É como a corrente sanguínea. Se bloquearmos um vaso sanguíneo, ele rebenta. Depois das explicações, é esta a analogia que o climatologista Mário Marques usa para exemplificar o que se está a passar com a chuva no distrito de Lisboa – e noutros pontos do país –, que provocou um verdadeiro caos, com inundações, aluimentos de terra, árvores caídas e estradas intransitáveis. Mas a culpa, assegura, não é só da chuva. Fortes precipitações sempre aconteceram, sobretudo na década de 70 e inícios da de 80, e foi na de 90 que se registaram os dias com mais chuva — num deles chegou a chover 180 litros por m2 num só dia, sem consequências como as de agora. É que de lá para cá o solo foi ocupado por estradas, casas, infraestruturas industriais, cuja construção não respeitou a rede hidrográfica que existia. Foram destruídas ribeiras, pontos de água e zonas de absorção e agora as águas pluviais não têm para onde ir. E para reverter o cenário é preciso fazer muito, e com todos.
“Não é só culpa da chuva, existe uma grande ocupação do território de edificado habitacional e industrial e que serviu de obstáculo e de transporte de água. Obstáculo, porque muitas linhas de água foram entubadas ou destruídas, e de transporte porque essas ribeiras ao inundarem ocupam a área rodoviária e chegam a áreas que não seriam inundadas antes. Há uma falta de ordenamento do território uma falta de respeito da rede hidrográfica que existia, que era muito densa, microregional e que foi apagada do mapa”, denuncia Mário Marques. Aliás, sustenta, chegar-se-ía facilmente a essa conclusão se se utilizasse uma ferramenta de planeamento e esta fosse sobreposta à informação que temos. “Vemos esta ocupação desmesurada, uma impermeabilização dos solos, o que aumentou de forma drástica a vulnerabilidade das pessoas”.
Em inícios de outubro, numa altura em que a atenção devia estar já virada para a limpeza de sarjetas e para as primeiras chuvas, o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, anunciava com toda a pompa e circunstância a concretização do plano de drenagem da cidade, que já tinha sido pensado em 2004 mas que nunca avançou. Com um orçamento de 250 milhões de euros e data de conclusão para 2030, o autarca anunciava assim a solução para reduzir os riscos de cheias e inundações em Lisboa e mitigar os previsíveis efeitos das “alterações climáticas”.
A voz de Maria José Roxo, professora catedrática, no entanto, muda de tom sempre que ouve falar em alterações climáticas como a justificação para o que está a acontecer no distrito de Lisboa e em muitas outras regiões do país fustigadas pela chuva. Também para ela a realidade, assegura, não está naquilo que prefere chamar de mudança climática, mas sim no ordenamento do território e na falta de planeamento urbano. “É necessário um ordenamento do território eficaz e eficiente: ordenar a floresta, a componente agrícola e o espaço das cidades. Tem faltado coerência”, acusa. Numa capital, e num país, que vive de “grandes obras de grandes empreendimentos, de grandes infraestruturas, temos que pensar no território como sistema”, afirma, tendo em conta todas as suas vertentes, a social, a económica e até mesmo a ambiental.
Anunciada como uma das maiores obras para reduzir os riscos de inundações devido a precipitação extrema, o Plano Geral de Drenagem de Lisboa já tinha sido pensado em 2004. Mas só agora, garantiu Carlos Moedas, quase vinte anos depois, é que foi dada luz verde para a construção de dois túneis subterrâneos, com cerca de cinco metros de diâmetro. Um deles irá ligar Monsanto a Santa Apolónia, ao longo de cinco quilómetros, o outro Chelas ao Beato, que terá um quilómetro. Mas para os especialistas contactados pelo Observador, até à sua conclusão teremos mais dias de pânico como os que vivemos desde o dia 7 de dezembro e não é certo que esta solução seja milagrosa.
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Túneis gigantes podem não chegar para evitar cheias
Enquanto os túneis não forem uma realidade, Jorge Silva, especialista em Proteção Civil que integra a ASPROCIVIL, a Associação Portuguesa de Técnicos de Segurança e Proteção Civil, vai-se focando na realidade existente e no subsolo que suporta a cidade. “Estas não são nem serão as piores cheias”, diz em forma de aviso. Neste momento, as condutas que existem para escoar águas da chuva têm mais de 50 anos, foram projetados antes do 25 de abril para uma cidade que, entretanto, cresceu e, por mais que se limpem, têm resíduos incrustados. “Uma conduta de 100 ml, se tiver uma incrustação de 40, já não debita os 100”, exemplifica. “Quando há novas obras, sejam particulares ou municipais, alertamos para dimensionarem as condutas de escoamento acima do normal, porque cada vez mais temos períodos anormais de chuva, portanto o cálculo deve ser feito acima do previsto na lei”.
