Carolyn Porco ainda estava a tirar o curso universitário quando se envolveu na missão Voyager, na equipa de imagem. E foi nessa equipa que fez a sua primeira grande descoberta científica. “Senti-me gigante. Naquele momento, era a única pessoa na Terra que sabia daquilo.” Ao mesmo tempo, era detentora de um segredo que não queria partilhar. Curiosamente, a partilha de conhecimento e as palestras para o público tornaram-se, mais tarde, uma parte importante da sua vida profissional.
Depois da missão Voyager, que nos deu a conhecer o nosso sistema solar — e que mudou a vida da cientista planetária —, Carolyn Porco tornou-se líder da missão Cassini, que estudou Saturno e as suas luas e anéis entre 2004 e 2017. Foi neste período que se apaixonou por Encélado, para onde gostaria de enviar uma nova missão. E o que gostaria de encontrar? Vida. Formas de vida no oceano deste satélite natural de Saturno. “Se encontrássemos vida noutro planeta, mesmo que dentro do nosso sistema solar, isso significaria que há vida em todo o lado.”
Enquanto jovem estudante, Carolyn Porco (agora com 66 anos) não estava tão interessada em astronomia como estava em perceber a sua própria existência. Procurou respostas às suas perguntas em várias religiões e filosofias, mas foi na ciência, em particular nas ciências espaciais, que encontrou a resposta. “Essa é a essência da mensagem de Carl Sagan: o significado da existência humana”, diz sobre o homem que de certa forma a inspirou e desbravou um caminho que ainda não tinha sido explorado.
Este sábado, a astrónoma Carolyn Porco e a astrobióloga portuguesa Zita Martins vão falar sobre “Infinitamente pequeno, infinitamente grande”, no encontro organizado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos — Ciência e Universo —, na Aula Magna de Lisboa.
Tem estudado Saturno desde os anos 1980 e fez parte de muitas descobertas neste planeta. Consegue escolher a que teve o maior impacto na sua vida?
Fiz parte da missão Voyager, que passou por Júpiter, Saturno, Úrano e Neptuno. Em todos esses sítios descobrimos coisas novas. Tenho tantas boas memórias de tantas coisas novas que nunca tínhamos visto. Com a Cassini, estávamos a orbitar Saturno, e uma das descobertas mais dramáticas que fizemos foi a pluma e os geiseres em erupção no polo sul da lua Encélado. Mais tarde percebemos que aquilo era material que estava a surgir de um oceano debaixo da superfície, que tem uma salinidade comparável com a que existe na Terra, tem compostos orgânicos e até parece ter sinais de atividade hipertérmica [com temperaturas acima do esperado] que provavelmente está a ocorrer no fundo do mar. Tudo isto aponta para um sítio onde a vida poderia possivelmente prosperar. O programa de exploração espacial tem várias questões que gostaria de ver respondidas, mas diria que a mais importante de todas é: se a vida pode existir em mais algum lado no nosso sistema solar. Se sim, é diferente da vida na Terra ou é a mesma coisa?
Esta possibilidade de existir um planeta habitável no sistema solar além da Terra é algo incrível. O que seria mais surpreendente de encontrar no sistema de Saturno?
O que me surpreenderia era se encontrássemos vida no oceano de Encélado e se essa vida fosse muito mais evoluída do que eu esperaria. Quando pensamos em procurar vida, tendemos a ser muito conservadores, porque, profissionalmente, não queremos dar um salto demasiado grande, para lá do que os dados podem corroborar. Começamos com pequenos passos e dizemos: “Vamos colocar a hipótese de que pode haver vida simples e microbiana no oceano de Encélado”.
Algo semelhante a uma bactéria?
Sim, bactérias. Ou vírus. Não pensamos que vamos encontrar peixes e lagostas. Caía para o lado se encontrássemos algo desse género. Não estou à espera desse tipo de descoberta — e se acontecesse seria um dia muito estranho. Mas o que me surpreenderia — e seria fantástico — era se encontrássemos vida nos lagos e nos mares de Titã. Porque em Titã as temperaturas são extremamente frias, tipo -183ºC. Os lagos e os mares em Titã não são feitos de água, são de hidrocarbonetos líquidos [compostos de hidrogénio e carbono], e não conhecemos qualquer tipo de vida que possa existir e evoluir num ambiente desses.
Claro que, se houvesse vida aí, tinha de ser muito diferente [da que existe na Terra]. E isso podia muito bem ser a coisa mais entusiasmante que poderíamos encontrar. Dar-nos-ia a oportunidade de fazer comparações sobre o que sabemos da vida na Terra e a sua estrutura química e a vida que teríamos encontrado em Titã e que teria de ter uma estrutura química muito diferente. Quando se faz uma comparação desta natureza, acho que se pode colocar outra pergunta: se os dois sistemas são semelhantes, quais são as diferenças entre eles e porque é que a vida aconteceu de formas diferentes nos dois planetas?
