Em 1969, “Blowin’ in the Wind” – que o mundo classifica há décadas, e contra a opinião do próprio, como a canção-bandeira de Bob Dylan – ouviu-se por toda a Nova Zelândia, por causa de um jogo de rugby. O rugby, como qualquer outro desporto, pode ser apenas um desporto, mas, como todos os desportos, pode ser uma questão de vida. Não de morte, mas do que aceitamos como admissível na nossa vida.
A federação da Nova Zelândia e a da África do Sul haviam acordado realizar no ano seguinte um jogo, com uma particularidade: os jogadores seriam apenas brancos. Até 1967, os próprios neo-zelandeses só usavam brancos, mas desde 1967 haviam começado a incluir maoris, aos quais era atribuído o estatuto de “Branco Honorário”.
Mas os sul-africanos continuavam a não permitir não-brancos nas suas fileiras, forçando outras federações a excluir outros tons de pele das suas seleções, se queriam jogar com ela; a federação neo-zelandesa cedeu – e a reação dos ativistas de direitos humanos neo-zelandezes foi criar o movimento HART, Halt All Racist Tours, que levava a cabo protestos pacíficos que consistiam, nesses anos em que ainda não existiam redes sociais para se protestar no sofá, em cantar canções.
A principal das quais era “Blowin’ in the Wind”, que por essa altura tinha sete anos (desde que fora escrita) e seis de exposição pública, desde que fora lançada como single e, posteriormente, no álbum The Freewheelin’ Bob Dylan. Mas já não era uma canção de Dylan: havia sido adotada por praticamente todos os movimentos civis de todos os países em que se lutava por igualdade independentemente da cor e do sexo. A certo momento, os ativistas neo-zelandezes cantaram:
“And how many times must a man turn his head
pretending he just doesn’t see”
[“Blowin’ in the Wind” e Bob Dylan ao vivo na televisão americana em 1963:]
Não estariam provavelmente a pensar na exata mesma questão que espoletara as palavras de Dylan, mas sim no problema racial do seu país.
“Blowin’ in the Wind” tornara-se uma canção sem autor, sem dono, sem cor, apátrida, espelho de todas as injustiças que cada indivíduo sentia. Mas o próprio Bob Dylan deixara de ser Bob Dylan, ou pelo menos o rapaz magrinho, vestido como um caseiro de quinta arruinada de cuja boca brotavam apenas palavras sábias e nobres sobre problemas sociais.
Em 1969, Dylan já abandonara a vida pública após um acidente de mota (a 29 de julho de 1966) e começara uma revolução sonora, unindo folk, rock e tudo a que pudesse deitar a mão, que foi tão importante para a arte quanto as suas palavras o foram para a luta dos direitos civis: em 1965 lançara Highway 61 Revisited, iniciando a dita revolução (que provocaram as primeiras manifestações anti-Dylan), depois veio o extraordinário Blonde on Blonde (1966), e em 1969 andava a fazer canções country (em Nashville Skyline, um disco até hoje subvalorizado).
Pelo meio compôs dezenas de canções a meias com a The Band, que só veriam a luz do dia em 1975, aquando da edição das Basement Tapes, e fez digressões elétricas, compostas por canções cínicas, que chatearam todos os apaniguados da folk de boas intenções que marcou os seus primeiros anos.
2021 tem semelhanças com 1969, mas é pouco provável que os protestantes pelo mundo fora (por questões raciais ou de género) se sentem pacificamente a cantar “Blowin’ in the Wind”, uma canção que Dylan deve ter tocado ao vivo umas dez vezes desde essa época. As gerações mudam e encontram outras bandeiras – o que certamente deixará contente Dylan, que aos 80 anos (feitos esta segunda-feira, 24 de maio) há muito que procura existir apenas na forma das canções que edita e dos concertos que dá.
