Já na reta final, o autor Bruno Vieira Amaral pensou desistir. Trabalhava na biografia do escritor José Cardoso Pires há quase três anos. “Integrado Marginal” acabaria com 550 pesquisadíssimas páginas. E naquele momento, por causa de um erro informático, acabava de perder cerca de um quinto do texto final. “Devo ter tido uma quebra de tensão. Quase chorei”, conta. O percalço acabou por servir de empurrão. Percebeu que seria apenas “uma boa desculpa” para não acabar um livro que tinha medo de não conseguir acabar. E mergulhou de cabeça.
Numa esplanada vazia da zona pombalina do Barreiro, cidade onde mora, Vieira Amaral explica como a relação com Cardoso Pires se tornou tão obsessiva que chegou a entrar-lhe pelos sonhos. A hora é a do Portugal-Hungria para o Euro 2020 (mas em 2021), e só o grasnar das gaivotas interrompe os relatos futebolísticos em fundo. Copo de tinto e maço de L&M azuis em cima da mesa, o romancista, cronista e agora também biógrafo de 43 anos avança que, depois de abordado pela Contraponto para fazer uma biografia, foi ele quem propôs o nome do desalinhado que não queria ficar na História por ser boémio nem por escrever bem, mas por ter criado livros importantes.
Conhecido também por andar à pera e sobretudo por três títulos – O Delfim, A Balada da Praia dos Cães (ambos adaptados ao cinema) e De Profundis – Valsa Lenta (depois da recuperação milagrosa de um AVC) – o lisboeta revela-se em Integrado Marginal o escritor angustiado e perfeccionista, o resistente que abandona o PCP depois do 25 de Abril e o sedutor libertino. Se no início de tudo isto, Vieira Amaral tinha uma relação casual com Cardoso Pires, hoje acredita que nunca vai conseguir livrar-se dele: “Às vezes enquanto escrevo dou por mim a pensar, ‘Será que ele ia gostar disto?’, ‘Será que ia achar que está bom?’”
A ideia que tinha de José Cardoso Pires mudou muito depois destes três anos de convivência?
Quando se convive três anos com um escritor, através de documentos e conversas com pessoas que o conheceram de forma íntima, fica-se com um conhecimento muito profundo. Tinha algumas ideias que corresponderão à imagem que perdura no nosso imaginário, do escritor boémio, de produção lenta e que publicou pouco, mas ao fim deste período percebi que, como todas as imagens superficiais, esta só contava parte da história. Por exemplo, ele não bebia durante os períodos em que estava a escrever. Era um escritor angustiado. Um pessimista com algumas tendências depressivas até. Isso surpreendeu-me. Não correspondia de todo à imagem quase vital que ele projetava e pela qual era conhecido.
Pelo que se lê na biografia, um descontentamento permanente, um perfeccionismo quase paralisante. Um homem conhecido por ser brigão e que parece ao mesmo tempo tão inseguro. De onde vinha, na sua opinião, essa angústia?
Como em todos os escritores, há um misto de arrogância e de insegurança. “Será que isto é mesmo bom?” “Será que vai perdurar?” Poucos meses antes de lançar O Delfim, ele diz ao [escritor] José Gomes Ferreira que tem medo de aparecer com um livro fraco. Ao mesmo tempo, tenho a certeza de que soube que O Delfim era um livro diferente, que era “o” livro que ele ainda não tinha sido capaz de escrever.
O Delfim sai em 1968. Neste livro conta um episódio em que, muitos anos depois, já é Cardoso Pires um escritor consagrado, e pede ao editor, Nelson de Matos, para ir ter com ele à Costa da Caparica e mostra-lhe tudo o que tinha conseguido produzir naquele dia: três linhas.
Isso não tinha a ver com a experiência; tinha a ver com o escritor que ele era. Mesmo em relação a ter publicado pouco e a escrever de uma forma lenta, ele nunca usou isso como um trunfo, nunca disse, sou melhor porque rescrevo muito.
Pelo contrário, lamenta esse facto – que se torna ainda mais notório a partir da década de 1980, quando surgem as comparações com Lobo Antunes e José Saramago, que produzem de forma impressionante.
Há uma frase que li há pouco tempo sobre o Fellini: “Era um artista de um enorme talento mas com pouco para dizer.” Talvez o Cardoso Pires tivesse pouco para dizer sob a forma de romance. Penso que ele comete um erro ao tentar sempre mais um romance quando, na minha opinião, era um contista extraordinário. Dominava o género de forma primorosa. Desde muito cedo, o que prova que há um lado intuitivo.
