Há um costume bem irritante nos EUA, o de atribuir o pomposo título de World Series a qualquer campeão. Seja NBA (basquetebol), NHL (hóquei no gelo), MLB (basebol), MLS (futebol, soccer) e NFL (football, futebol americano). É um campeonato nacional, com um ou outro clube canadiano, e eles, toma lá disto, World Series. Come on. Sim, é verdade, a palavra world tem o seu encanto. Se juntarmos champion, uh la la, c’est magnifique. Campeão do mundo, lindo. É música para os nossos ouvidos, não é? Quem a ouve? Só os maiores. Os world series. Como Carlos Queiroz, o único treinador português a sagrar-se campeão mundial – ele até é bicampeão, assim como quem não quer a coisa. Hoje fala-se única e exclusivamente do 30.º aniversário de 1989, por ocasião da vitória sobre a Nigéria por 2-0 em Riade. Pormenor a dar ainda mais brilhantismo: com 36 anos e dois dias de idade, Queiroz é ainda hoje o treinador mais jovem a vencer o Mundial Sub-20.
Hoje, aos 66, é o homem à nossa frente no restaurante do Hotel Vila Galé, em Paços d’Arcos. Tranquilo, ouve a nossa ideia de entrevista, desde o primeiro jogo da fase de apuramento, a 26 de Novembro 1986, em Amiens (França), até à tal final de Riade. Ao todo, dez vitórias, três empates e duas derrotas em 15 jogos. Nesse percurso, 12 jogos sem sofrer um único golo – só RFA, URSS e Arábia Saudita a enganar a malta. Que comece o espectáculo.
Tenho aqui a ficha do primeiro jogo da fase de apuramento, em França. O onze é Baía; Évora, Abel, Tozé e Ricardo; Amaral, Nuno Guia, Hélio, Resende e Pedro Miguel; Paulo Alves. Ainda entram Secretário e Fernando Couto.
Diz-me outra vez a defesa, se faz favor.
Évora, Abel, Tozé e Ricardo.
O Évora era central, do Sporting. O Abel é o Abel Silva. Deve estar trocado, o Abel à direita e o Évora ao meio. Há nomes engraçados. Como esse do Nuno Guia. Um dia, ele fez um golo à Pelé, o da final do Mundial-58. Recebeu um cruzamento do Figo, recebeu com o peito, fez um chapéu ao defesa e mais outro antes de rematar para a baliza. Craque.
O Paulo Alves jogava no Vila Real lá de cima?
Lá de cima, sim. Fui buscá-lo a Trás-os-Montes.
Como assim?
Observação, trabalho. De onde é quem vem o Paulo Madeira, por exemplo?
Nem ideia.
Do Algarve.
A sério?
Sim, vê aí nesses papéis.
Ah pois é, está aqui: do Lusitano Vila Real de Santo António. Ele já jogou no 1-0 à Suíça, para a segunda jornada.
Ah pois é, só depois é que o Paulo foi para o Benfica.
Paulo Alves em Trás-os-Montes, Paulo Madeira em Vila Real de Santo António. Correr o país de uma ponta a outra.
Era o meu trabalho na federação, primeiro como adjunto de José Augusto, depois como seleccionador principal.
Mas era puxado. Quero dizer, anos 80 igual a carros xpto e estradas do arco da velha.
Ahahahahah, nem imaginas. Eu fazia assim: saía de Lisboa de madrugada, às 9 estava em Leiria, ao meio-dia em Coimbra, às três em Aveiro, às 5 na Associação Futebol do Porto e às 9 em Viana do Castelo. Dormia um bocado e, no dia seguinte, às 9 em Chaves, depois Guimarães, Castelo Branco e Faro. Isto era para falar com os responsáveis das associações e conhecer as pessoas e o seu trabalho. Feito esse reconhecimento, sentava-me quieto no meu lugar na federação e ficava a estudar o calendário do fim-de-semana para ver jogadores aqui e ali.
Volto ao início: o tal jogo em França.
Boa, boa, ahahahah. Acaba 0-0. E há aqui um ponto que quero salientar: essa malta da federação francesa ajudou-nos muito. A nós, Portugal. Foram os que mais me deram em matéria de indicações preciosas para o futuro imediato. E foram também eles que disseram, alto e bom som, que o futebol na Europa com mais potencial para ser desenvolvido era o português. Isto em 1984, 1985. Eu tinha imenso interesse em vê-los a trabalhar e ganhei uma certa intimidade. Vai daí, visitei Vichy, onde estava instalado o centro de formação da selecção.