Dylan, por estes dias, é um espectro, a voz que avisa da tempestade que aí vem – uma espécie de profeta que paira sobre nós, avisando-nos da chegada do apocalipse, julgando-nos e perdoando-nos, tarefa que vem refinando desde Time Out of Mind, álbum de 1997 que marcou o seu regresso aos discos, criado após uma pneumonia que o ia matando. Na extraordinária “I Contain Multitudes”, de Rough and Rowdy Ways (o seu último disco de originais, de 2020), ouvimo-lo enumerar tudo aquilo que é:
“I’m just like Anne Frank, like Indiana Jones
And them British bad boys, The Rolling Stones
I go right to the edge, I go right to the end
I go right where all things lost are made good again
I sing the songs of experience like William Blake”
[“I Contain Multitudes”:]
Fica claro que quem fala já não é um homem preocupado com a sua presença nas tabelas de vendas, mas alguém que já olha para a existência do ponto de vista de um contabilista encarregado de fazer o balanço final a uma empresa que entrou em insolvência; inesperadamente, “I Contain Multitudes” é uma canção de uma esperança imensa, que nos dá a entender que um homem é muitos homens ao longo da sua vida, tão definido pelo que realmente fez como por aquilo que sonhou, com que se identificou, aquilo que transportou secretamente dentro de si.
Uma a uma as velas vão-se apagando – e o que fica dessa cera? Durante muitos anos havia um dito que se repetia, o de que o século XX era o século de Dylan. Era um exagero, claro, um século não pertence a ninguém, mas não andaremos longe da verdade se dissermos que ninguém definiu tão bem o início da segunda metade do século XX (aquele período entre o pós-Guerra e o fim da Guerra Fria) como Dylan.
Primeiro, ele era o rapaz mal enjorcado que se tornou a voz do movimento dos direitos civis – mas era, também, o rapaz que mentia nas entrevistas acerca da sua idade e da sua proveniência, fazendo de conta que vinha do Mississipi, que crescera entre negros, a ouvir os blues, quando na realidade era um filho de classe média que vinha de uma daquelas terras do Midwest que começavam a decair à medida que os empregos (na mineração) começavam a escassear.
Depois, tornou-se no hipster revolucionário que fundiu a folk com guitarras elétricas e uma forma de escrita até então não vista – como leitor compulsivo que era, Dylan começou por ler tudo aquilo a que conseguia pôr as mãos, nomeadamente os poetas beat, depois os poetas malditos franceses (Rimbaud, Baudelaire), os modernistas (T.S. Elliott, principalmente) e mais tarde, os clássicos (Virgílio, Horácio).
Mais tarde, veio a fase de cristão-convertido (Slow Train Coming, de 1979, e Saved, de 1980), que na altura foi pessimamente recebida mas hoje é vista com outros olhos, em particular à medida que Dylan foi lançando os vários tomos da sua Bootleg Series, em que edita versões diferentes das originais, versões ao vivo e canções nunca editadas. E aí fica bem claro que muitas vezes Dylan tomou as piores opções ao editar, que deixou as melhores canções de fora, ou que as canções só precisavam de ir para a estrada com um coro gospel para se tornarem no que em disco não chagaram a ser. Acima de tudo, fica claro que Dylan nunca é só aquilo que parece ser, que há sempre outro Dylan, que uma canção nem sequer é essa canção, tem outra versão, com outras palavras, outros instrumentos, outro ritmo, outro Dylan.
O resto dos anos 80 foi trágico para Dylan, pelo menos até Oh Mercy, e muito à conta da produção 80s dos seus discos. Dizer que não é certo quem seria Dylan por esses dias é um eufemismo – não há nenhum período da vida de Dylan que seja claro para qualquer biógrafo: sabemos que foi casado com Sara Lownds em novembro de 1965 e que o casamento terá durado 12 anos; tiveram quatro filhos e o final foi trágico, com Dylan a dormir com várias mulheres e a namoriscar à frente da então mulher com todo o par de saias que lhe surgia à frente durante a “Rolling Thunder Revue” (uma espécie de super-digressão com todos os músicos que se quisessem juntar).
