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Entrevista com Carlos Avilez, encenador da peça "Peter e Alice", de John Logan, que conta com o regresso de Lia Gama ao palco do Teatro Experimental de Cascais (TEC), no TEC, 12 de novembro de 2018. JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA
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Através do TEC e da Escola Profissional de Teatro de Cascais apostou em novas formas de fazer teatro em Portugal — o chamado teatro de ensaio — e revelou novos intérpretes ao longo de décadas

Jose Sena Goulao/LUSA

Através do TEC e da Escola Profissional de Teatro de Cascais apostou em novas formas de fazer teatro em Portugal — o chamado teatro de ensaio — e revelou novos intérpretes ao longo de décadas

Jose Sena Goulao/LUSA

Carlos Avilez (1935-2023): o encenador que procurou e experimentou até mudar o teatro

Consagrado como um dos principais nomes do teatro em Portugal, introduziu novas linguagens em cena e foi responsável pela formação de centenas de atores. Morreu com 88 anos.

O ator e encenador Carlos Avilez, fundador do Teatro Experimental de Cascais e responsável por uma escola profissional que formou largas centenas de atores portugueses, morreu esta quarta-feira, aos 88 anos, vítima de paragem cardio-respiratória, em Cascais. Com uma carreira de quase sete décadas, aprendeu teatro com nomes históricos da representação como Amélia Rey Colaço, Palmira Bastos, Ribeirinho ou António Silva. Destacou-se na direção do Teatro Experimental de Cascais (TEC), que fundou em 1965 com um grupo de jovens atores, e que se mantém em atividade, sendo considerado um dos grupos de teatro de maior longevidade a nível mundial.

Carlos Avilez chegou a estar internado este ano, mas nas últimas semanas estava de volta ao teatro, com Eletra, a partir da trilogia Electra e os fantasmas, de Eugene O’Neill. A peça, escrita no início da década de 1930, havia marcado profundamente o encenador, que a viu pela primeira vez no Teatro Nacional D. Maria II, em 1943, com Amélia Rey Colaço, João Villaret, Palmira Bastos e Maria Lalande no elenco. Eletra é a 177.ª produção do Teatro Experimental de Cascais e foi a última encenação de Carlos Avilez. O espetáculo estreou-se a 18 de novembro, na Academia Artes do Estoril, em Cascais, com a jovem atriz Bárbara Branco como protagonista. Tem apresentações marcadas até 17 de dezembro. Ao Observador, fonte do TEC informa que a récita desta quinta-feira foi suspensa. O histórico encenador foi também alvo de um documentário, Carlos Avilez, Ao Cair da Noite, que está neste momento em fase de pós-produção.

De seu nome de batismo Carlos Victor Machado, estreou-se como ator em 1956 no Teatro Nacional D. Maria II e aí participou em mais de uma dezena de peças, incluindo As Bruxas de Salém, de Arthur Miller; Romeu e Julieta, de Shakespeare; e a Trilogia das Barcas de Gil Vicente. Através do TEC e da Escola Profissional de Teatro de Cascais apostou em novas formas de fazer teatro em Portugal — o chamado teatro de ensaio — e revelou novos intérpretes ao longo de décadas. Definia-se como católico, intuitivo, apaixonado pelo teatro e pelos atores. “Tive uma grande sorte na profissão, mas raras vezes tive uma vida fácil. Lutei sempre pelos espetáculos que achei que devia fazer e não por aqueles que me era permitido fazer”, disse numa entrevista à revista Caras em 2016.

Carlos Avilez durante a apresentação do Festival de Teatro de Almada em 2020

Rui Matos

Estreou-se em 1956 depois de escrever a Amélia Rey Colaço

Carlos Avilez nasceu em Lisboa em 1935. Era sobrinho do escritor Alberto Victor Machado e neto de um empresário teatral. Perdeu a mãe à nascença e foi criado pelo avós em Lisboa. Aos 13 anos já trabalhava como paquete na Caixa de Previdência da Cerâmica — local por onde também passou o escritor José Saramago. Estudou no Colégio Militar, mas não seguiu a carreira militar porque desde cedo desejou fazer teatro. Foi locutor na Rádio Graça e participou em grupos amadores de teatro, incluindo as Produções Carlos Gomes e o Teatro Osvaldo Medeiros. Ainda adolescente, passou também pelo Teatro Universitário de Lisboa (ligado à Mocidade Portuguesa, com direção de Fernando Amado).

