Nem Netflix, nem HBO, nem Amazon Prime — nenhuma das principais plataformas de streaming atreveu-se a tocar em “O Dissidente”, documentário de Bryan Fogel que desvenda as circunstâncias que envolveram o assassinato do jornalista do The Washington Post, Jamal Khashoggi, quando se dirigiu ao consulado da Arábia Saudita em Istambul, na Turquia, para tratar de documentos que lhe permitissem casar com Hatice Cengiz. A noiva ficou fora do edifício, à espera de Khashoggi, mas este não voltaria a ser visto vivo depois de 2 de outubro de 2018. O que hoje se sabe é que minutos depois de entrar no consulado, Khashoggi foi manietado por um esquadrão saudita que o sufocou até à morte e desmembrou o corpo.
De nada valeu a ovação de pé, quando os créditos de “O Dissidente” começaram a rolar, depois da estreia no Sundance Film Festival, nos Estados Unidos, em 2020. Tão pouco valeu o currículo do realizador, que recebeu o Óscar de Melhor Documentário por “Icarus” (2017) — um filme que começa por ser sobre quão fácil é recorrer ao doping no desporto amador para, depois de uma guinada algo inesperada, ir parar bem no centro de um dos maiores escândalos desportivos de sempre. Muito menos, ao que parece, valeu o facto de já haver uma relação anterior entre o realizador e a Netflix, que comprou os direitos de “Icarus” e tem hoje o filme disponível no seu catálogo.
[o trailer de “O Dissidente”:]
Em conversa por videoconferência, perguntámos a Bryan Fogel o que acha que mudou para que em 2020 as principais distribuidoras não se interessassem por um documentário de um realizador oscarizado sobre um dos eventos mais mediáticos dos últimos anos — e que vai ser exibido em Portugal esta sexta-feira, 17, às 22h, no TVCine. Após a estreia, “O Dissidente” permanecerá no serviço de vídeo on-demand do canal de cabo.
“Nada mudou. A realidade do mundo em que nos encontramos é exatamente a mesma. Isto é apenas um testemunho de onde nos encontramos neste momento enquanto sociedade. Dinheiro, crescimento económico e investimentos tomam sempre prioridade sobre os direitos humanos. Isso, em relação a esta história, foi muito claro”, responde Bryan Fogel, que neste documentário dá voz a Hatice Cengiz, a noiva de Khashoggi, e a Omar Abdulaziz, o jovem dissidente saudita com que o jornalista do The Washington Post estava a trabalhar. A isto, Fogel junta ainda imagens inéditas da investigação e acesso privilegiado à polícia e ao ministério público da Turquia.
No centro do filme estão o próprio Khashoggi, que procurou criar uma sociedade saudita mais aberta e justa, e o príncipe Mohammed bin Salman (MBS), a quem todas as evidências apontam ser o culpado pela execução e desmembramento do dissidente minutos depois de ter entrado no consulado. “Na altura do assassinato de Jamal, em outubro de 2018, eu andava a tentar perceber que filme é que faria depois de ‘Icarus’. Procurava uma história que pudesse dar origem a um filme que tivesse impacto e que tratasse assuntos de que as pessoas deveriam conhecer a um nível mais profundo. Neste assassinato horrível encontrei de imediato o ângulo dos direitos humanos e a possibilidade de criar algo com impacto”, diz Bryan Fogel ao Observador.
Foi passado umas semanas que Fogel soube de Omar Abdulaziz, um estudante saudita e dissidente a viver no Canadá com quem Khashoggi vinha trabalhando. Por isso foi até Toronto para ouvir a sua história e descobrir que a morte de Khashoggi envolveu o uso de software de espionagem (spyware) por parte de um estado tirânico que não olha a meios para silenciar os seus críticos e que não tem problemas em espiar até o telemóvel do homem do mais rico do mundo. Isso mesmo: Jeff Bezos, o dono da Amazon e do The Washington Post, jornal onde Khashoggi escrevia, foi infetado pelo mesmo spyware Pegasus com que Mohammed bin Salman controlava os críticos do regime.
“Comecei muito cedo, logo depois de se saber da morte de Jamal, a procurar acesso às fontes para poder começar a desenvolver o meu trabalho. No mês seguinte já tinha estabelecido uma relação com a noiva de Jamal, Hatice Cengiz, e já tinha contactado o Omar Abdulaziz. Esses primeiros meses foram sobre criar uma relação de confiança com eles e com o governo turco. Só em fevereiro é que decidi que este ia, de facto, ser o meu próximo projeto”, conta.
Quando conheceu Omar e Hatice, o realizador deixou bem claro que não era sua intenção fazer um par de entrevistas e seguir com a sua vida. “Disse-lhes que queria embarcar numa viagem com eles e que se confiassem em mim, que eu faria tudo o que estivesse ao meu alcance para proteger esta história e o legado de Jamal Khashoggi. A confiança veio com o tempo. Com o Omar não foi fácil, demorei muito tempo a conseguir ganhar a sua confiança”, diz Fogel, que só ao fim de cinco ou seis meses de filmagens pôde começar a levar para casa os cartões de memória. “Filmávamos, mas os cartões ficavam sempre com o Omar. Só mais tarde é que mos devolveu, quando percebeu que estávamos lá pelas razões certas e que queríamos contar o lado dele.” O mesmo foi necessário para conquistar a confiança da noiva de Khashoggi.