Como é que se gere a convivência com uma figura, mesmo que morta, durante três anos?
Torna-se obsessivo. Houve uma altura que sonhava com o Cardoso Pires. Até a minha filha, que tem hoje oito anos, comentava: “É só Cardoso Pires!” Quer-se sempre saber mais. Às vezes já nem é o próprio Cardoso Pires; são os pormenores, como o registo de nascimento do pai ou o nome certo do navio em que ele embarcou em Moçambique com destino ao Paquistão. Encontrar uma coisa nova dá “uma pica” enorme. Quando consultei o arquivo do exército, por exemplo: pensar que aquelas coisas estão ali há 70 anos e o mais provável é que nunca tenham sido consultadas. A opinião deles sobre aquele tipo [“Não é caracterizado por muito desembaraço nem por grandes possibilidades intelectuais. Conseguiu satisfazer”, lê-se].
Foram mesmo três anos à volta desta biografia?
Estamos em Portugal. Apesar de ter recebido apoio a vários níveis, não podia fazê-lo de forma exclusiva durante três anos se quisesse alimentar os meus filhos. Entrevistei cerca de 40 pessoas, excluindo outros contactos mais breves. Tive a grande sorte de encontrar a correspondência com o [jornalista e escritor] Castro Soromenho, que foi sendo digitalizada e enviada por e-mail pelo filho, que vive no Brasil. São 28 cartas onde encontrei muita informação nova. Houve uma colaboração muito aberta da parte da família, incluindo a viúva, Edite Pereira, e as filhas, sobretudo a Ana Cardoso Pires, responsável pelo espólio.
Teve livre-trânsito no acesso ao espólio pessoal?
O espólio está na Biblioteca Nacional mas há coisas que estão só com a família, incluindo alguns documentos da PIDE. Aliás, o arquivo da PIDE sobre o José Cardoso Pires está muito incompleto. Não sei o que lhe aconteceu. Havia por exemplo relatórios muito detalhados feitos pelo amigo dele que era informador e que não estão lá.
Essa é uma história muito impressionante: o principal informador da PIDE em relação à vida do José Cardoso Pires ser o melhor amigo, José Pérez Féria, conhecido por Pépito, que, lê-se na biografia, “segundo a lenda empenhara o sobretudo para financiar a impressão de [o conto de Cardoso Pires], ‘Os Caminheiros’”.
Se não era “o” melhor amigo, era “um” dos melhores amigos. E é impressionante por várias razões. O Cardoso Pires era um extraordinário observador de pessoas. Era muito rápido a tirar a pinta e também a transpor isso para os livros. A forma como retratava as personagens, o ouvido que tinha para a forma de falar. E é incrível como alguém com esta capacidade de observação não vê aquilo que está mesmo à sua frente: durante quase 20 anos, um dos melhores amigos, alguém que frequentava a sua casa, era informador da PIDE. Ele ficou muito abalado, muito ferido. Durante algum tempo não admitia que se mencionasse o nome desse amigo em casa. Sendo que essa dimensão da traição pessoal lhe ensinou coisas não só sobre a natureza humana mas também sobre a natureza do regime, até que ponto é que o regime contaminava tudo.
Em jeito de contextualização: Pérez Féria colaboraria com a oposição, muito próximo do PCP, quando foi apanhado pela PIDE e aceitou tornar-se informador.
A informação que obtive era que seria uma espécie de moço de recados. Colaborava com o Partido Comunista mas não tinha grande relevo. Talvez por isso tenha sido um informador tão eficaz. Passou à PIDE não só informações sobre o Cardoso Pires mas também sobre as pessoas que conviviam com ele.
Cardoso Pires faz parte do PCP antes do 25 de Abril e, ao contrário da maior parte das pessoas, depois da Revolução afasta-se do partido. Porquê?
Porque ele não tinha espírito de funcionário nem espírito partidário. Era verdadeiramente livre. Achava que só se podia fazer oposição eficaz ao regime envolvendo o PC, daí a ligação ao partido.
E uma vez derrubado o regime…
Manteve uma relação de cordialidade com o partido. E o partido, ao contrário do que aconteceu com outros, sempre se referiu a ele com grande respeito.
É formado em História. Já era assim, obsessivo na busca de informação, ou foi por causa do tema?
Sou formado em História mas foi um acaso da minha vida. Ajudou-me nas questões metodológicas e na gestão da importância ou peso das fontes. É diferente estar a ler uma carta que escreveu à Maria Lamas ou ler uma entrevista que deu ao [jornal] “Primeiro de Janeiro”.
