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Caixa. Como foram decididos os negócios mais ruinosos para o banco do Estado

Versão preliminar da auditoria à Caixa faz a anatomia de como foram decididas as operações que mais perdas geraram. Houve regras não cumpridas e pareceres técnicos ignorados. Mas Berardo não aparece.

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Intervenção do Estado, decisão contrária a recomendações e pareceres técnicos internos sem a devida justificação, aquisição de ativos acima do valor real que levaram ao reconhecimento posterior de perdas, ausência de monitorização, conflitos de interesses, falta de evidência de documentação no suporte à decisão. Estes são alguns dos ingredientes identificados na auditoria independente à gestão da Caixa que resultaram em algumas operações num cocktail explosivo que gerou mais de mil milhões de euros de perdas no banco do Estado e cujas perdas estão concentradas sobretudo nestas 11 operações. 

A auditora EY passou a pente fino vários tipos de operação — concessão de créditos, participações financeiras, decisões estratégicas — realizados em 15 anos de administração da Caixa Geral de Depósitos e identificou os casos mais problemáticos. Praticamente todos eram já conhecidos, sobretudo por causa das perdas que o banco teve de registar no balanço ao longo dos últimos anos, mas agora ficamos a saber como é que foram decididos e se foram cumpridas as regras internas e de controlo do risco e se os pareceres dos serviços foram seguidos.

O relatório da EY, divulgado por iniciativa da ex-deputada e professora universitária Joana Amaral Dias, ainda é preliminar — tem data de dezembro de 2017 — tem várias conclusões pendentes de confirmação e análise e não estabelece uma relação direta entre os processos de tomada de decisões e quem efetivamente decidiu, mas aponta para as responsabilidades dos conselhos de administração, cujos titulares estão identificados (são aliás públicos).

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Ex-políticos, economistas e homens da banca. Quem geriu a Caixa Geral de Depósitos?

Começando pelos créditos. A auditoria destaca os casos em que foram detetadas as seguintes exceções:

  • Operações aprovadas com parecer de análise de risco desfavorável ou condicionado e para as quais não foram encontrados documentos ou justificações para suportar a tomada de risco contra o parecer dos serviços técnicos.
  • Casos em que não foi apresentado um parecer técnico da direção de risco para aquela a operação, sem que exista justificação para tal.
  • Casos onde não foi encontrada evidência de que tenha sido levantada toda a informação necessária para fundamentar a aprovação da operação (por exemplo, estudos de viabilidade e licenças).
  • Casos em que as garantias no contrato não são suficientes para assegurar o rácio de cobertura de 120%, como estava previsto no quadro normativo.

O levantamento indica que o maior número de situações identificadas nestas quatro tipologias, por percentagem, ocorreu entre 2007 e 2012, quando 7% das operações analisadas foram autorizadas contra pareceres de análise de risco desfavoráveis.

Este período abrange as administrações lideradas por Carlos Santos Ferreira e Faria de Oliveira — José de Matos entra como presidente executivo em 2011 — e apanha um período de euforia nos mercados bolsistas com os grandes negócios e as ofertas públicas de aquisição (OPA) da Sonae sobre a PT e do BCP sobre o BPI, mas também a crise financeira de 2008 e o pedido de resgate de Portugal. Também apanha os anos dos dois governos de José Sócrates (2005-2011).

Foram os piores anos da banca em Portugal, com a queda de várias instituições e a concessão de ajudas públicas de muitos milhares de milhões de euros que culminaram com o aumento de capital da Caixa Geral de Depósitos, a operação que esteve na origem da auditoria independente da EY.

Para determinar estas situações, foram recolhidas informações com recurso a listas enviadas a direções e serviços da Caixa e fez-se uso de uma pasta partilhada entre os responsáveis da auditoria e os serviços da Caixa. Este processo gerou dificuldades na obtenção e validação da informação, com dúvidas por parte dos serviços da Caixa e envio de dados duplicados. Os problemas foram mitigados através de reuniões com várias direções e gestores de operações, mas o documento da EY sublinha dificuldades acrescidas para obter informação sobre operações mais antigas, nomeadamente quando estavam dispersas por vários departamentos da Caixa e até agências. Isso é visível na versão preliminar do relatório onde é muitas vezes sinalizado que a informação não está atualizada, que não foi possível ainda recolher dados e confirmações, o que talvez ajude a explicar algumas omissões flagrantes neste documento.