Ainda era adjunto ou já era selecionador?
Ainda era adjunto do José Augusto.
Qual era o seu plano?
Queria entender Vichy. Primeiro o lado dos jogadores, depois o lado dos treinadores. Eles ficaram espantados e perguntaram-me ‘mas queres treinar com os jogadores?’.
E o Carlos?
‘Sim, porque não?’ Lá fui. Ò Rui, nem imaginas. No primeiro dia, acordei com os jogadores e fazia um frio medonho, nevava até dizer chega. Fui treinar naquelas condições, juntamente com os jogadores, e só não desisti por vergonha. Acredita. Epá, um frio danado. Sabes quem lá estava naquele molhe de jogadores?
Quem?
Papin, já então um jogador formidável.
E que tal Vichy?
O conceito de Vichy era brutal. O treino da tarde estendia-se até às sete e pouco, sete e cinco, sete e dez. A cantina fechava às sete e meia. Nem mais nem menos. Às sete e meia, os cozinheiros fechavam a porta e só comias no dia seguinte.
Só?
Porque Vichy era isolado do mundo, não havia sequer uma loja nas redondezas para comprar batatas fritas. Era cá uma violência. Calma, Rui, todos chegaram a tempo à cantina. Nesse dia, pelo menos.
Ufffffff. O nosso grupo inclui França mais RFA e Suíça. Acessível?
Facílimo. Nós estávamos à frente dessas selecções.
No jogo seguinte, 1-0 à Suíça. Jogam Baía; Abel, Paulo Madeira, Tozé e Galrão.
Eischhhh, Galrão. Do Sporting.
Depois, Zarro.
Eischhhh, Zarro. Bem, já nem me lembrava desse nome.
Depois, Hélio, Resende e Pedro Miguel.
Esse Pedro Miguel também era do Sporting: esquerdino, bom jogador.
No ataque, Paulo Alves e Paulo Ribeiro.
Paulo Ribeiro estava para ir ao Mundial de Riade, só que partiu a perna no jogo anterior à partida para a Arábia Saudita. Ele jogava na Alemanha ou na Suíça, já não me lembro bem.
E quem entra para o lugar dele?
Quem substitui o Paulo Ribeiro é o João Pinto.
A sério?
Sério mesmo, puxo-o dos juvenis.
Como é que se informa o jogador nesses tempo?
Por faxe ou telefone, tudo institucionalizado.
Nada de contacto directo?
Nããããããã. Ligávamos ao director do clube e dizíamos de nossa justiça. Quantas vezes, mas quantas, eu ou o Nelo íamos buscar os miúdos ao comboio, ali a Santa Apolónia. Metíamos a malta no carro e siga.
Ahahahah. Além da boleia, comida e dormida?
Sim, às vezes, sim. Uma vez, já estávamos a preparar o Mundial Sub-20 de 1991, fui a Madrid para ver o João. Ele estava a jogar na equipa B e estava a passar um mau bocado. Cheguei lá e pedi para falar com o presidente Jesús Gil y Gil. Encontrámo-nos e um assessor dele apresentou-me como o Carlos Queiroz, um dos melhores treinadores portugueses. O Gil y Gil olha para mim e diz ao assessor ‘se es grande, porqué no esta contratado para entrenar nosotros?’ Só rir.
O que queria dizer ao Gil y Gil?
Disse-lhe de minha justiça, que queria estar com o João. A resposta do Gil y Gil foi imediata: fazes o que quiseres; o João não está bem e precisa de ser acompanhado, fazes o que quiseres. Agradeci, obviamente. Meti-me no carro e fui ver o João à Corunha, num jogo da 2.ª B com o Deportivo. Acabou o jogo e apanhei o João no balneário.
Imagino o espanto do João.
