Os medidores de radioatividade instalados em Zaporíjia, nas margens do rio Danápris e na fronteira norte com a Crimeia, não antevêem para já a história de terror que as autoridades ucranianas temem que se desenrole na central nuclear tomada pelas forças militares da Rússia. A Agência Internacional de Energia Atómica garante que, mesmo após a conquista russa da maior central nuclear da Europa, a nona em todo o mundo, não houve libertação de material radioativo e os níveis de radiação no local continuam normais e estáveis.
Mas a Inspeção Reguladora Estadual Nuclear, entidade ucraniana responsável por monitorizar toda a produção de energia nuclear no país, avisa que isso não é suficiente para respirar de alívio: colocada nas mãos erradas, a central de Zaporíjia pode transforma-se num acidente nuclear comparável a Chernobyl ou Fukushima. Mas pode não ser bem assim.
Seis dos quinze reatores nucleares que existem na Ucrânia estão em Zaporíjia, mas três foram desativados desde que a guerra com a Rússia eclodiu e, neste momento, apenas um deles prossegue em funcionamento, a cumprir 60% da sua atividade.
No interior destes reatores — torres cilíndricas com vários metros de diâmetro —, são colocadas varetas com pastilhas empilhadas feitas de urânio, cujos núcleos interagem com uma espécie de sopa de neutrões. A transformação dos átomos de urânio por estes neutrões liberta quantidades enormes de energia. E a gerada em Zaporíjia corresponde a 19% da energia consumida na Ucrânia e a metade da produção por fontes nucleares no país.
Mecanismos de segurança reforçados após 11 de setembro — mas Zaporíjia foi construída 17 anos antes
A probabilidade de um acidente ocorrer no seio destes reatores nucleares é extremamente baixa, explicou Pedro Vaz, especialista em radioproteção do Instituto Superior Técnico, ao Observador. Primeiro, porque há vários sistemas de redundância, de modo a que, se algum componente falhar, outro entre em funcionamento. E, depois, porque as torres estão equipadas com paredes de betão com vários metros de espessura que absorvem e confinam grande parte da energia e da radiação que podia ser libertada.
Nas centrais nucleares mais recentes, ou nas que foram modernizadas nos últimos 20 anos, o sistema de proteção vai ainda mais longe: as paredes dos reatores nucleares são concebidas para sobreviver a uma agressão exterior tão significativa como a queda de um avião comercial. Estas preocupações só se impuseram com a ameaça terrorista e após o atentado nos Estados Unidos a 11 de setembro de 2001, explica Pedro Vaz. Pode não ser o caso da central nuclear de Zaporíjia, que entrou em funcionamento em 1984. Tudo dependeria da força do impacto.
Ainda assim, os reatores têm um elevado nível de resistência — e prova disso é que alguns edifícios auxiliares ao reator em funcionamento foram mesmo atingidos durante os confrontos entre forças ucranianas e russas sem que isso tenha provocado uma libertação de radioatividade para a atmosfera.
Mariana Budjeryn, especialista em física nuclear da Universidade de Harvard e ucraniana de origem, confirmou ao The Guardian que “dizer que um reator foi atingido não nos diz muito, porque a parte mais vulnerável é a eletricidade e o abastecimento de água”: “Se a eletricidade for cortada, os geradores de reserva entram em ação, mas se eles não funcionam ou o diesel incendiar, por exemplo, as bombas não podem bombear água fria para o reator e para as piscinas. Isso é necessário para manter a reação nuclear moderada. Caso contrário, a água ferverá e o núcleo ficará crítico e explodirá”.
É por isso que o passo seguinte no funcionamento da central nuclear pode ser considerado o mais crítico. Ao fim de alguns anos — normalmente dois a três —, as varetas com pastilhas de urânio no interior destes reatores esgotam-se: o combustível já sofreu tantas reações que o urânio fica gasto e deixa de ter tanta eficiência energética, contou ao Observador o especialista Pedro Vaz.
Nesse momento, ele é extraído dos reatores e colocado em piscinas de água para arrefecer. Depois, são novamente retirados e armazenados em contentores de aço cobertos por betão, e daí são transportados para cavernas a centenas de metros de profundidade com acessos ultrarrestritos — tudo para evitar que a radioatividade que sobrevive no combustível gasto não chega à superfície. É um processo que ainda está a ser aprimorado pela comunidade científica.
Sistemas de arrefecimento só têm autonomia para sete dias
Em Zaporíjia, por cada um dos reatores, há uma piscina de arrefecimento com centenas de toneladas de combustível nuclear altamente radioativo. E é nestas piscinas que está o maior perigo de um conflito nas imediações da central nuclear, alerta a Greenpeace: se alguma explosão destruir os sistemas de contenção e arrefecimento do material radioativo, ou se eles deixarem de funcionar por falta de eletricidade, a quantidade de combustível libertada para a atmosfera pode tornar inóspitas durante décadas as regiões num raio de centenas de quilómetros.
Em 2017, os dados oficiais mencionavam a existência de 2.204 toneladas de resíduos com elevado nível de radioatividade em Zaporíjia; e mais de um terço estava em piscinas de arrefecimento. Mas sem esse resfriamento ativo, “há risco de sobreaquecer e evaporar a um ponto em que o revestimento de pode inflamar e libertar a maioria da radioatividade”, avisou a Greenpeace, em concordância com a descrição dos especialistas.
O aviso surge numa análise feita por dois físicos nucleares ao serviço da organização, que alerta para a “elevada dependência” da central a estes sistemas de apoio: se a energia elétrica falhar e os mecanismos de contenção e arrefecimento do material nuclear forem comprometidos, a central pode servir-se de geradores e baterias alimentadas com combustível para operar em segurança por um período de tempo de apenas sete dias. Mas, em 2020, foi denunciado que alguns desses geradores apresentavam problemas de funcionamento, não havia peças sobressalentes para as solucionar e não tinham sistemas eletrónicos modernizados.
Segundo a Greenpeace, no pior dos cenários, a contenção do reator seria destruída por explosões e o sistema de resfriamento falharia, deixando a radioatividade das torres e da piscina de combustível escapar livremente para a atmosfera. Mas há dois aspetos que tornam este o cenário mais improvável: um é que “seria preciso que muito falhasse no sistema de segurança e proteção para se chegar a esse ponto”, explica Pedro Vaz. É que, mesmo não suportando a queda de um avião, as paredes de betão e de aço são capazes de proteger de um míssil ou bomba convencional — embora, mais uma vez, tudo dependa da potência das armas.
O segundo dado que torna este cenário mais improvável é que toda a gente ficaria a perder com a exposição do material usado nas centrais nucleares, que formaria uma nuvem radioativa que se espalharia por toda a atmosfera, contaminando os solos e os corpos de água – até mesmo na Bielorrússia, aliada de Vladimir Putin e um dos países na vizinhança da Ucrânia; e na Crimeia, território disputado que a Rússia anexou em 2014 e que fica a cerca de 200km a sul da central nuclear.
A radiação libertada poderia ultrapassar os 16 mil milésimos de Sievert (a medida que quantifica os efeitos biológicos), e que foi atingida em Chernobyl — 1.600 vezes aquela a que uma pessoa está exposta quando faz uma tomografia computadorizada e 24 vezes a dose de radiação mais elevada detetada após o acidente de Fukushima. Um desastre destas dimensões poderia tornar uma grande parte da Europa inabitável por várias décadas. Incluindo a Rússia, que seria das primeiras atingidas à conta da proximidade à Ucrânia.