Joe Berardo, um dos grandes devedores de risco, não tem ficha no relatório preliminar

Foram identificados 64 devedores a quem foram concedidos créditos, em cujas operações foram detetadas “exceções face ao normativo e ao enquadramento regulamentar aplicável”. Nem todos estes empréstimos trouxeram perdas para a Caixa, mas nesta amostra 36 operações, ou seja mais de metade, registaram imparidades acima dos 10% em relação à exposição do banco do Estado. Há 18 créditos em que a Caixa teve de reconhecer uma perda superior a 50% do total emprestado e sete em que perdeu todo o dinheiro que emprestou — Investifino, FDO Construções, Jupiter, Always Special, Soil, Fundação Horácio Roque e Fercal.

Estas não são as operações que maiores perdas trouxeram em termos absolutos, tirando o caso da Investifino. O crédito a Manuel Fino faz parte de uma lista de devedores onde os resultados preliminares apontam exceções na concessão de crédito — operações que não cumpriram regras ou normas internas — e que resultaram num risco “elevado ou grave” para a Caixa. Estão aqui identificados sete créditos no valor total de 1.092 milhões de euros, com perdas já registadas superiores a 50% — 53,8%, no final de 2015.

Apesar de a exposição a Joe Berardo representar quase um terço destes valores (e ser o segundo maior devedor desta lista de sete), o documento preliminar tornado público não tem qualquer ficha sobre o processo de aprovação das operações relacionadas com o comendador

Dois desses clientes estão ligados ao comendador Joe Berardo via fundação e pela holding Metalgest e representam, no total, créditos de 320 milhões de euros, com um nível de imparidade próximo dos 50%. Apesar de a exposição a Joe Berardo representar quase um terço destes valores (e ser o segundo maior devedor desta lista de sete), o documento preliminar tornado público não tem qualquer ficha sobre o processo de aprovação das operações relacionadas com o comendador. Isto ao contrário de outros créditos para os quais é reconstituído o caminho que levou à decisão de concessão de crédito e identificados os problemas no processo, apresentação de garantias e eventuais renegociações.

Joe Berardo é um dos maiores devedores da Caixa

LUSA

No relatório preliminar não é avançada qualquer explicação para esta ausência, ainda que, quando comparados com os outros devedores, a situação do empresário Berardo ainda esteja por resolver. A Caixa, tal como outros bancos, tem procurado fazer valer as garantias sobre a sua coleção de arte moderna, mas esta pretensão tem entrado em choque com o acordo que o Estado fez entretanto com o empresário e que inclui direitos sobre as respetivas obras de arte.

Manuel Fino, as guerras do BCP e da Cimpor

A auditoria preliminar da EY inclui um empréstimo de 138,3 milhões de euros à Investifino, holding do empresário Manuel Fino, na lista de operações que resultaram num aumento de exposição da CGD com um risco “elevado ou grave”. E ao contrário da ideia feita de que os empréstimos para compra de ações são do mandato de Santos Ferreira, o primeiro crédito a Manuel Fino foi decidido pela anterior administração. A primeira operação remonta a julho de 2005, numa altura que a administração da Caixa ainda era liderada por Vítor Martins, que foi substituído por Santos Ferreira no mês seguinte. Mas a operação foi aprovada em conselho de administração onde não esteve o então presidente.

O empréstimo foi concedido para a compra de ações da Cimpor, permitindo a Manuel Fino reforçar a sua participação na cimenteira. O financiamento de 180 milhões de euros tinha um prazo máximo de cinco anos, a reembolsar em bullet (de uma só vez) e com possibilidade de reembolso antecipado sem penalidade. O objetivo era Fino passar de 11% para 15% da Cimpor. Foi dada como garantia penhor as ações detidas por Manuel Fino no BCP e na Cimpor, o que à cotação de então garantia uma cobertura de mais de 100% do capital emprestado. Este contrato inicial foi contudo alterado em 2008 — em junho e agosto — data em que são celebrados penhores autónomos (já então na gestão liderada por Faria de Oliveira).