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Profissionalmente, estreou-se em 1956 através da Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro no Teatro Nacional D. Maria II com a peça Santa Joana, de George Bernard Shaw, sob a direção de Francisco Ribeiro, o Ribeirinho. Foi Avilez quem escreveu a Amélia Rey Colaço a pedir-lhe uma oportunidade de trabalho, episódio que recordou várias vezes em entrevistas. “Escrevi-lhe, ela chamou-me e isso criou uma rutura muito grande com toda a minha família. Achavam que era mais importante ser general que ser encenador”, recordou em 2008 na RTP.

Os quase dez anos que passou no Teatro Nacional D. Maria II descrevia-os como “uma experiência única” que lhe tinha dado “disciplina e profissionalismo”. “Não havia descanso semanal. Se estreávamos uma peça à sexta-feira, à terça começávamos a ensaiar outra. Fui assim habituado e acho que passo isso aos meus alunos. O teatro é uma religião, só se pode fazer por paixão absoluta. O teatro exige. Se nós não damos, o teatro não dá. É uma espécie de religião, um Deus pagão terrível”, contou numa entrevista.

"O teatro é uma religião, só se pode fazer por paixão absoluta. O teatro exige. Se nós não damos, o teatro não dá. É uma espécie de religião, um Deus pagão terrível”.

Na qualidade de encenador, assinou o primeiro espetáculo em 1963: A Castro, de António Ferreira, na Sociedade Guilherme Cossoul, em Lisboa, que lhe valeu fortes críticas pela versão com figurinos modernos e um coro masculino. A polémica tornou-o notado e permitiu-lhe uma viragem na carreira. Abandonou a representação e passou a dedicar-se em exclusivo à encenação, no que teve o conselho de Amélia Rey Colaço.

“Fala diretamente aos novos”

O método de encenação, que envolvia os atores na própria criação e resultava em espetáculos dinâmicos, inventivos e de vanguarda — como só se tinha visto em Portugal no Teatro Moderno de Lisboa, na primeira metade da década de 60 —, granjeou-lhe admiração e prestígio. “Ele dirige-se principalmente à gente nova. E há de encontrar sempre nos retrógrados, nos fiéis do estilo antigo, uma grande resistência passiva e uma crítica de que é maluco, irregular, que não acerta com os textos, as marcações, os personagens. O que é certo é que ele faz. Fala diretamente aos novos, interessa-os, e isso é o que é preciso para criar espectadores novos, que os velhos já estão absolutamente desiludidos”, comentou em 1967 o crítico e jornalista Armando Ferreira. “As peças do Avilez foram sempre muito polémicas, porque rompiam com o teatro que se fazia na época, um bocado convencional”, disse a atriz Lia Gama ao jornal Público em 2005.

Foi então convidado por Orlando Neves a trabalhar no Teatro Experimental do Porto e logo a seguir começou a dirigir o Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC). Ali encenou por exemplo As Bodas de Sangue, de Federico García Lorca, com música de Carlos Paredes.

“Sou encenador, não sou ator. Quando ia para palco, tinha uma grande angústia, com medo de me esquecer. Quando enceno, tenho um enorme prazer. Estar no teatro é ter um enorme prazer, mesmo nas coisas mais trágicas e violentas”, disse na RTP em 2008. “Fui sempre um ator medíocre. O meu grande amor pelo teatro remetia-me a essa posição de mediocridade”, confessou em 1967, num programa que a televisão pública então lhe dedicou. “Todo ele é teatro, intuição, inteligência, com uma vontade de ferro e um talento muito maior do que a sua pessoa”, avaliou a atriz Mirita Casimiro na mesma ocasião.