Essa relação com a escritora e ativista Maria Lamas é muito curiosa. Quase como se ela fosse uma espécie de guru.
Foi uma coisa que me surpreendeu, o lado confessional das cartas à Maria Lamas. Ele tinha 20 e poucos anos e falava-lhe de tudo, desde as relações amorosas às queixas que tinha em relação ao meio literário. Não encontrei este tipo de questões na correspondência com outras pessoas. Era importante a diferença de idades, em princípio não seria uma potencial amante [Maria Lamas era 32 anos mais velha]. Até sobre a Edite [Pereira, a mulher] ele fala.
Seria para ele uma figura maternal?
É uma leitura possível, muito provavelmente correta. Não quero entrar em “psicanálises”, mas ele tinha uma relação difícil com a mãe. A Maria Lamas era alguém que o compreendia no seu todo, ao passo que a mãe era profundamente religiosa e provinciana. Ele culpava-a por não ter tido uma educação mais livre. Achava que ela dominava o pai. Aí, sim, entrando pela psicanálise, há uma altura [no início do casamento] em que ele “fala grosso” para se impor perante a Edite e penso que será também uma revolta perante o domínio da mãe na esfera familiar. Ao longo da vida, o Cardoso Pires revoltou-se contra uma série de coisas: a classe a que pertencia, que era a pequena-burguesia; os valores dessa classe e os do regime, que coincidiam em parte; e a vida familiar dominada pela mentalidade provinciana. E a mãe representava isso tudo. Sendo que, até ao fim da vida, ele e a irmã sempre cuidaram dela.
De que forma foi Cardoso Pires um “Integrado Marginal”, o título escolhido para a biografia, que por sua vez é uma auto-descrição retirada do livro “Cardoso Pires por Cardoso Pires”?
Ele tem uma revolta que vem de sempre, mesmo contra o meio literário, mas esteve sempre integrado no sistema. Fez parte da direção da Sociedade Portuguesa de Escritores, foi premiado, foi convidado para variadíssimos projetos culturais antes e pós-25 de Abril. Esteve sempre no centro dos acontecimentos.
E de que forma era marginal?
No que escreveu, nunca cedendo, seguindo um caminho que, bom ou mau, era o dele. Nunca entrou em modas. Levou “porrada” da esquerda e da direita. Isso é uma semi-surpresa. Por exemplo, o “Almanaque” [revista criada em 1959 por Figueiredo de Magalhães, dono da Ulisseia, e editada de forma anónima por Cardoso Pires] é o “anti-Avante”.
É um delírio, um parque de diversões.
É uma brincadeira. É partir a loiça toda. E muitos intelectuais de esquerda achavam que os intelectuais deviam pôr a ideologia à frente de tudo. Ele quando chegava ao trabalho, encostava todas essas coisas às boxes e fazia o que queria.
Além do “Almanaque”, fez depois o “&Etc”, suplemento do Jornal do Fundão, e “A Mosca”, que saía com o Diário de Lisboa. Havia sempre um lado de humor.
Um humor muito corrosivo. Não era brincadeira; eram ferroadas. Uma certa forma de olhar para as coisas. Ele conseguia ser cáustico. Aliás, se lermos como deve ser O Delfim, Balada da Praia dos Cães, Alexandra Alpha, está lá. A sátira em O Dinossauro Excelentíssimo. Esse humor existia no convívio, no trato pessoal.
Os livros dele – O Delfim, A Balada da Praia dos Cães – nunca são livros consensuais. À época, são tão atacados como elogiados por todos os lados.
O Delfim é atacado sobretudo pela esquerda. Acusam o Cardoso Pires de ser reacionário e de gostar do protagonista que tinha criado.
Pensa que essas críticas eram apenas literárias ou tinham a ver com o facto de o autor ser um desalinhado
Ele a certa altura tem a noção de que o tipo de postura totalmente antiacadémica talvez estivesse a ter um peso na desvalorização da obra. Era um tipo muito culto, mas que não vestia a farda do intelectual. As pessoas que o criticavam conheciam-no. E por isso é que no caso de O Delfim senti necessidade de, enquanto biógrafo, tirar as luvas de veludo e ir à luta.
Uma dessas críticas é feita pelo também escritor Luiz Pacheco, amigo de há décadas.