Em julho de 2007, ainda com Santos Ferreira e Armando Vara na administração e em plena guerra de poder no BCP, a Caixa celebrou com a Investifino um contrato promessa para conceder um empréstimo até 180 milhões, em troca de uma garantia penhor das ações que assegurasse rácio de cobertura superior a 120%. Deste contrato resultou uma linha de crédito de 58,4 milhões de euros para financiar a compra de ações do BCP. Manuel Fino era apontado como aliado de Paulo Teixeira Pinto na guerra com Jardim Gonçalves. As condições desta operação foram alteradas três vezes em 2008.

Manuel Fino foi acionista da Cimpor e controlou a Soares da Costa

Artur Machado / Global Imagens

Um ano depois, com a crise financeira a arrasar as cotações no mercado de capitais, e perante as dificuldades sentidas pela Investifino em cumprir as obrigações financeiras, foi assinado em fevereiro de 2009 um novo contrato de reestruturação dos vários acordos entre a Caixa e o empresário e que incluíram os três empréstimos já referidos. Esta operação, realizada com Faria de Oliveira na liderança do banco, resultou na prática de uma execução da garantia sobre metade da participação de Fino na Cimpor que este vendeu à Caixa, tendo usado o encaixe para amortizar antecipadamente uma parte dos empréstimos ao banco público, então no valor total de 306 milhões de euros.

Segundo a auditoria foram amortizados cerca de 100 milhões de euros, dos quais 85 milhões da primeira operação contratada em julho de 2005. Foram definidas condições de pagamento das dívidas remanescentes, de 258,5 milhões de euros, dos quais 95 milhões de euros correspondiam ao primeiro empréstimo.

A EY conclui que houve várias “exceções” ou situação de não cumprimento de regras internas da Caixa. A começar logo no empréstimo inicial, em que os pareceres da direção geral de risco foram dados com base em condições que não foram seguidas pelo conselho de administração que aprovou a proposta, sem ser encontrada justificação. Conclui ainda a auditoria que não foram obtidas garantias reais para cobrir pelo menos 120% dos custos totais do empréstimo, pelo que houve uma insuficiência de capitais, sem justificação. Constata-se ainda que o presidente do conselho de administração, que à data do primeiro empréstimo seria Vítor Martins, não estaria presente na reunião que aprovou a operação, ao contrário do que previam então as normas do banco.

[Sobre o empréstimo a Manuel Fino] houve várias "exceções" ou situação de não cumprimento de regras internas da Caixa. A começar logo no empréstimo inicial, em que os pareceres da direção geral de risco foram dados com base em condições que não foram seguidas pelo conselho de administração que aprovou a proposta, sem ser encontrada justificação

Sobre a reestruturação feita em 2009, a auditoria não encontrou um parecer técnico da direção de risco para os termos da operação e não foram exigidas garantias reais para cobrir o resto pelo menos 120% do empréstimo. Mais uma vez, os colaterais foram insuficientes, sem haver justificação.

Tendo como base o ano de 2015, a EY conclui que o crédito de 138,5 milhões de euros, que ficou após a amortização antecipada em 2009 dos financiamentos analisados, foi quase todo dado como perdido. Foi o resultado da constante desvalorização das ações dadas como garantia e das dificuldades da Investifino em cumprir as condições. Mas a auditoria aponta para a existência de um conjunto de falhas nos procedimentos internos do banco e de decisões de órgãos de decisão que resultaram “num aumento grave da exposição da CGD ao risco”.

O empresário Manuel Fino, que à data destes financiamentos controlava a construtora Soares da Costa, acabou por ter de vender o resto da participação que tinha na Cimpor, cerca de 10%. Estas ações foram vendidas na oferta lançada pela Camargo Correia em 2012, onde a Caixa também vendeu as suas, e o encaixe serviu para pagar a outros bancos, nomeadamente o BCP. Manuel Fino vendeu também a construtora Soares da Costa a um empresário angolano, António Mosquito. A empresa encontra-se em processo de PER há vários anos e tem salários em atraso. A Investifino vendeu ainda a participação que tinha na holding que foi dona da Soares da Costa e que mantinha participações em concessões rodoviárias.