Disse-lhe ‘pega na tua mala e vens comigo no carro.’ O João ‘mas professor e tal e tal’. Acalmei-o e disse-lhe que já tinha falado com o presidente. Trouxe-o para a minha casa, desde a Corunha. Estávamos em Janeiro e disse-lhe, muito abertamente: ‘Se eu não te conhecesse desde os 13 anos, estavas fora da selecção. Porque estaria a ser desonesto se te convocasse. Portanto, tens cinco meses para reentrar na selecção e ir ao Mundial. Como te conheço, vou dar-te esta oportunidade’. E ele trabalhou, fez por merecer e foi o capitão dessa selecção. O grande capitão, diga-se. Ele foi fantástico e agarrou bem a oportunidade.
Se não fosse o JVP a capitão em 1991, quem seria?
Diria Figo.
Já conhecia o João desde os 13 anos?
Siiiiiiiim. Ainda me lembro muito bem da primeira vez que o vi. Era um fenómeno, tão diferente dos demais. Depois, a minha primeira análise numa avaliação mais competitiva foi num torneio de inter-associações, pelo Porto. O João a jogar enormidades e eu sentado ao lado de Jesualdo Ferreira mais o Gaspar Ramos. Há jogadores que não enganam, dizia eu ao Gaspar, enquanto ele estava com algumas dúvidas por causa do físico do João. Que era, de facto, pequenino em relação aos outros. Parecia frágil, mas não era. E tinha um talento. Fora de série, ponto.
O golo é do Resende nesse 1-0 à Suíça, no Jamor.
O Resende era um Platini com o pé esquerdo. A maneira como se movimentava, Platini. A forma como tocava a bola, Platini. Ele era o capitão e só perde a braçadeira porque se lesiona.
Passa a quem?
Tozé. Que levanta a taça de campeão do mundo em Riade. O Tozé já era muito precoce. Com idade júnior e já tão adulto. Além disso, jogava na equipa principal do Leixões, que estava na 1.ª divisão.
Pois, o Tozé é o capitão do jogo seguinte, um 3-3 na RFA.
Eischhhh, esse jogo. Lembro-me como se fosse hoje. Em Düsseldorf, se não me engano.
Isso mesmo.
Estivemos a ganhar 3-0 [aos 23 minutos]. E agora vê bem as coisas: o senhor Cabrita disse à imprensa que a recuperação alemã tinha sido por falta de experiência e falta de cheiro a balneário da minha parte. Porque ninguém se deixa empatar 3-3 depois de estar a ganhar 3-0. Respondi, também pelos jornais, que também é preciso ter outras coisas para estar a ganhar 3-0. Sabes qual é a piada? É que esses são outros tempos, e, neste caso, bons tempos. Como trabalhávamos juntos na federação, ele chegou-se ao pé de mim, estendeu-me a mão e disse-me ‘bem respondido’. Ahahaha. Adorei o cavalheirismo.
Espectáculo.
Mesmo. Outros tempos, outras atitudes. O senhor Cabrita é uma instituição. Qual é a equipa portuguesa em Düsseldorf?
Baía; Abel, Paulo Madeira, Fernando Couto e Morgado; Amaral, Tozé, Valido, Hélio e Paulo Ribeiro; Paulo Alves.
Que equipa, que equipa. Muito boa. Essa Alemanha é a do Berti Vogts, com quem tenho uma história engraçada a respeito do jogo de volta.
Pelo meio, Paulo Alves e Paulo Ribeiro marcam no 2-0 à França.
Certo, basta-nos o empate com a Alemanha para chegar ao Euro Sub-18. E o que faço ? Marco o jogo para o Algarve, com tempo seco e relva seca para poder trocar a bola e dar um bailinho neles.
E então?
Acreditas que, nesse dia, só choveu em Loulé. Vai ver nos jornais. E não choveu de chover, foi uma tromba de água. Um capacete negro em cima de Loulé, nem se podia. Olha, a bola não andava. Esquece, ela ficava ali no meio das poças sem se mexer. Foi assustador, parecia magia negra. Ahahahah. Em cima do minuto 90, há uma confusão qualquer, acho que é um atraso de bola do Fernando Couto para o Vítor Baía e a bola fica presa a meio caminho. Um avançado deles está em nítida vantagem e vai iniciar um contra-ataque do mais perigoso que há. Só que ele não chutou a bola convenientemente e ela ficou outra vez presa. Beeeem, aparece o Fernando Couto a dar uma biqueirada e o jogo acaba assim. Zero-zero, qualificação de Portugal. O senhor Berti Vogts diz então que isto não é para ganhar nada, é só para rodar os jogadores e ganhar mais à frente. Há malta que o ouve e vai na conversa. Ele achava que os estudos eram o mais importante, que o futebol nunca deveria estar à frente.