Sara é a musa de “Sara”, extraordinária canção de amor gravada em Desire, de 1976; também é ela a visada em “Just like a Woman”, de Blonde on Blonde; para quem se interessa por estes temas, terá sido ela o grande amor da vida de Dylan, que ainda voltou a casar, desta feita com Carolyn Dennis, em 1986. Carolyn era corista na banda ao vivo de Dylan e o casal teve uma filha, divorciando-se em 1992.
[“Just Like a Woman”, ao vivo em 1966:]
Nenhuma destas informações, contudo, foram fornecidas por Dylan, que desde o acidente de mota se tornou uma espécie de recluso que sai apenas para tocar canções. Mesmo em Chronicles, a sua estranha auto-biografia que não obedece a uma cronologia típica, Dylan refere-se sempre a “my wife” ou “my ex-wife”, deixando ao leitor a tarefa de descobrir quem seria essa (ex-)esposa.
Já neste século, um par de textos revelaram que nos anos 80 Dylan caiu e saiu por várias vezes de uma dependência de heroína que é bem visível nas gravações do single “We are the World”, uma canção composta por Quincy Jones para juntar dinheiro para uma qualquer causa que já ninguém se lembra qual foi; os vídeos das gravações revelam um Dylan incapaz de cantar, completamente fora de si.
O que fazer de um arrivista mentiroso que começou por imitar os tiques dos veteranos da folk até criar uma folk só sua, revelando uma mestria inigualável na criação de letras que questionavam a condição humana, da transformação em hipster cínico da revolução da guitarra elétrica, passando pelo homem de família, o namoradeiro compulsivo, o tipo que investiu dinheiro em empresas de armamento, o sujeito que preferia editar as piores canções e guardava as melhores ou alterava-as por completo ao vivo, que fazer deste sujeito secretivo que escondia casamentos, filhos, problemas com drogas e que, a dada altura, quando a idade e a doença se fizeram sentir, começou a citar os clássicos?
Há quem diga que Dylan fez de si, propositadamente, um mito, com o seu secretismo e as suas constantes mudanças temáticas; mas Dylan, ao contrário do cliché que se repete incessantemente sobre ele (que ele nunca esteve aqui), esteve sempre aqui, na forma de música e letra: no dia 11 de setembro de 2001 editou Love and Theft, do qual fazia parte “Lonesome day blues”, em que a dada altura se podia ouvir:
“I’m gonna spare the defeated, boys, I’m gonna speak to the crowd
I’m goin’ to teach peace to the conquered
I’m gonna tame the proud”
E agora comparem com uma tradução em inglês da Eneida, de Virgílio:
“Remember, Roman, these will be your art:
To teach the ways of peace to those you conquer,
To spare defeated peoples, tame the proud”
Bob Dylan esteve sempre aqui, à nossa frente, a brincar às identidades, a pilhar todos os géneros com que cresceu (os blues, a folk, o nascente rock’n’roll), a roubar todos os escritores que leu. Qualquer pessoa que dedique tempo suficiente à sua obra verifica que ele esteve sempre a falar do mesmo, só que de maneira diferente: do amor e da morte, da ganância e da generosidade, da violência dos povos e do sonho da paz, da beleza das canções e da tristeza que não vai embora.
Quando era miúdo, Dylan ficava deitado na cama a ouvir a música que surgia na rádio; para ele aquelas notas, aquelas vozes sem rosto, aqueles nomes acerca do qual nada sabia, eram entidades míticas, como que vindas do além. O século XX pode até ter sido, durante algum tempo, de Dylan; mas com o tempo ele transformou-se no seu próprio rádio, uma entidade mística vinda do além para nos lembrar que estamos só de passagem, já não somos quem éramos e nunca vamos ser mais do que o escasso amor que vivermos enquanto os homens, lá foram, guerreiam.
Feliz aniversário ao homem que nunca existiu mas esteve sempre aqui, o homem que por vezes, demasiadas vezes, foi o mais belo e sábio de todos.