Birchview, mais um negócio de imobiliário de luxo que deu buraco

Em 2007 — na gestão de Santos Ferreira — a Caixa formalizou seis empréstimos de 183 milhões de euros com o grupo de gestão imobiliária Aprirose (cuja designação é agora QDL/Mark Lenher). O objetivo era a compra de ações desta sociedade, liquidação de suprimentos (empréstimos acionistas) e apoio à construção de um empreendimento, através de um financiamento total de 85 milhões de euros a três empresas proprietárias de lotes.

Carlos Santos Ferreira na comissão de inquérito à Caixa em 2017

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Após alterações ao projeto inicial, em abril de 2010 — com a administração liderada por Faria de Oliveira — ficou decidido avançar apenas com um lote Key Lago, na quinta do Lago, no Algarve, a desenvolver pela promotora Birchview. Foi negociada uma redução dos empréstimos concedidos às outras empresas em favor da Birchview, que assegurou um financiamento para construção de 74,5 milhões de euros, para erguer 18 moradias. Ficou ainda acordado o prolongamento por dois anos dos seis financiamentos.

Em julho de 2012, já na gestão presidida por José de Matos, foi aprovada uma reestruturação do financiamento de médio e longo prazo do lote da Birchview, com um aumento da maturidade e do limite de crédito, quando outros empréstimos estavam vencidos. No ano seguinte, uma das acionistas destes projetos pediu insolvência, mas foi feito um aumento de capital por parte de outros acionistas, o que evitou a falência. Em 2014, foi executado um plano de reestruturação que procurou assegurar a conclusão da construção da primeira fase do empreendimento inicial. O licenciamento permitiu valorizar os ativos e houve uma reestruturação dos créditos envolvidos, mantendo-se o promotor e o empreiteiro, e com um novo prazo de pagamento até 2017 e novos financiamentos. Em 2015, foi feita uma alienação de alguns lotes que, apesar do desconto de 30%, permitiu à Caixa receber 38 milhões de euros.

Até 2015, este crédito tinha registado uma imparidade (perda) de 30%. No entanto, e esse dado não consta da auditoria, a promotora Birchview entrou em insolvência em 2017, com o banco do Estado a reclamar a maior dívida, no montante de 278 milhões de euros.

Mesmo sem este desenvolvimento, a auditoria considera que o aumento grave da exposição ao risco nesta operação aconteceu no momento inicial da concessão de crédito — em 2007 — com a tomada em 100% do financiamento sem uma análise por parte da Direção Geral de Risco do banco. O parecer deste órgão foi dado na condição de a Caixa participar em parceria, nomeadamente com o BPI, o que não aconteceu, uma mudança que não teve o parecer da mesma direção, sem ser dada qualquer justificação.

Houve ainda insuficiência de colaterais previstos nas normas internas — o parecer do risco apontava para uma cobertura mínima de 120% mas esta ficou-se pelos 74%. E não foi exigida a apresentação prévia de um estudo de viabilidade sobre o projeto financiado. Ao longo dos anos, a Caixa ainda conseguiu aumentar o valor das garantias e obter até garantias pessoais com aval dos acionistas, mas isso não terá sido suficiente para diminuir de forma considerável o risco, sendo que aqui também é apontado o dedo à crise do setor imobiliário em Portugal, a partir de 2010.

Participação em Vale do Lobo foi de alto risco

Muitos dos problemas da operação anterior encontram-se também no caso Vale do Lobo, com a agravante de que, nesta operação, a Caixa emprestou e aplicou dinheiro como acionista. Esta operação é também destacada por envolver diretamente um administrador da Caixa Geral de Depósitos, Armando Vara, e por ter sido investigada na Operação Marquês, dando origem à acusação de vários envolvidos na transação.

Armando Vara foi um dos ex-gestores ouvidos pela comissão de inquérito à Caixa

MIGUEL A. LOPES/LUSA

A análise da EY remonta a 2006, ano em que foi constituída a sociedade Wolfpart detida pela Caixa que serviu de veículo para comprar 25% de uma outra sociedade, a Resortpart, que esteve envolvida na compra e financiamento à transação do resort Vale do Lobo. O êxito desta operação dependia totalmente do projeto imobiliário, onde a Caixa aparecia também como maior financiador. A combinação destas duas funções travou na prática a capacidade de o banco recuperar o que emprestou, uma vez que era considerada credor subordinado, o que lhe dava menos direitos do que outros bancos. Essa é uma das razões apontadas para o elevado nível de risco da operação.