Além da limpeza das condutas, o ideal era que logo em outubro se começassem a limpar as primeiras folhagens das grelhas pluviais, sobretudo nas zonas que já são conhecidas como mais críticas e que são sempre as mais afetadas, como é o caso da zona de Algés-Dafundo, Belém e Alcântara. Até porque, lembra, o próprio terreno da capital é propício à escorrência de água. “São bacias de retenção, desde o pico máximo da colina até ao fundo do vale escorre água”. Maria José Roxo, docente que se tem dedicado à investigação da desertificação, catástrofes e riscos ambientais, recursos naturais e geomorfologia, compara mesmo as ruas e avenidas de Lisboa, ao nível do mar, com afluentes do rio, que fazem confluir a água para o mesmo ponto.
Maria José Roxo não precisa de esperar pela conclusão da obra anunciada por Carlos Moedas, prevista para 2030, para perceber que esta não será uma solução para o problema das cheias em Lisboa. Há outras medidas associadas que devem ser tomadas, algumas menos drásticas, outras nem por isso. É o caso da criação de bacias de retenção de água, que mais não são que lagos artificiais em espaços verdes que retêm águas da chuva e cuja água até pode ser usadas depois, em períodos de seca.
“À volta de um lago há toda uma biodiversidade e estas zonas verdes funcionam como esponjas, porque as plantas consomem água”, explica. No entanto, não basta criar um lago artificial num qualquer lugar. “É preciso olhar para a cidade como“um todo, ver todas as conexões, o território tem que ser pensado. Esta questão das cheias tem sido muito focada em Lisboa, mas o país está cheio de exemplos: deslizamento de terras, cortes de estradas, outras áreas alagadas por mau planeamento urbano, má canalização, ocupação indevida das margens dos rios”.
E, de forma mais drástica, pensar em encontrar soluções poderá mesmo significar demolir edifícios em locais indevidamente construídos e fazer todo um planeamento que deve envolver profissionais de várias áreas e que implica investimento. “Se eu tenho obstáculos sérios, porque não demolir? Tudo o que são demolições, retirar pessoas de áreas de risco para outras, tudo isso é muito complexo, e paga-se em termos de votos eleitorais”, acusa. “O que precisamos é de políticos com visão futura, que vão fazer obras já pensando em situações extremas e que tornem as cidades mais resilientes para o que pode acontecer no próximo mês ou nos próximos anos”. “Há uma incerteza no clima e precisamos de lidar com essa incerteza”.
Também Jorge Silva aponta o dedo ao ordenamento do território. No momento em que fala por telefone com o Observador, pela hora de almoço, atenta às ocorrências abertas registadas pela Proteção Civil. “Das 170 ocorrências, a grande maioria são inundações de pequenas superfícies, também há muitas quedas de árvores”, constata. E essas, conclui, ocorrem “porque temos árvores em meios urbanos com raízes rodeadas de alcatrão que não conseguem absorver agua”, ficam fracas e caem facilmente. “As cidades têm que escolher as suas árvores. A reflorestação urbana implica não ter árvores com folha caduca que entope as sarjetas”, exemplifica.
O que explica tanta chuva?
Se a chuva que caiu a 7 de dezembro e que deixou Lisboa em estado de alerta – com centenas de ocorrências e uma morte a lamentar – se deveu a um movimento convectivo na atmosfera, traduzido por uma massa de ar quente que se formou na Madeira, sobre o mar, e se dirigiu para o continente carregando uma grande quantidade de água, o que se passou esta noite foi um verdadeiro “rio atmosférico”, como explicou ao Observador Mário Marques. Um rio atmosférico é o nome dado a fluxos concentrados de vapor de água, ou seja carregados de humidade — que abrangeu uma área geográfica ainda maior. “Os solos já estavam encharcados, a maior parte das ribeiras e cursos de água ficaram completamente sem capacidade de encaixe dessas aguas e tinham que escorrer para algum lado”, explica o climatologista.
