Quase quatro anos após o início das hostilidades no Nordeste de Cabo Delgado, assiste-se à entrada na terceira fase do conflito. Armados sobretudo com catanas e armas de fogo, numa primeira fase o grupo de insurgentes atacava aldeias, destruindo alvos governamentais, incendiando casas, roubando e raptando populações, provocando deslocações forçadas para as vilas sede distritais.
Numa segunda fase, com os equipamentos capturados ao exército moçambicano (incluindo carros de combate) e com o apoio obtido do exterior, o grupo demonstrou capacidade de atacar e até de ocupar vilas sedes distritais, inclusivamente a vila de Palma, epicentro de um dos maiores projetos económicos do continente africano.
A chegada de tropas internacionais representou a entrada numa terceira fase do conflito, em que o Estado moçambicano, com o apoio de forças ruandesas, recupera a iniciativa de combate e reocupa um conjunto de lugares estratégicos, como Awasse e Mocímboa da Praia, respetivas instalações portuárias e aeroporto.
Como a participação das tropas ruandesas mudou o conflito em Cabo Delgado
A entrada das forças ruandesas no terreno constituiu uma lufada de ar fresco em Moçambique, essencialmente em quatro aspectos:
Em primeiro lugar as imagens que circulam nas redes sociais, cuidadosamente selecionadas pelas relações públicas ruandesas, permitem perceber que as forças internacionais trazem moderno equipamento de combate, incluindo carros de assalto e barcos de patrulha. Os relatos no terreno falam de tropas apetrechadas, transmitindo uma imagem de disciplina e organização.
Em segundo lugar pela recuperação da iniciativa de combate. Pela primeira vez em vários anos, os insurgentes são claramente colocados em cheque, recuando no terreno. Em poucas semanas, assistiu-se à recaptura de Awasse (onde se encontrava a subestação de energia responsável pela eletrificação de vários distritos do Norte da província) e da vila de Mocímboa da Praia.
Em terceiro lugar, contrastando com o secretismo e controlo da informação do exército moçambicano, os ruandeses realizam modernas conferências de imprensa, recorrendo a tecnologia eletrónica. As forças armadas do Ruanda antecipam-se na realização dos balanços operativos e os moçambicanos foram-se atualizando a partir do exterior. Jornalistas ruandeses publicam posts nas redes sociais com vídeos e imagens recolhidas no terreno, a quem recorrem os congéneres moçambicanos, sobretudo dos órgãos independentes, com dificuldade de obtenção de acreditação para deslocação ao terreno.
Em quarto lugar, vídeos colocados a circular nas redes sociais expressam um relacionamento franco e descontraído das tropas ruandesas com a população: os primeiros apoiando mulheres locais na moagem tradicional de milho (vulgo pilar); os segundos agradecendo o apoio e a eficácia das tropas estrangeiras, na devolução da segurança à região. Estes vídeos, que não deixam de estar integrados num claro esforço de marketing e de conquista das populações, contrastam com a imagem negativa construída pela gentes locais acerca do comportamento das forças de defesa e segurança moçambicanas, manchada por relatos de excesso de zelo, roubos, detenção de jornalistas, tortura e fuzilamento de suspeitos, situações denunciadas em relatórios nacionais e internacionais, incluindo Universidades Públicas, Human Rights Watch e Amnistia Internacional.
A experiência da guerra de guerrilha em Moçambique
O rápido avanço das forças ruandesas, a relativamente reduzida quantidade de armamento apreendido ou de baixas reportadas, permite admitir a reduzida resistência dos insurgentes às tropas nacionais e ruandesas.
A história militar contemporânea de Moçambique demonstra que operações de grande envergadura contra grupos guerrilheiros — nomeadamente a operação Nó Górdio promovida pelo exército português contra a Frelimo; ou as várias operações conduzidas contra a Renamo – traduziram-se não tanto na confrontação, mas na dispersão territorial dos guerrilheiros em pequenos grupos, misturando-se com a população e abrindo novas frentes de combate.
A operação Nó Górdio constituiu uma operação militar de grande envergadura desencadeada em 1970 pelo exército português contra a Frelimo, e consistia num cerco intensivo do planalto Makonde com o objetivo de ocupar e destruir as suas bases militares (Gungunhana, Moçambique e Nampula). Previamente informada de todo o aparato militar, a estratégia da Frelimo foi de dispersão das suas forças em pequenas unidades, abrindo a frente de Tete, aumentando as dificuldades do exército colonial.
Entre 1979 e 1980 a Frelimo conduziu uma série de operações militares de grande envergadura, particularmente no planalto de Sofala e Manica. As operações traduziram-se na tomada de Casa Banana, na Gorongosa, ou na captura das bases em Sitatonga ou nas montanhas de Mossurize. Os relatos jornalísticos davam conta de elevadas quantidades de material de guerra apreendido e rebeldes detidos. A estratégia dos guerrilheiros da Renamo foi de dispersão por outras províncias do país, nomeadamente pela Zambézia e Nampula até Niassa e Cabo Delgado, atravessando o Save e operando nas províncias de Gaza e de Inhambane.