Uyyyyyyy.
Ora bem, para mim, a seleção não é um prémio, e sim o princípio de uma carreira. Era o que via a acontecer em Itália, em França, na Suécia. Alertei o país para a formação profissional de futebol. Se queres seguir engenharia, arquitetura ou medicina, tens de te formar nessas especialidades. É a mesma coisa para o futebol. Queres ser jogador de futebol, forma-te. Há duas vias a seguir. A interna, em que os jogadores têm de acatar as regras impostas, e a externa.
Como?
Se és um talento no piano ou no ballet, não podes ir à mesma escola dos outros. Se és um talento em futebol, a mesma coisa. Se queremos formar uma elite do futebol, a escola tem de ir ao encontro do jogador e não o contrário. Se os Europeus são em Maio e os exames em Junho, como é que fazemos? Tem de haver uma concertação a todos os níveis. Tive a sorte de encontrar o Mirandela da Costa, director geral dos desportos, e o diálogo institucional passou a ser fácil porque a linguagem e o pensamento eram idênticos. Na altura, era assim: os juniores começavam a treinar às 17h30 e ocupavam o campo todo só durante 45′, porque apareciam os juvenis. Depois os iniciados, a seguir os infantis. Pergunta: a que horas treinam os infantis?
Nem ideia.
Às 19h30. Se a escola começa às oito e acaba às 17 e jogam futebol até às 21, os miúdos chegam a casa às 22 para ainda ir fazer os trabalhos de casa. Isto era o dia a dia, com a conivência e concordância de toda a gente. O que acontecia? Convidava-se à desistência escolar, não havia pais nem filhos que resistissem a esses horários. Com base nessas preocupações, trouxe a escola aos estágios da seleção e fiz força para implementar o estatuto de atleta de alta competição.
Isso permitia o quê?
Que houvesse épocas especiais de exames para quem era reconhecido pelo Estado como atleta de alta competição. Se o exame era em Maio e o jogador estava na seleção, podia-se adiar para Junho, Julho ou Agosto. O mesmo jogador estava 10 dias sem ir à escola por se encontrar em estágio. Quando chegava à escola, pedia aulas extraordinárias, de recuperação, e o liceu era obrigado a dá-las. O melhor disto tudo é ver jogadores com carreira no futebol, nos Barcelonas, nas Fiorentinas e nas Juventus, e haver outros com formação académica, como o Hélio e o Tozé, licenciados em educação física. Ao mesmo tempo, os clubes começaram a investir em departamentos de formação. Isto estende-se também à carreira de treinador: exigência mais rigor igual a crescimento. Foi maravilhoso ver tudo isso a acontecer.
Quando aparece o Estatuto?
Em 1990, e o Brassard é dos primeiros a beneficiar dos exames em época especial. É, aliás, ao abrigo desse estatuto que vou buscar o Agostinho Oliveira, professor de filosofia numa escola em Braga. Ainda me lembro dele como director pedagógico no tempo em que os professores iam ao encontro dos jogadores durante os nossos estágios.
Nesse 0-0 com a RFA em Loulé, aparecem Filipe do Torreense, Paulo Oliveira do Varzim e Pedro Martins do Feirense.
Ainda bem que me dizes isto, porque já mostra jogadores colocados na 2.ª divisão e nós, da selecção, beneficiámos desse estatuto, dessa experiência acumulada de jogar com os adultos. A situação é parecida em 1991. Com o Rui Costa, por exemplo. Lembro-me que ele não queria sair do Benfica, mas falei algumas vezes com ele para insistir num empréstimo de uma época para a 2.ª divisão. No caso do Rui, até foi o Fafe. Ele lá foi e a verdade é que ganhou mais estofo ainda.