Para Jorge Silva, estas chuvas intensas são consequência das alterações climáticas. “O aquecimento global promove uma evaporação de água muito maior e, quando há precipitação, a água cai com muito mais intensidade. Quando chove cai logo 30 ou 40 milímetros de água por hora e as cidades não estão preparadas para isso, estamos preparados para chuva de 7 e 8 mm por hora e não temos capacidade de a escoar. Quanto mais tempo chover seguido, mais difícil é retomar à normalidade”, exemplifica.
Mário Marques afirma, por exemplo, que ainda estão a ser estudadas as consequências da erupção do vulcão Hunga Tonga, que explodiu em janeiro nas ilhas do Pacífico, mas estima-se que este tenha injetado na atmosfera geral mais de 10% de vapor de água. “Logo há mais humidade a circular na atmosfera”. Ainda assim, na nossa história há mais episódios de chuvas intensas. Se recuarmos à chuvada que a 25 de novembro de 1967 provocou fortes cheias em Lisboa, que roubaram a vida a mais de 600 pessoas (uma estimativa, porque à data os verdadeiros números foram guardados nos cofres do Estado Novo), ou mesmo à década de 70 e inícios de 80, alturas em que se registaram precipitações muito fortes.
Paulo Gil Martins, que foi comandante nacional da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, lembra-se quando em 1983 a zona norte de Lisboa foi fustigada pela chuva. “Tivemos uma situação muito grave na parte norte do Tejo, desde Lisboa até Vila Franca de Xira. Foram precisos 15 dias só para repor a normalidade das pessoas e das empresas”, aponta. Houve estragos em Vila Franca, Lisboa, Alcântara, Algés, Dafundo e Loures e foram mesmo constituídos vários grupos de trabalho para conseguir repor a normalidade.
Seria depois já na década de 90 que, segundo Mário Marques, se chegaria a registar aquele que foi o dia com uma maior quantidade de chuva: 180 litros por metro quadrado. Para termos uma comparação, o IPMA diz que entre as 9h00 de 12 de dezembro e as 9h00 do dia 13 de dezembro, a estação geofísica do jardim tropical registou 120,3 milímetros (mm) de precipitação, o equivalente a 120 litros por metro quadrado.
Jorge Silva lembra também quando em 2015 um grande temporal deixou estragos na baixa de Albufeira, onde até alcatrão levantou e associa estes períodos de chuvas intensas a “ciclos”, que hoje estão cada vez mais agravados.
O papel de cada um na prevenção
O especialista em Proteção Civil lembra, porém, que com ou sem medidas para conter as consequências das fortes chuvas, há um papel importante que depende de cada cidadão. “Aconselho as pessoas a não saírem de casa de propósito para irem ver as cheias, porque depois estão eles que estão em problemas”, diz, lembrando que já acudiu muitas pessoas assim. Além de não se exporem ao perigo, há medidas simples que qualquer cidadão pode adotar: “Tenho uma sarjeta entupida com um plástico ou umas folha, em vez de tirar uma fotografia para uma rede social, posso retirar os resíduos até com o pé”. Todos devem ter cuidados redobrados ao circular nas ruas quando há um alerta da Proteção Civil e não devem tentar passar com os seus carros em lençóis ou poças de água, pois além de se desconhecer a altura da água, há carros com sistemas eletrónicos que não suportam um altura de 10 centímetros de água.
Os estragos de uma noite de temporal em Lisboa. Nem os hospitais foram poupados
Maria José Roxo pede também para que se confie cada vez mais nas previsões meteorológicas. “Muitas pessoas dizem ‘eles nunca acertam’, mas são cada vez mais fiáveis. A única coisa que o modelo não diz é a quantidade de água que vai cair, mas sabe dizer que vai chover. A ideia é: houve um alerta, então vamos pelo sentido da proteção. Basta até recordar os avisos das ondas de 5 metros e as pessoas que foram para o litoral para ver”.
Também a comunicação dos alertas, afirmam os especialistas, devia ser mais eficaz. A professora catedrática lembra que nem todos os idosos têm telemóvel, muito menos sabem ler SMS. Os avisos, corrobora Paulo Gil Martins, deviam ser feitos em estações públicas, via televisão e rádio, e pelas redes sociais.