Diogo Infante (E), Carlos Avilez (C), e António Cordeiro (D), durante a ação de protesto "Apelo pela Cultura", em Lisboa, 6 de abril de 2018. As ações foram promovidas pelo CENA-STE - Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual e dos Músicos, pela Rede - Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea, pela Plateia - Profissionais Artes Cénicas e pelo Manifesto em Defesa da Cultura, na sequência dos resultados dos concursos de apoio às artes da DGArtes. MANUEL DE ALMEIDA /LUSA

Com Diogo Infante e António Cordeiro, durante a ação de protesto "Apelo pela Cultura", em abril de 2018

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Estabeleceu-se em Cascais em 1965 com um grupo de amigos que incluía os atores João Vasco, Zita Duarte, António Rama e Maria do Céu Guerra. Pretendiam apresentar Esopaida, de António José da Silva, mas não tinham palco. Acabaram por encontrar o Teatro Gil Vicente, no centro histórico de Cascais, que à época estava fechado, e aí levaram a cena aquele espetáculo. 13 de novembro de 1965 (ou 17 de novembro, conforme os registos) terá sido a data oficial de início do TEC, então considerada a primeira companhia profissional a trabalhar fora de Lisboa e do Porto.

“A ideia de ir para Cascais também tinha a ver com o facto de os movimentos artísticos na Europa estarem a acontecer fora das grandes cidades, mas na altura foi insólito, porque Cascais era longíssimo”, referiu Carlos Avilez ao jornal Público em 2005. Mirita Casimiro, Ivone Silva, Eunice Muñoz, Lia Gama, Maria do Céu Guerra, Laura Soveral, Fernanda Lapa, Henrique Viana, Canto e Castro, Filipe La Féria, Carlos Paulo, António Feio, Alexandra Lencastre, Rogério Samora, Diogo Infante e José Wallenstein foram alguns dos muitos intérpretes que dirigiu ao longo das décadas.

Documentário sobre Carlos Avilez vai “retratar as múltiplas facetas” do histórico encenador

“Quando vim para Cascais, praticamente não havia teatro”, recordou numa entrevista em 2015. “Viemos ter com o presidente da Junta de Turismo da Costa do Estoril, Serra e Moura. Foi um homem com vistas largas e importantíssimo para todos nós. Foi a primeira instituição que nos apoiou, precisamente porque o Serra e Moura achava que a cultura fazia parte do turismo.”

A peça O Mar, de Miguel Torga, que encenou em 1966, teve uma intervenção plástica de Almada Negreiros. Outros artistas visuais, como Graça Morais, Júlio Resende, António Palolo ou António Relógio também chegaram a colaborar nas produções Carlos Avilez. A repercussão pública dos espetáculos tornou o TEC um alvo da censura do Estado Novo e em 1970 a companhia foi mesmo proibida de se apresentar fora de Cascais, para que não pudesse chegar a um maior número de espectadores.

“Havia dois tipos de censura: primeiro, é censurado o texto. Havia autores que nem pensar nisso: Genet, Brecht. Depois, havia a censura do espetáculo. Na década de 70, eu tinha um espetáculo, A Noite dos Assassinos, que passou na censura de texto, mas foi-me proibido na véspera da estreia. Cortaram metade de uma peça, D. Quixote, no ensaio da censura, que era na véspera. Havia uma censura para os amadores e outra para os profissionais. Deixavam passar mais coisas nos teatros amadores”, contou o encenador em 2012 no âmbito de uma tese académica. A peça do dramaturgo cubano José Triana, que fora proibida pelo Estado Novo, tornou aos palcos este ano, para marcar os 50 anos do 25 de abril.

A escola profissional e a direção dos teatros nacionais

Em 1970 foi convidado a dirigir a componente artística da representação portuguesa na Expo ’70, em Osaka, no Japão, e essa década apresentou diversos espetáculos em digressão por Angola e Moçambique. Como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e do Instituto da Alta Cultura, trabalhou em França com Peter Brook e na Polónia com Jerzy Grotowski. Em 1979, foi nomeado juntamente com Amélia Rey Colaço para a direção da Companhia Nacional de Teatro – Teatro Popular, sediada no Teatro São Luiz, em Lisboa. Nesse mesmo ano, o TEC mudou-se para o Teatro Municipal Mirita Casimiro, no Estoril, onde ainda está sedeado, e tornou-se o centro de uma atividade teatral duradoura e sem precedentes.