Na despedida do apuramento, 2-0 à Suíça com golos de Folha e Amaral. Segue-se a fase final do Europeu, na Checoslováquia. Nos quartos-de-final…
Demos 3-0 à Holanda. Surpreendemos e chegámos ao intervalo a ganhar 2-0 [JVP e penálti de Valido]. Na segunda parte, eles vieram para cima de nós e encostaram-nos. Mesmo assim, fizemos mais um golo [Folha]. Quando acabou, um jornalista português, acho que o Rui Santos, perguntou-me se não tínhamos vacilado após o intervalo. Disse-lhe que não e soltei uma frase que julgava bonita e, só depois, é que me arrependi à grande, ahahahah.
Qual foi?
‘Só não jogámos atrás da baliza porque eles não deixaram’. Curiosamente, anos mais tarde, já como adjunto do Alex Ferguson, em declarações à BBC na ressaca de um Barcelona-United para a Liga dos Campeões, disse o mesmo. E caiu o Carmo e a Trindade, again.
Na meia-final, 2-0 à Espanha.
Mais um jogo sem sofrer golos.
E mais um jogo em que o central Valido marca. De penálti.
Os centrais, por personalidade e carácter, são usualmente bons a marcar penáltis. Costumávamos bater alguns no final dos treinos como forma de descompressão e o Valido era, com base nas nossas estatísticas, um dos mais eficazes marcadores de penáltis.
Para acabar o Europeu, a final com a URSS.
Ahhhhhhhhh. Nesse dia, tenho de dizer que deixámos fugir o resultado. Marcámos primeiro, pelo João Pinto, e eles empataram. Depois formos a prolongamento e sofremos dois golos: 3-1 para eles.
Estamos em Julho 1988 e ainda faltam sete meses para o Mundial de Riade…
Era treinos e mais treinos. Os jogadores vinham à segunda-feira, treinavam à tarde nesse dia e depois terça de manhã antes de seguirem viagem para casa. Quando começa o Mundial, em Fevereiro, tenho de entregar um relatório à FIFA. No short term preparation, escrevo quatro dias. É que foi isso mesmo, juntámo-nos todos quatro dias antes de arrancar para Riade. No long term preparation, 200-e-tal dias. Fomos a selecção com mais tempo, porque antecipámo-nos e trabalhámos gradualmente em conjunto.
Nos números das camisolas, salta à vista o 10 de Paulo Madeira.
Ahahahahah. Foi sorteio puro, ainda não havia feudos nem condados, ahahahahah.
O sorteio foi lá, em Riade?
Foi cá, antes de seguirmos viagem, no aparthotel no Estoril, perto do António Coimbra da Mota. Fiz o sorteio com o Nelo. Num saco, os números das camisolas. No outro, os nomes dos jogadores. E foi tau tau tau tau, tranquilo.
O nosso grupo tem Checoslováquia, Nigéria e Arábia Saudita.
O meu pensamento era este: se somos vice-campeões europeus e o continente europeu é dos mais fortes do mundo, tens de sair de Riade com uma medalha. É obrigatório. Para tal, não podes ter uma trajectória balística; tens é de ser cada vez mais exigente, mais trabalhador e mais tudo para chegar ao nível pretendido. Temos de pensar como campeão todos os dias e aumentar a fasquia das nossas próprias exigências e capacidades. O que temos de fazer? Temos de treinar todos os dias, porque um dia sem treino é um dia desperdiçado e há outras selecções a trabalhar. A nossa ideia era pedir mais treinos, mais bolas etc etc e etc. Sempre mais, mais e mais.
Chegámos a Riade a 13 Fevereiro, quatro dias antes da estreia com a Checoslováquia.
Nós chegámos ao mesmo tempo de outras selecções, porque a FIFA organizava viagens em conjunto. O ponto de encontro foi Amesterdão e fomos num 747. Outros tempos. Curiosamente, uns meses mais tarde, por ocasião do Mundial Sub-17, na Escócia, também fomos todos juntos. Só que aí demos uma barraca monumental, ahahahahahah.
Como?
O avião aterrou e nós saímos, com a maior naturalidade. Descemos as escadas e não vimos ninguém. Estranhámos, claro, mas seguimos em frente. Entrámos pela gare adentro e nada de ver alguém alusivo ao Mundial Sub-17. De repente, na alfândega, perguntam-nos quem somos. E nós, ‘somos a selecção portuguesa, viemos para o campeonato do mundo e tal e mais não sei o quê’. Então o que foi? O avião tinha só aterrado para abastecer, aquilo ainda não era a Escócia e nós saímos na maior. Bem, quando reentrámos no avião, nem imaginas o gozo das outras selecções. Uns aplaudiam, outros apupavam. Que ambiente. Estás a ver, selecções a viajar no mesmo voo e para a mesma competição? Tempos grandiosos.
