito por mês num país com salários tão baixos não é remar contra esses objetivos?

Há uma questão mais crítica do que essa, que é a presença da cultura no contexto do sistema educativo e pela qual luto há várias décadas. Por exemplo, como SEC criei, junto com o ministro da Educação, a Estratégia Nacional para a Educação e Cultura, na perspetiva de que o nervo da melhoria do paradigma da presença da cultura na sociedade portuguesa passa pelo sistema escolar, envolvendo os estudantes e as famílias. Se desde o pré-escolar até ao ensino superior não houver cultura na vida de todos os dias, isso não vai ser interiorizado. Não é depois por se criarem visitas gratuitas a museus que as pessoas vão. No último inquérito feito pelo Eurostat sobre as razões de frequência a espaços culturais na União Europeia, em todo os países a maior parte dos inquiridos dizia que o motivo principal por que não participava em atividades culturais era por falta de interesse.

Mas as pessoas que têm interesse podem ver-se afastadas por motivos económicos. E a decisão do Governo central pode servir de exemplo a outras instituições, como Serralves, que recentemente também reduziu as entradas gratuitas ao primeiro domingo do mês.

Não vou comentar a alteração de políticas de acesso em Serralves porque não conheço bem o que se passou. Há mais limitações mas continua a haver um espaço mensal para essas visitas gratuitas. Que implicam a organização do calendário das famílias, tal como nos organizamos para ir às compras ou para ir ver um filme.

"Podia ter tido uma melhor imprensa se trabalhasse mais isso."

Ao ler o que determinadas personalidades da sociedade defendem para o país nas suas áreas, e olhando depois para o que conseguem pôr em prática, fica quase sempre uma sensação de desilusão nas pessoas. A minha questão é: chegando ao mais alto cargo de uma determinada área, onde se podem aplicar as ideias, porque é que tantas ficam pelo caminho?

Esse não é o meu caso. Pode ver isso no meu livro, pelo que eu dizia antes e o que continuei a dizer durante o mandato, e pelo que eu fiz. Gostava de ter feito mais mas não estou nada desiludido. Claro que os constrangimentos são sempre muitos, governar é muito difícil, e às vezes não tem sequer a ver com o dinheiro disponível. Há questões normativas, ponderação de interesses e valores macro, prioridades… São opções que não são fáceis. A questão depois é saber se se assume a coragem de fazer ou se se trabalha meramente para uma agenda. Eu nunca trabalhei para os media, mas sim para o serviço público.

Isso trouxe-lhe consequências negativas?

Podia ter tido uma melhor imprensa se trabalhasse mais isso. Mas eu não trabalhava para a imprensa, trabalhava para os portugueses. Isso nem sempre é avaliado pelos próprios da melhor maneira e as pessoas na maior parte das vezes avaliam as coisas por aquilo que a comunicação social diz.

A experiência de governar mudou-o de alguma forma?

Sim… Não me deixou indiferente. Foi muito exigente, em condições difíceis. Tornou-me, se quiser, mais contido na maneira como falo das coisas. Foi muito cansativo, física e emocionalmente. Ao mesmo tempo, foi viciante. Nos filmes não há espaços mortos, mesmo o silêncio é um espaço construído dentro da narrativa. No contexto de exercício governativo também não há espaços mortos e isso é viciante, no sentido em que provoca uma adrenalina constante. Ainda há pouco tempo alguém me perguntava se eu estava mais descansado agora que saí do Governo. E eu disse que não, porque não gosto de descansar [risos]. Tenho menos pressão, mas não estou exatamente mais descansado.

O que está a fazer agora?

Estou a trabalhar na minha tese de doutoramento, voltei à casa onde estava e dou aulas no ISCTE, estou a preparar lá um novo programa chamado “Programa Cultura Desenvolvimento Sociedade” e estou a preparar outros livros.

Livros também relacionados com esta área?

Não necessariamente. Estou a trabalhar neles ainda. Também faço fotografia… São coisas que vamos ver.

Se o voltarem a convidar para fazer parte de um Governo, o que responde?

Isso são cenários que eu sinceramente não me coloco a mim próprio, porque dependem de contextos, de momentos concretos da vida do país, de quem os propõe, das condições em que os propõe, da situação em que a pessoa está quando recebe o convite. Em abstrato não faz sentido eu responder.

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