Em 2007, a sociedade controlada pela Caixa comprou 25% das empresas detentoras das torres do Colombo, uma aquisição que a auditoria questiona por se tratarem de participações significativas e fora do negócio da CGD. Estas aquisições também não têm garantias adicionais e dependem de resultados do negócio imobiliário, sendo qualificados como tomada de risco excessivo.

A auditoria sinaliza o não reembolso do empréstimo concedido via suprimentos à Resortpark, acionista de Vale do Lobo, que devia ter sido feito logo em 2007. Ainda foi equacionado um cenário de dação em 2019, mas só em 2011 é que são reconhecidas imparidades na CGD, ainda e apenas ao nível da participação. As perdas com os suprimentos só foram registadas no ano seguinte.

A entrada na Wolfpart, a acionista de Vale do Lobo foi aprovada no conselho geral de administração. Em 2015, os suprimentos (empréstimos acionistas) concedidos a esta sociedade atingiam os 389 milhões de euros, as imparidades (perdas) acumuladas estavam nos 219 milhões de euros. Esta transação é destacada pela EY como sendo de risco elevado.

A Finpro. Como a administração “ignorou” recomendações da direção de risco

A Finpro foi uma sociedade detida por vários acionistas privados, entre os quais o Horácio e Américo Amorim, onde um dos acionistas era o Fundo de Recapitalização da Segurança Social. A empresa foi declarada insolvente em 2015 numa história que o Observador contou aqui.

Liquidação de empresa de Amorim, Roque e Estado. Bancos lutam em tribunal por 140 milhões

O levantamento feito pela EY sinaliza um financiamento de 200 milhões de euros que resultou de uma emissão de papel comercial lançada em março de 2007. O produto desta emissão seria usado pela Finpro para entrar num consórcio que ia comprar a Thames Water, concessionária de águas britânica. Associada à operação havia uma carta conforto da Finpro SGPS que comprometia esta entidade a atribuir os fundos necessários à participação neste consórcio. Em 2009, o reembolso desta emissão chegou a estar previsto, com o encaixe obtido numa anunciada dispersão em bolsa da Finpro. Mas com a crise financeira e económica, esta oferta de capital foi adiada e houve uma reestruturação.

Sem o IPO (abertura de capital), a Finpro não obteve a necessária liquidez para reembolsar a Caixa, com novos adiamentos do pagamento do valor em falta, associados a uma nova reestruturação. A Finpro entrou em incumprimento em 2014 e foi declarada insolvente em 2015.

A EY conta que a direção geral de risco da Caixa sublinhou a “incerta proveniência de fundos” para o reembolso da dívida, o que implicaria a entrada de capital dos acionistas. Foi lançado um alerta para o elevado envolvimento da Caixa Geral de Depósitos com o grupo, sem a suficiente contra-garantia. Foram também apresentados condicionalismos prévios à aprovação da operação, como a confirmação prévia dos acionistas de que haveria aumento da capital, a manutenção da estrutura acionista, o penhor de depósitos e receitas de vendas de participações, a constituição de garantias reais e as limitações ao nível da dívida do grupo.

Apesar destas condições, a operação foi aprovada pelo conselho de administração em março de 2007 — na gestão de Santos Ferreira — e foi autorizada a substituição da carta conforto por um compromisso dos acionistas de não venderem ou onerarem (hipotecarem) a sua participação. O compromisso de aumentar capital foi substituído por uma ata a deliberar esse reforço de capital.

Quando foi efetuada a primeira reestruturação em 2009, na altura em que foi pedido um prolongamento do prazo de pagamento, a direção de risco refere que não foi proposta qualquer garantia real, o que associado à incerteza quanto à abertura do capital em bolsa e encaixe que essa operação viesse a gerar, suscitou um parecer desfavorável. Não obstante este sinal vermelho, verificou-se um override (este alerta ignorado) por parte da administração que aprovou a proposta sem apresentar justificação. À data, a Caixa era presidida por Faria de Oliveira.