É uma crítica que tem muitos pontos interessantes. Não é uma leitura superficial. Mas há ali, se não maldade, uma intenção propositada de confundir certos aspetos. Por exemplo, o facto de ele criticar o uso da primeira pessoa, dizendo que aquele não é o Cardoso Pires. Ora aqui a primeira pessoa é uma construção literária. Sendo o Luiz Pacheco muito inteligente, não acredito que não percebesse que aquilo é um artifício para construir o romance.
De que forma “tirou as luvas”?
Defendi que aquelas críticas estavam erradas. O Delfim é, de facto, um grande livro. O narrador é uma das maiores personagens da obra do Cardoso Pires, se não a maior, e o tal artifício da primeira pessoa é o que lhe permite construir todo o livro naquele tom.
Uma das críticas feitas a propósito de O Delfim é que, tal como o protagonista, Cardoso Pires seria um marialva. O diplomata José Cutileiro, que trabalhou com ele na revista “Almanaque”, contava que na dedicatória que lhe escreveu em A Cartilha do Marialva se lia “Ao Zé Cutileiro, frecheiro do quotidiano marialva”. Mesmo nesta biografia diz, “A Cartilha do Marialva era, à sua maneira, a cartilha do libertino impotente capaz de apontar, por antítese, os defeitos do marialvismo, mas incapaz de lutar pela transformação de uma sociedade por ele dominada.” Afinal, Cardoso Pires era, ou não, um marialva?
A resposta deu-a o Cutileiro: ele era um marialva que queria ser um libertino.
Como assim?
O libertino é um tipo que joga o jogo da sedução e para quem a sedução é um jogo da mais elevada importância. Esse jogo pressupõe a igualdade do homem e da mulher. Nesse sentido, parece-me que era um libertino. Mas também era um homem condicionado pela sociedade.
Como costuma dizer-se: “Era um homem do seu tempo”?
Não quero culpar o tempo pela postura. Por exemplo, na educação das filhas, não era um homem do seu tempo. As filhas foram criadas num ambiente de grande liberdade.
No casamento já era diferente. Ao longo de todo o livro vão sendo referidas várias relações extraconjugais, uma delas “um ardente caso” com a poeta Maria Teresa Horta. A dada altura, uma das filhas fala de ir sair à noite e de se cruzar com o pai e as “namoradas”.
Houve mesmo uma relação, quando ele [em 1970] estava a dar aulas em Inglaterra, que pôs em perigo o casamento. A Edite encostou-o à parede e o libertino teve de pôr o rabo entre as pernas e voltar para casa. No casamento, era um marialva. Aliás, nunca permitiria esse tipo de coisas à Edite. Toda a gente me contou a história do [jornalista] Baptista-Bastos, a quem bateu porque se aproximou da Edite quando ele estava em Inglaterra. O Baptista-Bastos nunca lhe perdoou e depois fez aquela crítica ao De Profundis – Valsa Lenta [lê-se em Integrado Marginal: “Numa crónica em que nunca referiu Cardoso Pires pelo nome, Baptista-Bastos falou em ‘seis patéticas entrevistas, seis!’ e numa ‘majestosa técnica de marketing’ para promover o livro e o autor”.]
Falou com a viúva sobre as infidelidades?
Falámos sobre esse caso de Inglaterra em particular. Ela confirmou que descobriu essa traição e que achou que ele tinha cruzado o limite. Não podia tolerar. No resto, ele tinha uma vida muito livre. A educação das filhas ficou em grande parte a cargo da mulher. Não era um pai totalmente ausente, mas só intervinha quando havia situações que achava da mais elevada importância, como uma vez que a filha Ana foi proibida de usar calças no liceu e ele foi lá falar.
Como é que essa atitude se articula com um livro como Alexandra Alpha, de 1987, protagonizado por uma mulher e sobre uma amizade entre duas mulheres?
Surpreendeu muito as pessoas. Alguém com uma escrita várias vezes considerada “masculina” e “viril” ter aquela capacidade para captar a essência de uma amizade entre duas mulheres.
Não só a escrita, mas os universos de O Delfim e Balada da Praia dos Cães, por exemplo, são muito masculinos.