Possíveis cenários de evolução do conflito no terreno
A história da guerrilha em Moçambique permite antever, nas próximas semanas, os seguintes cenários:
- Recuo dos guerrilheiros para as matas de Mocímboa da Praia e Macomia, espalhando-se em pequenas unidades e encetando emboscadas sobre as forças de defesa e segurança de Moçambique e seus aliados, contando eventualmente com o apoio de população residente na costa, com a qual, frequentemente, se confundem;
- Fuga dos guerrilheiros para Sul e para Oeste, diluindo-se com a população civil nas províncias de Niassa e Nampula, recorrendo às redes constituídas e aos valores acumulados ao longo dos últimos anos, aguardando pelo término da ofensiva internacional;
- Abertura de novas frentes de combate noutras regiões do país, como nas matas de Montepuez, na província do Niassa ou, eventualmente, em Nampula, o que implicaria a criação de células nestes locais e transferência de material bélico.
Uma solução militar para conflitos sociais?
Seja qual for o evoluir da situação, a realidade é que a intervenção militar não resolve as tensões existentes em grande parte do território nacional, que o tornam socialmente sísmico. Fenómenos de exclusão social, de controlo repressivo de exploração de recursos naturais, num cenário em que a agricultura não constitui uma alternativa económica, de coexistência de fenómenos de pobreza extrema com uma emergente sociedade de consumo, de pressão pelo acesso a terras e recursos naturais, agravado pela ausência de espaços de participação e de acesso à justiça, de corrupção e oportunismo generalizado, são geradores de um imenso combustível social, que só precisa de pequenas ignições para desencadear explosões, mais ou menos prolongadas. Esta realidade tende a gerar bases sociais de apoio a grupos violentos, perpetuando a violência no tempo e colocando em risco a unidade nacional.
É neste cenário que muitos analistas se inquietam sobre o futuro, após a partida das forças estrangeiras. A intervenção militar na região, que é necessária com vista a garantir a ordem pública e segurança de pessoas e bens, assim como o regresso das populações aos locais de origem e retorno das actividades económicas, só se torna sustentável no tempo se acompanhada por reformas sociais profundas, que impliquem mais e melhores serviços públicos (sobretudo ao nível da educação, da saúde e do apoio ao desenvolvimento de actividades económicas), mas também empregos e alargamento dos canais de participação social e de acesso à justiça.
Mais recentemente, o ex-Presidente Joaquim Chissano veio admitir em público que certos tipos de terrorismo acabaram através de negociações, defendendo a compreensão das causas da violência armada e esperando o aparecimento de um líder do grupo rebelde que abra uma oportunidade de diálogo, de forma a terminar com a violência armada. O discurso de Chissano rompeu com o discurso dominante governamental, segundo o qual o “inimigo não tem rosto”, “não sabemos o que eles querem”, nem temos como comunicar.
Na verdade, as populações no Norte de Cabo Delgado, nomeadamente antigos vizinhos, líderes religiosos e comunitários, antigos professores e colegas de escola ou de jogos de futebol conhecem amplamente os indivíduos em questão. Os respetivos percursos biográficos estão publicados em textos jornalísticos e relatórios de pesquisa e são do conhecimento do Estado.
Zimwe mu mbunda n'amasasu Ingabo z'u Rwanda zifatanyije n’iza Mozambique bambuye imitwe y'iterabwoba imaze iminsi yarayogoje Intara ya Cabo Delgado.
Nyinshi muri izi mbunda zafatiwe ahitwa Awasse, Mumu na Nchinda mu mpera z'ukwezi gushize mu rugamba rukomeye rwabereye Awasse. pic.twitter.com/bNQ2Idvnvx
— IGIHE (@IGIHE) August 12, 2021
Apesar de não deter uma elaboração teológica sofisticada ou uma ideologia política bem definida, o grupo reclama a prática de um Islão fundamentalista, complementando com um forte discurso propagandístico anti governamental, que consideram responsável pela exclusão social e pela injustiça. Problemas como o desemprego, a pobreza e desigualdades, a corrupção generalizada, a injustiça social ou a exclusão política são considerados consequências da democracia, entendida como um sistema que permite que os ricos se tornem mais ricos à custa dos mais pobres. A solução preconizada para o caos social reside no derrube do Governo e na adesão áquilo que se poderia designar de Sharia (Lei islâmica). Por outro lado preconizam a primazia dos locais no acesso aos recursos naturais e empregos, ao invés dos “kafirs de Maputo”.
Apesar de secretos e sigilosos, são intensos os canais de comunicação entre os machababos e as populações, mas também com representantes do Estado. Altos agentes do Estado participaram activamente no processo de negociação do pagamento de resgates e libertação de prisioneiros estrangeiros. Familiares e amigos são frequentemente contactados pelos machababos e suspeita-se do financiamento de atividades económicas em Pemba, Montepuez ou Nampula, a partir de capital acumulado na insurgência armada.
Existindo interlocutores, um caderno de encargos e canais de comunicação, passam a estar reunidas as condições para processos de diálogo e de comunicação, faltando sobretudo a existência de vontade política para o efeito. Os conceitos de diálogo e de comunicação devem ser entendidos numa perspectiva mais lata, implicando não apenas a negociação do cessar-fogo, a possibilidade de assistência humanitária a populações residentes nas zonas de risco ou de libertação de civis. Acima de tudo, os conceitos devem significar uma ampla reflexão nacional sobre as condições sociais que produzem o radicalismo violento, que se alimenta de ressentimentos sociais de longa duração.
João Feijó é investigador do Observatório do Meio Rural