Apresentou textos clássicos e modernos de autores como Gil Vicente, Molière, Garrett, Pessoa, Lorca, Mishima, Genet, Brecht, Santareno, Natália Correia ou Alice Vieira. “O TEC desenvolve desde 1965 uma atividade múltipla e variada, sendo uma das companhias de teatro de maior longevidade a nível mundial. Interessados na procura e experimentação, apresentamos uma longa lista de autores clássicos e contemporâneos que permitem um trabalho rico e diversificado”, resume o site oficial a companhia.

Em 1992, Carlos Avilez fundou a Escola Profissional de Teatro de Cascais (EPTC), ao lado de João Vasco e com o apoio da Câmara de Cascais e do então ministro da Educação Roberto Carneiro. A instituição situa-se hoje em Alcabideche e a lista de alunos que por ali passaram e que depois se tornaram atores conhecidos inclui Paulo Rocha, António Pedro Cerdeira, Marco de Almeida, Leonor Seixas, Sara Prata, Fernando Fernandes, Lia Carvalho, José Condessa.

“Continuamos os mesmos loucos de há 50 anos. A idade passa, fica a experiência e o conhecimento, ficam as memórias e a força. Mas a rebeldia continua. Se perdermos a rebeldia, não temos 56 anos de teatro, temos 10 anos, cinco, um ano ou um dia”, disse Carlos Avilez ainda este ano ao site da Câmara Municipal de Cascais.

De regresso à casa que o viu nascer como ator, dirigiu o Teatro Nacional D. Maria II de 1993 a 2000. Na mesma altura dirigiu o Instituto de Artes Cénicas (criado pelo Governo em 1993). A encenação de A Maluquinha de Arroios, no Tivoli e no Teatro Monumental, valeu-lhe em 1966 o prémio de encenação da Casa da Imprensa. A Secretaria de Estado da Cultura atribuiu-lhe a medalha de Mérito Cultural em 1990. Em 1995 foi agraciado com a Ordem do Infante D. Henrique. O Prémio Vida e Obra foi-lhe entregue pela Sociedade Portuguesa de Autores em 2016.

Numa entrevista ao site da Câmara de Cascais, publicada em 2021, disse que a longevidade do TEC se explicava pela atitude de “rebeldia e coragem” que sempre tinha assumido. “Continuamos os mesmos loucos de há 50 anos. A idade passa, fica a experiência e o conhecimento, ficam as memórias e a força. Mas a rebeldia continua. Se perdermos a rebeldia, não temos 56 anos de teatro, temos 10 anos, cinco, um ano ou um dia.”

Homenageado pelo Festival de Teatro de Almada em 2019, aí apresentou O Sonho, de Strindberg, com a participação especial de Ruy de Carvalho. Na ocasião, disse em entrevista à Rádio Renascença: “Acho que o teatro está numa fase muito positiva, porque vejo o teatro cheio de público, vejo muita gente nova. Como sabe, sou diretor de uma escola de teatro e cada vez há mais gente a concorrer. Estou otimista em relação à profissão.”

Carlos Avilez deixa uma enorme herança, não só pela carreira enquanto encenador e ator, como pelo impacto nos múltiplos profissionais que formou, e nos quais deixou impressa a sua enorme paixão pelo ofício. “Ao Carlos Avilez, que sempre foi e sempre será o meu mestre. Sem ele, nada disto seria possível, foi ele quem me deu as ferramentas para estar aqui, esta noite”, afirmou o ator José Condessa em outubro, ao receber um prémio de representação nos Globos de Ouro. Um ano antes, a atriz Bárbara Branco havia feito semelhante homenagem: “este globo é só dele”. “Para sucessivas gerações de atores, que continuou a dirigir e ensinar até à semana passada, foi um mestre e um mentor”, resumiu o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, esta quarta-feira.

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