Aqui a protagonista é uma mulher, mas é uma mulher muito forte, de certa forma incomum para aquela sociedade. É uma mulher que rompe com tudo. Houve quem dissesse que era inspirada numa mulher real mas nunca consegui confirmar. Acredito que seja uma colagem de traços de várias pessoas. É, em parte, um desenvolvimento da Guida de O Anjo Ancorado. Por isso é que acho um erro dizer-se que ele era um marialva. Mesmo na relação com mulheres escritoras, como a Lídia Jorge, não manifestava qualquer tipo de condescendência. Entusiasmava-o que estivessem ao nível dele. Creio que isso também é válido para outras relações que possa ter tido e também no caso do casamento. Ele diz isso numa das cartas à Maria Lamas: a Edite é uma pessoa com uma personalidade forte, muito inteligente, com uma grande sensibilidade. Isso justifica terem ficado juntos todos aqueles anos, até à morte dele.
Esta é uma biografia pesquisadíssima, mas cautelosa, e sobretudo literária. Referiu ter usado “luvas de veludo”. Onde traçou os limites para a interpretação do biógrafo sobre a vida do biografado?
A minha opinião não interessa muito. Exceção feita ao caso de O Delfim em que senti a necessidade de defender o livro de críticas que me pareceram muito injustas. O próprio Saramago, que na altura acusou o Cardoso Pires de certa simpatia pelo protagonista reacionário, penitenciou-se mais tarde. Também não me interessa fazer biografias “de escândalo”. Para mim, biografia é dar ao leitor informação sobre as circunstâncias políticas, sociais, pessoais, eventualmente íntimas, em que aquela pessoa produziu aquilo pelo que é reconhecida, que é o seu trabalho literário. Queria também usar esta biografia para contar a história da época. Inicialmente foi-me proposto biografar outro escritor e uma das razões pelas quais recusei foi essa, não me permitiria contar a história do país.
A penúltima entrada do livro, poucas linhas antes do final, é sobre o Nobel atribuído a José Saramago. Porquê este destaque a um autor que não é o próprio?
Porque é factual. O Nobel é anunciado poucas semanas antes de o Cardoso Pires morrer. E também porque – e aí foi uma opção minha, enquanto biógrafo – uma das linhas de força da história do Cardoso Pires é a comparação com o Saramago. Eles chegam ao início dos anos 1980 com estatutos completamente diferentes: o Cardoso Pires como um dos maiores escritores da segunda metade do século XX e o Saramago como uma figura secundária. A situação começa a mudar com Memorial do Convento, que ainda assim perde em 1982 o Grande Prémio de Novelística da APE [apelidado por Vergílio Ferreira como “El Gordo”, em alusão à lotaria espanhola] para a Balada da Praia dos Cães. Há ali, creio, quase uma ideia de consagração. Só que depois o Saramago ultrapassa o Cardoso Pires, de forma fulgurante, percurso que culmina com o Nobel. Outro episódio referido é o facto de o tradutor para inglês, o Gregory Rabassa, declinar A Balada da Praia dos Cães porque estava comprometido com a tradução de Fado Alexandrino, do Lobo Antunes, outro facto revelador da inversão da hierarquia.
É quase um “rodar a faca”, destacar que um está a morrer e o outro a ganhar o Nobel.
Aconteceu.
Mas alguma vez o próprio Cardoso Pires acalentou essa esperança?
Realisticamente, acho que não.
Numa entrevista, Cardoso Pires refere mesmo que os únicos que poderiam ganhar seriam o Saramago ou o Lobo Antunes.
E ainda diz, com humor, “se calhar ainda atribuem ao Tabucchi” [autor italiano radicado em Portugal].
Um dos receios de Cardoso Pires era ser recordado apenas como o escritor boémio e brigão. Já perto do fim da vida, numa entrevista à escritora Inês Pedrosa, diz: “Só tenho medo é de ficar na História como um fulano que escreve bem.” Parecem duas ideias contraditórias. Na sua opinião, como é que ele fica para a história?
Ele queria ficar para a história como alguém que tinha escrito livros importantes e não apenas alguém que escrevia bem. Todos têm essa preocupação com a posteridade. A diferença é que ele o assumia. Penso que é um autor canónico, ficando fora do cânone. Tem uma obra fundamental para a compreensão dos caminhos que a literatura portuguesa podia ter seguido, embora não tenha grandes herdeiros. Tem esse grande livro que é O Delfim.
É “o” grande livro dele?
Sim. É verdadeiramente original. Ainda mais naquele tempo português, que ele dizia ser um tempo estagnado. O Cardoso Pires tem também a importância de ser o romancista que conseguiu transpor de forma mais conseguida o ambiente social e a atmosfera mental do salazarismo. Se calhar esse também foi o seu limite. Só um livro decorre e apenas em parte depois do 25 de Abril, o Alexandra Alpha. Depois há coisas totalmente esquecidas: é um extraordinário contista. “Os Caminheiros” é um dos maiores contos da nossa literatura. Hoje fala-se nos romances do Cardoso Pires, mas na essência ele era um escritor de narrativas breves, de fôlego curto.