Isso significaria que qualquer tipo de vida podia acontecer em qualquer lado?
Bem, é como lhe disse há pouco: os cientistas gostam de ser conservadores nestas coisas. Não sei se saltaria para a conclusão de que qualquer tipo de vida seria possível. Mas sei que, se encontrássemos vida noutro planeta, mesmo que dentro do nosso sistema solar, isso significaria que há vida em todo o lado. Que a vida é uma coisa comum. E poderíamos ter a certeza de que há vida na Via Láctea, noutras galáxias, do outro lado do universo.
As imagens têm sido uma parte importante do seu trabalho. Começou desde muito cedo a olhar para imagens e fazer as suas próprias descobertas — até mesmo antes de completar o curso. Como é que isso teve impacto na sua vida e nas decisões na sua carreira profissional?
A primeira grande descoberta que fiz foi quando estava a trabalhar com as imagens da Voyager. A missão Voyager era incomparável porque havia muita incerteza sobre o que íamos encontrar. A sério, não fazíamos ideia nenhuma. Éramos tão inocentes quando decidimos passar por Júpiter, Saturno, Úrano e Neptuno. Não fazíamos ideia do que íamos encontrar.
Eu era apenas uma estudante na altura em que a Voyager passou por Saturno, mas já estava associada à equipa de imagem da missão. Havia tantas coisas descobertas em Saturno que a equipa de imagem estava muito ocupada a preparar encontros e escrever os relatórios obrigatórios. Dois tópicos muito interessantes acabaram por me ser entregues porque mais ninguém tinha tempo para mais nada. O primeiro em que me envolvi foi no estudo de uma característica muito misteriosa que apareceu nos anéis de Saturno chamada raios [spokes, em inglês]. Com uma análise muito simples consegui descobri que esses raios mudavam com o mesmo período que o campo magnético de Saturno. Lembro-me tão bem como me senti quando percebi o que se estava a passar. Senti-me gigante. Naquele momento, era a única pessoa na Terra que sabia daquilo. Queria correr de um lado para o outro a gritar: “Olhem o que eu descobri!”. Mas, por outro lado, não queria que mais ninguém soubesse porque era o meu segredo. Foi um momento único. E é o tipo de coisa que nos faz querer mais e mais e mais. Toda a experiência Voyager definiu o que fiz para o resto da minha vida.
Em 30 anos, a tecnologia para o registo de imagens evoluiu muito. Como vê esta evolução e que impacto teve no seu trabalho?
Bem, vamos voltar ao passado. A Voyager tinha uma câmara muito rudimentar. Quando digo isto refiro-me ao detetor, que era como uma televisão muito antiga. Na altura em que decidimos montar a missão Cassini já tínhamos um dispositivo que era completamente diferente, um grande avanço em relação à Voyager. Mas mesmo enquanto preparávamos a Cassini os detetores já se estavam a tornar melhores. Só que não os podíamos usar porque quando se preparava uma missão espacial não podemos usar tecnologia que não esteja muito bem testada. Não podíamos escolher algo que tinha sido criado um ano antes e pô-lo num veículo espacial porque ainda não tinha sido testado para um voo deste tipo. Posto isto, esse novo detetor foi um grande avanço em relação à Voyager e permitiu-nos fazer muitas das coisas que queríamos fazer. Por isso é que as imagens da Cassini são muito melhores, em termos científicos, cores, luz, calibração. Desde aí que as câmaras têm melhorado muito.
Que tipo de missões ainda espera ver serem feitas no sistema solar?
Sou uma grande fã de Encélado, por isso gostava de voltar lá e procurar por sinais de vida. A Cassini não podia fazer isso porque não sabíamos como procurar. Mas também gostava muito de voltar a Neptuno. Não vamos lá há 30 anos. É um sítio fascinante, um planeta incrível. Tem um campo magnético cujo centro não coincide com o centro do planeta. É uma relação complicada entre a massa neutral do planeta e o campo magnético. Isto é fascinante e tenho a certeza que as pessoas que estudam campos magnéticos adoravam voltar lá. Depois também há Tritão, que é uma lua fascinante e temos muito para aprender.
Sabe se há algum plano para uma missão desse género?
Sei que as pessoas estão a tentar organizar uma missão a Neptuno e a Úrano. Penso que Neptuno está definitivamente nos interesses dos cientistas. Mas demora muito tempo a chegar e tempo é dinheiro. Muitas vezes é assim que as decisões são tomadas — com base naquilo que podemos gastar. Mas acho que vamos a Neptuno primeiro.
E em relação a Marte, acha de devíamos pôr humanos no planeta?