Faria de Oliveira

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Quando o crédito voltou a ser reestruturado, em 2012, foi estendido outra vez o prazo de pagamento por um ano, sem parecer técnico da direção de risco. Quando a empresa foi declarada insolvente, a Caixa reclamava 143 milhões de euros, dos quais 132 milhões estavam relacionados com o crédito analisado na auditoria. A auditoria conclui que neste caso houve constantes alertas da direção de risco, mas a administração “optou por fazer um override” (ignorou) às recomendações e tomou decisões “que se traduziram num aumento grave da exposição da CGD ao risco”.

Artlant. Mais uma ultrapassagem dos pareceres do risco

A auditoria incide também sobre a Artlant, o projeto industrial de uma fábrica em Sines que foi um PIN (projeto de interesse nacional) e que foi totalmente financiado pelo banco do Estado. A contratação do financiamento junto da CGD foi acordada em 2007 — no tempo de Santos Ferreira — e previa a construção de fábrica de PTA (subproduto químico), num investimento total de 380 milhões de euros.

Já em janeiro de 2008 — no primeiro mês da gestão liderada por Faria de Oliveira — estava em marcha um financiamento em regime de projet finance. Meses depois foram avançados créditos para financiar o investimento na construção da unidade. Portugal e o mundo estavam a viver uma recessão que afetou o comércio internacional e a indústria química — havia uma grande pressão política para fazer investimentos e tentar contrariar o ciclo económico. Até ao final de 2010, a Caixa foi concedendo vários financiamentos para assegurar que o investimento era feito, numa altura em que a promotora da Artlant, a La Seda, de Barcelona, enfrentava já grandes dificuldades financeiras.

A auditoria refere vários aditamentos à abertura de crédito entre o final de 2008 e 2010. No contrato global assinado em janeiro de 2010 ficou acordado um montante total de 381 milhões de euros, divididos por quatro tipos de crédito, mas antes deste acordo entrar em vigor ainda foi necessário mais um empréstimo ponte de 95 milhões de euros. Em agosto de 2010, foram assinados documentos complementares que envolviam as receitas da unidade, hipoteca sobre os terrenos e outras garantias. Este acordo Facility Agreement foi aditado oito vezes entre agosto de 2010 e dezembro de 2013 já na administração de José de Matos, com aumentos de linhas de crédito acordados e novas linhas de financiamento.

11 grandes devedores da Caixa: cinco estão em liquidação – e há mais quatro que não pagam

Em 2014, a Artlant entrou em processo especial de revitalização (PER), por insuficiência de meios para relançar atividade de produção. A Caixa reclamava já mais de 500 milhões de euros. Em 2015, o PER foi aprovado com uma reestruturação de dívida. Outra das medidas foi dilatar até 2039 o prazo de um financiamento de 197 milhões de euros. No final de 2015, a EY registava um crédito de 350,8 milhões de euros com uma imparidade reconhecida de 60%. A Artlant foi declarada insolvente em 2017 e as instalações foram alienadas a um grupo tailandês.

Do escrutínio a este processo, a EY diz que na concessão de crédito inicial não foram cumpridos todos os requisitos, tendo sido detetadas situações que não cumpriram os normativos internos do banco. Também neste caso é sinalizado um override (ultrapassagem) por parte do conselho de administração em relação ao parecer desfavorável da direção-geral de risco, sem justificação.

Na concessão de crédito inicial não foram cumpridos todos os requisitos, tendo sido detetadas situações que não cumpriram os normativos internos do banco. Também neste caso é sinalizado um override (ultrapassagem) por parte do conselho de administração em relação ao parecer desfavorável da direção-geral de risco, sem justificação.

Nestas operações não foram fornecidos pareceres do risco para todos os empréstimos, nem exigidas garantias reais para cobertura de 120% do valor. Uma insuficiência de colaterais não justificada. Há ainda desconformidades entre pareceres técnicos e despachos e os contratos de financiamento.

Quem meteu a mão na Caixa Geral de Depósitos?