Enquanto biógrafo, dedica 15 linhas dos agradecimentos às pessoas que lhe “dão trabalho”. Essa dificuldade de subsistência dos escritores também é um tema presente na biografia. Enquanto autor, múltiplas vezes premiado, incluindo o Prémio Saramago, ainda é assim tão difícil viver só dos livros em Portugal?
É muito difícil. Mas é uma coisa que a mim não me interessa. Gosto de escrever noutros registos. Gosto da pressão e das possibilidades que a crónica oferece. Esta biografia só é possível porque eu não tenho um trabalho “das nove às cinco”, o que faz com que também precise de outras fontes de rendimento. Fui eu que financiei este livro.
O que quer dizer com isso?
Eu é que o paguei. Subsisto graças às minhas colaborações com a imprensa: Expresso, Observador e GQ. A editora pagou-me um adiantamento razoável, mas que não dava para sobreviver seis meses. Eu queria escrever este livro e aceito as limitações que nós temos num país com um mercado pequeno. Gostava de ter tido mais tempo para investigar, para fazer entrevistas, mas assumo inteiramente o resultado.
Ao longo destes três anos, enquanto escritor, foi encontrando afinidades com o Cardoso Pires escritor?
É inevitável. Quando ele luta por viver da escrita, quando assume sem qualquer pudor querer ser um escritor profissional, que ainda hoje é uma heresia dizer…
Sente isso?
Sinto, claro. É quase que uma heresia, um pecado moral e mortal dizer-se que se é escritor profissional. E o Cardoso Pires estava-se nas tintas. Sempre foi de um rigor absoluto quando estava a escrever e depois fez um lançamento espetacular, uma coisa inédita, de O Delfim, onde até banqueiros estavam.
Chegou mesmo a trabalhar como publicitário para o BCP.
Foi convidado pelo José Dias Silva, amigo de longa data, que começou por ser bancário e foi subindo na carreira. Essa dessacralização da literatura, vista por muitos como uma tarefa reservada aos sacerdotes, aos profetas, que não se sujam com o vil metal, confortou-me. Senti que tinha ali um amigo. Ponho o máximo de seriedade em tudo o que faço. E depois quero vendê-lo. E agora quero que esta biografia venda, e venda muito. Se não vender, fico lixado. Estão aqui três anos da minha vida. Ia lá dizer, como diz o Ronaldo, “me da igual”?
Passados três anos nesta companhia, vai ter saudades do Cardoso Pires?
Acho que nunca me vou livrar dele completamente. Até porque tenho noção que poderei corrigir algumas coisas que aqui estão.
[Há limites para uma biografia? E biografados que sofrem flutuações de prestígio? O programa Pop Up abre o livro a propósito de “Integrado Marginal”, de Bruno Vieira Amaral]
Como o Cardoso Pires fazia?
Não da mesma forma. Ele mudava os textos, muitas vezes para melhor. Mas essa não é uma afinidade. Os meus textos estão acabados. O que está feito, está feito. Aqui corrigirei coisas que seja necessário mudar. Uma coisa curiosa é que às vezes enquanto escrevo dou por mim a pensar “Será que ele ia gostar disto?”, “Será que ia achar que está bom?”, “Estou a ser sério?”. Há duas ou três pessoas em quem penso quando escrevo e a quem às vezes mando textos, como o [escritor] Rentes de Carvalho, e agora ele, que está morto, junta-se a esse grupo.
Ele fez de si um autor mais sério na forma como se empenha na literatura?
Quando se tem um exemplo de seriedade perante um ofício, o pôr-se tudo o que se tem em cada momento, isso inspira-nos. Embora eu aceite talvez com mais tranquilidade as flutuações naturais da crónica. Umas saem melhor, outras pior. Ele ficava muito angustiado. Era doentio nisso. Como alguém disse, era a vírgula mais cara da imprensa.
E em termos de copos e boémia?
A minha onda é mais o casamento burguês que ele tinha. Sou um bicho doméstico. Ainda que no caso dele a boémia também fosse uma fonte de histórias. Se pudermos dividir os escritores em dois grupos, há uns que são muito bons a sintetizar aquilo que vivem e há outros que são muito bons a sintetizar aquilo que observam. Ele não era um escritor confessional; era um observador que depois conseguia transpor isso de forma magistral para os livros.