Para melhor entender as circunstâncias, vamos recuar até junho de 2017. Foi o momento em que, depois de um ataque contra ativistas pelos direitos humanos na Arábia Saudita, Jamal Khashoggi foge para os Estados Unidos e começa a escrever com regularidade no The Washington Post. Entre o fim de 2017 e início de 2018, Kashoggi começa a colaborar com Omar Abdulaziz, exilado político no Canadá, onde chegou em 2009 para estudar. O objetivo de ambos? Lutar pela liberdade de expressão na Arábia Saudita, o que, nesse caso, passava pela criação de centenas de perfis falsos nas redes sociais para combater os milhares de perfis falsos que espalhavam a propaganda do Estado. Para criar esse “exército de abelhas”, como lhe chamavam, Khashoggi doou 5 mil dólares.
Em junho de 2018 o telemóvel de Omar Abdulaziz é infetado com o Pegasus, um spyware comprado pela governo saudita aos israelitas da NSO Group. O envolvimento de Khashoggi deixa de ser segredo, e aos olhos da Arábia Saudita este passa de ser um jornalista crítico ao regime a abraçar a dissidência pura e dura — é agora um inimigo do estado. A 28 de setembro, Khashoggi visita o consulado de Istambul para obter documentos que provem a sua condição de divorciado e que o permitam casar-se com Cengiz. É-lhe dito que teria de voltar a 2 de outubro para levantar a papelada. Disso é informado o governo saudita que, entre 30 de setembro e 2 de outubro, envia para Istambul um esquadrão de 15 homens em aviões oficiais do governo.
A 2 de outubro de 2018, Khashoggi e Cengiz regressam ao consulado saudita de Istambul. Khashoggi entra no edifício às 13h14, enquanto Cengiz aguarda do outro lado da rua. Depois de três horas à espera, dirige-se à entrada do consulado e, quando pergunta por Khashoggi, é-lhe dito que saiu pela porta das traseiras.
Essa seria a narrativa oficial — de que Khashoggi saira pelo próprio pé — até 7 de outubro, quando um conselheiro de Erdogan, presidente da Turquia, diz à imprensa que acredita que Khashoggi terá sido morto dentro do consulado por 15 assassinos sauditas. À medida que os dias passam e a investigação da polícia turca avança, novos dados vão surgindo na imprensa a reforçar essa tese e que apontam para o envolvimento da Arábia Saudita ao mais alto nível. Finalmente, a 20 de outubro, a Arábia Saudita confirma que Khashoggi morreu dentro do consulado, mas que tudo não passou de um acidente, que o esquadrão viajou até Istambul para confrontar o jornalista, mas que a coisas se descontrolaram e que as ordens não eram, de todo, para o matar.
Essa mantém-se a versão oficial do governo saudita mesmo depois de a CIA ter concluído, em novembro de 2018, que foi o príncipe Mohammed bin Salman quem ordenou o assassinato. Entretanto a Turquia já tinha revelado ter gravações áudio de tudo o que aconteceu dentro do consulado, e que partilhou com os governos da Arábia Saudita, dos Estados Unidos, da Alemanha, França e Reino Unido.
Por fim, em junho de 2019, uma investigação das Nações Unidas concluiu que a morte de Khashoggi foi “uma execução extrajudicial pela qual o Reino da Arábia Saudita é responsável” e que Mohammed bin Salman deveria ser investigado. Em dezembro do mesmo ano, 8 dos 11 homens acusados pela morte do jornalista foram considerados culpados, e 5 condenados à morte, tendo o tribunal saudita concluído que o assassinato não fora premeditado.
“Não importa o que a Arábia Saudita diga porque, como o filme demonstra, está tudo muito bem documentado e fundamentado: há provas claras sobre o que aconteceu”, diz Bryan Fogel, para quem Khashoggi estava preocupado por entrar no consulado — “e tinha razões para tal, por isso é que deixou o telemóvel e o computador com a noiva” —, mas não lhe passava pela cabeça que pudesse correr risco de vida.
“Mohammed bin Salman errou porque nunca pensou que fosse apanhado, já que não imaginava que o consulado estivesse sob escuta do governo turco. Eles teriam agido de forma muito diferente se soubessem que estavam a ser ouvidos.”
Quanto às consequências destes atos, foi noticiado esta semana que a rua em frente à embaixada da Arábia Saudita em Washington vai passar a chamar-se Jamal Khashoggi Way, em homenagem ao jornalista assassinado. “Sempre que a Arábia Saudita aparece nas notícias fala-se logo do que aconteceu ao Jamal. As coisas são quase indissociáveis”, diz Bryan Fogel. “Agora, consequências sérias e com impacto, não creio que tenham havido.”