No que diz respeito à monitorização, é assinalado que nem todas as alterações ou propostas de alteração de contratos foram aprovadas de acordo com as regras e, em alguns casos, não houve análise de risco. Não foram encontradas evidências de que tenham sido emitidos alertas para a degradação das dificuldades financeiras do devedor. Foram detetados incumprimentos nos contratos de reestruturação de crédito que, por sua vez, também sofreram de colaterais insuficientes. A ficha da Artlant destaca um conjunto de falhas nos procedimentos internos e decisões que aumentaram muito o risco, mas também reconhece a existência de fatores externos que resultaram numa difícil situação económica para a empresa.

O capítulo da La Seda, acionista original da Artlant, é retomado nas participações financeiras da Caixa que entrou no capital do grupo catalão em 2006. O objetivo assumido era influenciar a decisão de investir em Portugal, na fábrica da Artlant. O banco do Estado acabou por sair do capital da La Seda com perdas de 53 milhões de euros, mas a EY não conseguiu encontrar evidências da intervenção do Estado na decisão da Caixa se envolver com o grupo onde estavam outros investidores portugueses. A análise preliminar ao processo de decisão revela ainda falta de clarificação e documentos de suporte a algumas operações.

De Espanha nem bons ventos, nem boas contas

O envolvimento em projetos do outro lado da fronteira trouxe vários problemas ao balanço da Caixa, que teve de fazer uma reestruturação da sua operação espanhola, entretanto vendida por imposição da Comissão Europeia. A auditoria também analisa alguns destes negócios.

Comecemos pelo caso Ajalvir. Uma operação de “risco elevado” que partiu de uma “decisão contrária à recomendação do parecer técnico” e que resultou numa “aquisição de um ativo sobrevalorizado”. Resultado final, em números, uma perda de 39,9 milhões de euros.

Em 2006, o Banco Caixa Geral (BCG) — a operação espanhola da CGD — emprestou 54,6 milhões de euros ao grupo madrileno Nozar, para o desenvolvimento de um projeto imobiliário numas parcelas de terreno em Ajalvir, uma localidade a cerca de 30 quilómetros de Madrid. Trata-se da mesma Nozar que entrou nos noticiários em Portugal em 2005 ao anunciar a intenção de investir (juntamente com o Grupo Libertas) entre 200 e 250 milhões de euros no empreendimento Quinta da Trindade, na baía do Seixal.

Só que em 2008, dois anos depois do empréstimo concedido pelo BCG, a Nozar foi apanhada no turbilhão da bolha imobiliária em Espanha e entrou num processo especial de insolvência (equivalente ao Processo Especial de Revitalização em Portugal). Ou seja, não terá resistido ao rebentar da bolha imobiliária em Espanha. Foi nesta altura, conta a auditoria da EY, que o Conselho de Administração da Caixa, “e como forma de resolver o incumprimento do serviço da dívida”, aprovou a compra desses ativos através da entidade Imocaixa. Objetivo? “Otimizar este processo do ponto de vista fiscal”, disseram os responsáveis da Caixa à EY.

Agência do Banco Caixa Geral na Galiza

Na data de aquisição dos ativos pela Caixa, estava em curso uma revisão do Plano Territorial de Ajalvir para alterar as classificação das parcelas de terreno de “rústico” para “urbanizável”. Só que até, pelo menos, 2016 isso nunca aconteceu. A EY considera que, “com base na informação que existia”, o crédito foi aprovado com “um pressuposto bastante otimista”. “Acresce que o valor do empréstimo concedido não cumpriu condição de ser inferior a 70% do valor de avaliação do projeto (que mais uma vez estava efetuada com base no pressuposto de que projeto poderia ser construído)”, adianta a auditoria.

A documentação da altura pedida e fornecida à EY mostra que existiam “indícios” de que a Caixa tinha “motivos para concluir que o valor de venda estaria abaixo do valor de mercado e que, como tal, seria necessário suprimentos adicionais à Imocaixa”. “Como essa alteração não se verificou, a CGD teve de reconhecer uma imparidade no valor de 39,9 milhões de euros” até ao final de dezembro de 2015. Mas este valor quase de certeza que vai subir. Isto porque no início de 2017, foi realizada uma nova avaliação aos ativos, no valor de 4,4 milhões de euros. “Esta avaliação é realizada com o pressuposto de que o Plano Territorial não será alterado, pelo que haverá a necessidade de reforço do valor da imparidade.