E o hotel em Riade?
Era isso que ia dizer. Calhámos no mesmo hotel da Nigéria. E há mais: comíamos o mesmo buffet. O que é a gente fazia? Tínhamos de chegar antes deles para comer aquilo tudo. O seleccionador da Nigéria estava possesso e fez queixa à FIFA. Dizia que comíamos como elefantes. E era verdade, ahahah. Que coboiada. Sabes o mais giro? Um certo dia, ainda no buffet, a gente vê um árabe arrogante de óculos escuro a mexer na nossa comida e a provocar-nos constantemente. Às vezes, parava de mexer e só olhava na nossa direcção. Eu estava doido e encostei-me a ele para lhe dar uma canelada, ahahahah. Sabes quem era? O filho da mãe do Vingada, ahahahahahah. Era o Nelo mascarado.
Nos convocados, só havia um 9 fixo: Paulo Alves.
Verdade, e isso tem que ver com o futebol português, porque todos queriam jogar atrás do ponta-de-lança. A sério. Nós falávamos com jogadores lá da frente, perguntávamos onde queriam jogar e, invariavelmente, a resposta era atrás do ponta-de-lança. Ninguém queria jogar de costas para a baliza. Por isso mesmo, apliquei o 4-3-3 em vez do 4-4-2 não só na selecção mas também nos escalões de formação por todo o país. Quando fui a Chaves ver um jogo de juniores, vi um ovni chamado Paulo Alves. Ele era o jogador alto, magro, de características únicas. E pensei ‘este gajo é diferente de todos’. O Paulo é a diferença desse plantel. Quando ele se lesiona no segundo jogo da fase de grupos, ainda na primeira parte, depois de nos ter dado a vitória frente à Checoslováquia, tive de apostar tudo no João Pinto. No fundo no fundo, há poucos 9 no nosso futebol com as características fortes: temos Gomes, Rui Águas, Pauleta e Nuno Gomes. Assim de repente, dos anos 80 até hoje, não vejo mais ninguém. E o Paulo Alves, claro.
Como é que se ganha à Nigéria sem o Paulo Alves?
Hoje já posso contar. Pequeninas coisas que são importantes. Eles, os nigerianos, eram bem maiores que nós, mais potentes e mais rápidos. Como nasci e cresci em África, conhecia bem aquele futebol em matéria de tackles, tesouradas e afins. Na preparação do jogo, disse aos jogadores para rodar o mais possível a bola e tentar as fintas sucessivas porque eles ficavam impaciente num piscar de olhos. Virei-me para o Folha e disse ‘esquece a baliza, esquece o golo; quando tiveres a bola, vais ter ao 7, acho que era o 7 ou 15 ou seja quem for, e dribla-o. A seguir, dribla-o outra vez.’ Já sabia que o pobre do Folha ia sofrer e ia vê-lo pelo ar umas quantas vezes. Mas resultou, porque a Nigéria acabou com nove. Quando saiu o primeiro vermelho, ficou 11 para 10, aí disse para dentro de campo que agora era a hora do golo. E marcámos, através do João Pinto. Essa era a arte dessa geração, sabiam como ganhar um jogo, através da maturidade e bravura. Já agora, também diversão. Eles sabiam divertir-se. Vê lá bem isto.
Conte.
Uma vez, encontrei umas sapatilhas ainda do tempo do Mundial 1966 na arrecadação da Federação. Fui ter com o director António Pimenta e pedi-lhe para surpreender os jogadores com a oferta das sapatilhas: as vermelhas para os jogadores e as azuis para nós, do corpo técnico. Estávamos a jantar e o Paulo Sousa começa a passear-se ao lado da nossa mesa. ‘Prof, isto é espectacular’ E eu todo contente por dar uma alegria aos jogadores. O Paulo Sousa e outros insistem a raspar a sola no chão e eu nada. Só que, às tantas, lá percebi: eles não tinham as solas. Aquilo estava tão podre que caíram e eles estavam a andar à nossa frente sem sola, só com as meias. E eles ‘isto é um espectáculo, nem desliza nem nada’. Quando vi bem aquilo, só queria desaparecer. Há histórias lindas, ahahahah.
https://www.youtube.com/watch?v=NKxtPgi_IRw
Já apurados para a fase seguinte, perdemos 3-0 com a Arábia Saudita. Que se passou?