Bem, agora ando um pouco indecisa sobre isso porque há tantos problemas com que temos de lidar aqui na Terra. Acho que seria ótimo mandar pessoas para Marte, acho que seria um momento de grande inspiração para todo o mundo ver isso a acontecer. Acho que, cientificamente, poderia ser interessante. Mas não acho que devemos planear uma colonização de Marte no sentido de lá viver, geração após geração, criar crianças e estabelecer uma civilização. Isso é, simplesmente, impossível de se fazer. É impossível terraformar Marte, isso já foi demonstrado. Esse tipo de declarações, que já foi feito por pessoas do lado comercial da exploração espacial, não é possível. Por isso, gosto de pensar na ida a Marte de forma semelhante como pensamos na ida à Antártida: estabelecemos uma relação de investigação e está constantemente habitada, mas não pelas mesmas pessoas.
E já temos a tecnologia que nos permita ir a Marte?
Não sou especialista nisso, mas sei que haveria desafios enormes. O corpo humano não gosta de estar em ambientes com gravidade reduzida e aparentemente isso afeta os nossos ossos, músculos, olhos, cérebro. Não é uma coisa banal. Sei que todos gostamos do Star Trek e da Guerra das Estrelas — e o Luke Skywalker não parece ter sofrido com nada disso. Na vida real, a ideia de colocar humanos num lugar como Marte tem desafios muito grandes, não só tecnológicos, mas biológicos também. Ou seja, por um lado digo que seria maravilhoso ir lá e montar esta estação, mas, por outro lado, não estamos num ponto ainda em que isso seria prático.
Tem feito muita comunicação de ciência. Foi inspirada por Carl Sagan? Ele teve impacto na forma como pensa na comunicação?
Claro que sim. Conheci-o quando era estudante, em 1972. Ele foi à minha universidade dar uma palestra. Tinha lido um livro sobre vida inteligente no universo e estava muito impressionada com esse livro. Fiquei muitíssimo impressionada com a abordagem dele. Era uma pessoa que fazia ligações entre coisas que os cientistas, naquela altura, nunca tinham feito. Diria que a forma como o Carl falou da exploração espacial arrebatou-me. A forma como falou de ciência também. Ele parecia ter uma abordagem espiritual. Eu nem sequer sou religiosa, mas ele falou daquilo como se fosse um acrescento natural da cultura humana. Isso mexeu comigo, em termos científicos. Ele tem uma maneira de romantizar as coisas e isso mexeu comigo porque já o sentia ainda antes de conhecer o Carl Sagan.
E no que diz respeito à maneira de comunicar com as pessoas sobre os resultados científicos da Voyager ou Cassini, acho que ele é que abriu a porta para aqueles que se seguiram. Ele recebeu muitas críticas por ser um exibicionista [grandstander, era uma palavra que lhe era atirada com frequência. Admiro-o por isso. Sinto que a minha abordagem é como a do Carl Sagan de certa forma, mas não sinto que o esteja a copiar, sinto que o segui porque fazia sentido para mim. Tudo o que fazemos na exploração científica e na exploração espacial é, na realidade, uma aventura, é uma aventura romântica e muito emocional, além de ser científica. Foi por isso que o segui. Pensávamos da mesma maneira.
Tenta levar essa mensagem romântica e aventureira quando fala com a audiência quando fala do espaço?
Claro que sim. Fi-lo desde a Voyager. De facto, foi durante a Voyager que fui muito entrevistada pelos media. Tinha pessoas nos media a encorajar-me a falar mais vezes para o público porque era boa a fazê-lo. Foi assim que comecei. Eu não sabia, teve de ser alguém a dizer-me para o fazer mais vezes. Até me diziam que podia fazer como o Carl Sagan [a série “Cosmos” tinha saído poucos anos antes, em 1980]. Continuei a fazer o que fazia quando me entrevistavam. Foi assim que aconteceu.
E como chegou à exploração espacial?
Não comecei como muitos jovens, interessada em astronomia ou em construir meu próprio telescópio. Comecei porque questionava o significado da minha própria existência. Foi um caminho muito diferente, foi mais uma busca religiosa. Queria saber o significado da minha vida e o que estava a fazer aqui. Li sobre o hinduísmo, o budismo e o existencialismo e, até, durante um tempo, tentei seguir a minha religião de nascimento [católica], mas nada disso me deu uma resposta. A certa altura as perguntas mudaram de “O que é que eu estou a fazer aqui?” para “Onde é aqui?”. Isso fez-me pensar na estrutura do universo, do nosso planeta, o que somos e o que estamos aqui a fazer neste planeta. Comecei a ler sobre estrelas e galáxias e o cosmos. Esse interesse fez-me escolher Física e Astronomia no secundário e depois graduar-me e fazer parte do programa espacial americano. Essa é a essência da mensagem de Carl Sagan: o significado da existência humana. Encontrei o significado da vida: existimos e existimos juntos.