Também relacionada com Espanha (e com a sucursal de Paris da CGD), mas muito mais grave para a saúde financeira da Caixa, foi a operação de investimento em dívida pública descrita na auditoria da EY por “Boats Caravelas”.

O documento da consultora não explica todos os contornos da operação, mas ainda assim relata que, em dezembro de 1999, a Caixa decidiu vender obrigações com cupão a taxa fixa (na altura ainda em escudos), detidas pelos bancos do Grupo CGD em Espanha e pela sucursal de Paris, a uma sociedade veículo chamada VEF Boats Caravela. Foi esta sociedade veículo que mais tarde “emitiu obrigações de cupão a taxa variável, que foram tomadas pelo Grupo CGD”, escreve a EY.

De acordo com o Jornal Económico, na sua edição online de segunda-feira, esta operação “em eurobonds emitidos em escudos” teve como objetivo “camuflar perdas no balanço do banco público face aos elevados níveis de dívida pública que se estava a desvalorizar, cujos títulos a Caixa não se conseguia livrar”.

O valor das carteiras alienadas ascendeu, na altura, a cerca de 90 milhões de contos (cerca de 447,1 milhões de euros) numa operação com um prazo de 11 anos. A venda das obrigações à sociedade veículo permitiu anular provisões no valor de 25,6 milhões de euros, mas, anos mais tarde, viria a revelar-se desastrosa. Os novos títulos também desvalorizaram, gerando perdas ainda maiores.

Pior. A EY salienta que a ficha de operação evidencia vários riscos associados, para os quais a consultora não dispõe “de evidências” em como foram analisados. Conclusão: “Houve uma tomada de operação com um risco elevado, sem evidência de análise de suporte nem conhecimento para riscos inerentes”.  Resultado final? “Uma perda de 340 milhões de euros”.

BCP. Como a Caixa perdeu 595 milhões num negócio com intervenção do Estado

Do ponto de vista das participações financeiras, o relatório preliminar da auditoria dá uma especial atenção ao envolvimento da Caixa Geral de Depósitos no capital do BCP. Esta operação teve uma intervenção do Estado acionista e gerou perdas para o banco público de 595 milhões de euros, em resultado da desvalorização das ações do banco privado.

António de Sousa foi presidente da Caixa quando esta se tornou acionista do BCP

JOÃO RELVAS/LUSA

A Caixa entrou no banco então liderado por Jardim Gonçalves em 2000. Foi a consequência de um acordo entre o Governo de António Guterres e o grupo Champalimaud que travou a venda do controlo do então segundo maior grupo financeiro aos espanhóis do Santander. O resultado foi a divisão do grupo Champalimaud por três bancos, com a Caixa a ficar com os ativos no setor dos seguros e a venda do Banco Pinto e Sotto Mayor, então detido pela Mundial Confiança, ao BCP. Só que em vez de pagar em dinheiro, o BCP entregou as suas próprias ações ao banco do Estado que ficou a ser um dos maiores acionistas.  O documento preliminar da EY não detalha de que forma é que essa intervenção do Estado foi feita e se houve instruções do acionista para a Caixa aceitar as ações do BCP em vez de receber dinheiro.

Em 2001, quando a Caixa era dirigida por António de Sousa, o conselho de administração exerceu o direito de subscrever ações num aumento de capital do BCP, elevando o seu investimento para cerca de mil milhões de euros. Uma parte substancial desta participação foi transferida para o banco do Estado ao preço de custo pela Mundial Confiança, gerando as futuras menos-valias que foram sendo reconhecidas ao longo dos anos pela CGD até vender a totalidade da sua posição no BCP, que gerou perdas acumuladas de mais de metade do investimento inicial.

A ficha de análise da auditoria, segundo o relatório preliminar, refere que em 2008 houve uma decisão da administração para aumentar a participação no banco contra um parecer da direção de risco.

A EY sinaliza também um eventual conflito de interesses na passagem do presidente e de dois administradores da Caixa — Santos Ferreira, Armando Vara e Vítor Fernandes — para a administração do BCP no final de 2007.

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