E três até foi pouco. Primeiro, eles jogaram melhor e mereceram claramente a vitória. Depois, aquela tempestade de areia. Nem eu nem o Nelo nem ninguém tinha visto aquilo, éramos todos uns aprendizes. O estádio estava coberto de areia e, se não me engano, o jogo até começou ligeiramente mais tarde que o previsto. Quando chegámos ao estádio, saltaram as perguntas: fazemos o aquecimento lá fora, no relvado, ou cá dentro, no balneário? Estudámos as vantagens e desvantagem até que me decidi em fazer o aquecimento lá fora. Assim, acostumavam-se ao ar. A caminho do relvado, apercebo-me que a Arábia não salta para o aquecimento e aí percebi o meu equívoco. Transmiti logo essa ideia ao Nelo, ‘eles sabem mais que nós sobre tempestades de areia e não saíram’. E a verdade é que aquela poeira debilitou a equipa, parecíamos que estávamos a dormir.
No dia seguinte, folga. Até foram passear ao deserto e tudo.
À revelia da direcção da Federação, e com a cumplicidade dos directores Paes do Amaral e António Pimenta, comprámos a primeira câmara Betacam num mercado qualquer em Riade. Que servia para filmarmos os nossos treinos lá de cima, da bancada, e, nesse dia em específico, de filmar aquele almoço na tenda no meio do sorteio. Ahahahahah, que saudades.
Então?
Não sei quem é que tem esses vídeos, deve ser o pirata do Nelo. Aquilo era carneiro cozido e a maneira tradicional era comer à mão. A câmara, claro, capta as caras e caretas de todos nós. À noite, metemos a cassete e vimos o almoço. Bem, apanhámos cada coisa divertida e pessoal. Depois dependia da pessoa. Era o delírio, só rir.
https://www.youtube.com/watch?v=CMcRNrl74Uo
Segue-se a Colômbia.
Complicado, muito complicado. Foi um desespero. Eles guardaram a bola o jogo inteiro e foi, talvez, o jogo mais difícil desse Mundial. Mais difícil, por exemplo, do que o do Brasil, na eliminatória seguinte. Vimo-nos gregos para ganhar 1-0.
Depois, Brasil.
Foi mais taco a taco, sentimo-nos mais confortáveis. O seleccionador deles era o René Simões, um treinador do mundo. Já o conhecia dos tempos de Portugal, quando treinava o Vitória em Guimarães. Era um relacionamento profissional. Que depois evoluiu para a amizade. Nesse Mundial Sub-20 em Riade, também iniciei uma relação de amizade com o Carlos Alberto Parreira, então seleccionador da Arábia Saudita e também director técnico da FIFA. É ele quem me convida para entrar nos quadros da FIFA, como parte da equipa técnica dos relatórios dos jogos.
Que jogos?
Os do Mundial 1990 e 1994. Há um inesquecível, entre Brasil e Argentina em Turim. Ganhou 1-0 a Argentina, golo do Caniggia após jogada fantástica do Maradona, que passou quase todo o jogo atrás da sua defesa, tal o domínio do Brasil. Quatro anos depois, em 1994, nos EUA, o Parreira convidou-me para ir ao centro de estágio deles, em Los Gatos, que era um castelo fechado. Estava autorizado a observar os treinos e a conviver com os jogadores, foi uma maravilha.
Na ressaca da vitória sobre o Brasil, o Carlos faz 36 anos.
E os jogadores espetam-me na piscina. É como lhe digo, a malta sabia divertir-se e o ambiente era bem bom. À noite, cantávamos os nossos fados, compúnhamos umas músicas miseráveis: o Catoja no som e eu nas letras, só para consumo interno. Isso dava para criar bons momentos. Uma vez, o Walter Gagg, então director da FIFA, até me veio dizer que as outras selecções estavam ligeiramente incomodadas com o nosso som, ahahahah. Seria da letra ou do som propriamente dito? Nunca soube, ahahahah. Sabes o que é giro? No outro Mundial, em 1991, a nossa música, do cantor Fernando e cantada por todos nós da selecção, abafou o hino oficial da FIFA. E a história torna-se ainda mais engraçada, porque a FIFA pediu à federação a nossa música para o vídeo oficial.
Ahahahahahah. Queiroz para a piscina na antevéspera da final. E a final propriamente dita?
Nós sabíamos que o titulo não nos ia fugir.
É assim tão simples?
Há três momentos. O primeiro tem a ver com a eliminação da URSS. Era realmente uma selecção forte. Tanto assim é que se sagrou bicampeão europeia Sub-18. Aliás, eles ganharam-nos a final em 1988 e depois em 1990. Eram fortes, muito fortes. E estavam bem nesse Mundial, só que as coisas descarrilaram com a Nigéria, nos quartos-de-final. Vê bem, estavam a ganhar 4-0 aos 60 minutos e o seleccionador deles tira no instante seguinte o Kiriakov, que até tinha bisado. Uma substituição absolutamente normal, abdicar do goleador de serviço para a meia-final. O tempo passa, passa e passa. A 17 minutos do fim, a Nigéria reduz para 4-1. Depois, 4-2, 4-3 e 4-4. No prolongamento, nada. Nos penáltis, 5-3 para a Nigéria. Com a URSS de fora, tínhamos realmente muitas hipóteses.
E os outros dois momentos?
Começo com o do Filipe. Havia um avançado nigeriano que jogava aberto e era um perigo constante. Só tínhamos o Filipe para tomar conta da ocorrência, só que o Filipe não era bem aquele jogador a dar-se bem a jogar aberto. Então preparei um discurso todo pipi de motivação e ele, às tantas, diz-me só isto ‘prof, só quero jogar: de 2 a 11, tanto me faz’. Percebi aí que a confiança estava lá em cima, inabalável.
E o terceiro e último momento?
Através do olhar dos jogadores. Tinha preparado alguns aspectos na prelecção e estava preocupado com o que iria dizer aos jogadores antes de um jogo tão importante como este. Quando cheguei ao team meeting, olhei para eles e a descontracção era tanta que só me ocorreu dizer-lhes ‘vão lá para dentro, expressem o vosso futebol e divirtam-se’. Epá, aquela equipa tinha já a convicção de que aquilo não fugia de nós. Sabes a história do Abel com o Pelé?
Nem ideia.
O Pelé entra em campo para cumprimentar todos os jogadores antes do pontapé de saída, aquele protocolo da FIFA. Quando o Pelé cumprimenta o Abel, ele diz-lhe ‘vou oferecer-lhe um golo’. E não é que o Abel marca um golo, o 1-0. E que golo! A Nigéria era poderosa e uma equipa que vinha de jogar a final do Mundial sub17, mas nós conseguimos encontrar o caminho da vitória sem grande dificuldades. Um golo em cada parte e resolveu-se o assunto.
E o impacto da vitória?
Nem notei muito, sabes. Quero dizer, repeti as rotinas como se fosse a ressaca de um jogo da fase de grupos ou dos quartos-de-final. Fui para o hotel e subi até ao meu quarto. Estava no 8.º ou 9.º andar e começaram a chamar-me da recepção uma e outra vez, sem parar. Eram só telefonemas de Lisboa para falar sobre a epopeia de Riade.
E a viagem para Lisboa?
No voo Amesterdão-Lisboa, quando nos dizem que os jogadores do Porto não seguem viagem à parte, é que comecei a perceber o que iria ver umas horas depois. Entendi então a dimensão da vitória. Saímos do aeroporto e foi uma maravilha. Nunca vi um mar de gente assim, fantástico.
Foi de férias, a seguir?
Tive o primeiro grande bónus ao serviço da selecção. Fomos jogar à Suíça, já a contar para o Europeu Sub-18, e o presidente Silva Resende autorizou a minha mulher a viajar comigo, com viagem e despesas pagas pela Federação. Eu quero dizer isto: naquele tempo, a Federação tinha escassos recursos e o financiamento do futebol juvenil era através do orçamento de Estado. O Nelo tem uma frase formidável e ainda hoje a diz de vez em quando, pleno de razão: ‘A gente não ganhava muito mas divertimo-nos à brava’.