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Quando se fala em serviços secretos, há siglas que todos conhecemos. CIA e KGB. MI6 e Mossad. Até recordamos nomes de alguns que já não existem, como Gestapo e Stasi. Mas se falarmos em China, provavelmente terá dificuldade em lembrar-se qual o organismo que trata da espionagem do país. E, no entanto, é um dos serviços secretos em funções mais poderosos do mundo.
O Ministério de Segurança do Estado (MSS na sigla em inglês), ou Guoanbu, é, de acordo com o Parlamento britânico, provavelmente o maior serviço de informações do mundo. A ele somam-se as agências de informações do Exército chinês, o Exército de Libertação Popular. Todas são coordenadas pelo Departamento de Trabalho da Frente Unida.
Nos últimos 20 anos, sob a liderança de Xi Jinping, as secretas chinesas modernizaram-se. “É muito claro que estão sujeitas a muito poucas limitações políticas. Têm-se tornado mais avançadas, mais agressivas, menos avessas ao risco do que eram”, nota ao Observador Nigel Inkster, antigo agente do MI6 durante três décadas e atual analista da China no Instituto Internacional de Estudos Estratégicos. Gail Helt, antiga analista da CIA especializada na China, concorda: “Se as tivesse de resumir numa palavra, diria ‘agressivas’. A China quer saber tudo sobre as nossas capacidades militares, os nossos esforços diplomáticos, as nossas ideias sobre Taiwan, a nossa estratégia económica — tudo.”
O alvo é, acima de todos os outros, os Estados Unidos da América. “A China é, sem dúvida, a maior ameaça de contravigilância que os Estados Unidos enfrentam. Não conheço nenhum especialista nesta área que diga outra coisa”, resumiu o antigo chefe de contravigilância da CIA, James Olson, na sua obra How to Catch a Spy: The Art of Counterintelligence. Inkster reforça: “Os EUA são a principal prioridade para a China. É neles que focam as suas capacidades de elite.” O que não significa, contudo, que também não invistam na Europa.
Para isso, têm-se especializado na ciberespionagem. Segundo o levantamento constante do norte-americano Centro de Estudos Estratégicos Internacionais, “os incidentes de espionagem da China são muitos mais do que os de qualquer outro país, até do que a Rússia”. Desde o ano 2000 que o país “foi associado a 90 campanhas de ciberespionagem nos EUA, 30% mais do que a Rússia”.
Neste mês de dezembro, várias investigações de diferentes órgãos de comunicação trouxeram à tona uma série de ações do MSS nos Estados Unidos e na Europa ao longo dos últimos meses. Razão pela qual o diretor do Gabinete Federal para Proteção da Constituição, órgão estatal alemão, deixou um alerta: “A Rússia é uma tempestade. A China são as alterações climáticas”, avisou Thomas Haldenwang à Der Spiegel.
Hacking, malaware e Inteligência Artificial. As ferramentas tecnológicas da espionagem chinesa
Nigel Inkster é taxativo: “Os objetivos das agências de informações chinesas são os objetivos centrais do Partido Comunista Chinês. Não podem ser separados”, diz. Isso significa não apenas manter o controlo total sobre a sociedade chinesa, mas também usar a espionagem internacional para promover o poderio do país no campo externo. Esse poderio, explica este antigo espião britânico, é cada vez mais entendido por Pequim como tendo o controlo de todas as tecnologias emergentes: “Inteligência artificial, computação quântica, encriptação, biotecnologia… É por isso que consideram tão importante recolher informação.”
Há menos de 20 anos, contudo, o MSS não tinha capacidades para obter este tipo de informação. As denúncias de Edward Snowden sobre a recolha de informação pela Agência de Segurança Nacional norte-americana, em 2013, alertaram a China para a necessidade de apostar na ciberespionagem: “Os responsáveis chineses estavam ainda a aprender como a internet e a tecnologia tinha sido usada contra eles, de forma que nem sequer tinham concebido”, notou um antigo agente americano à Foreign Policy em 2020. “Eles perceberam ‘É isto que nos está a faltar. Este sistema chamado internet, que não criámos, está a ser usado como arma contra nós.”
Não perderam tempo. Se, inicialmente, os hackers dos serviços de informações chineses recorriam sobretudo a campanhas de phishing, atualmente recorrem a métodos muito mais sofisiticados. O seu método principal é a de recolher informação de qualquer empresa ou órgão do Estado norte-americano, por muito insignificante que pareça: horários, orçamentos, emails, atas, faturas, etc. Um especialista na área notou recentemente ao Financial Times que informação aparentemente “inofensiva” pode ser alvo de uma triangulação que ajuda a identificar, por exemplo, espiões norte-americanos.
Mais do que isso: os ciberespiões chineses tentam obter qualquer propriedade intelectual que lhes possa ser vantajosa: planos militares, ideias de negócio, tecnologia. Tudo pode ser depois copiado e produzido na China.
Têm, até agora, tido algum grau de sucesso, como sublinha a antiga analista da CIA Gail Helt: “Basta recordar o ataque ao Gabinete de Gestão de Pessoal de 2014, em que eles obtiveram informação detalhada de todo o governo, incluindo dos serviços de informação. Para eles, foi um sucesso enorme”, relembra, a propósito daquele ataque chinês de hacking ao órgão federal americano que tem a informação de todos os funcionários públicos. Ao todo, o MSS conseguiu ter acesso a informações pessoais sobre 21,5 milhões de funcionários e antigos funcionários do Estado norte-americano.
Atualmente, as suas capacidades são ainda maiores. Em julho deste ano, o The New York Times revelou que o governo norte-americano desconfia que a China tenha conseguido colocar malaware nas redes elétricas, de comunicações e de água de algumas bases militares do país, que podem vir a ser usadas para suspender o fornecimento destes serviços no futuro.
A 27 de dezembro, o mesmo jornal fez outra revelação extraordinária: a de que os espiões chineses já conseguem usar um sistema de Inteligência Artificial que organiza toda a informação recolhida e que está a permitir identificar as redes de espionagem da própria CIA.
Como o Partido Comunista Chinês usa as grandes empresas para espiar
A tudo isso soma-se o hacking a empresas privadas. “Se você está perto da tecnologia de ponta, pode não estar interessado na geopolítica, mas a geopolítica está interessada em si”, decretou o chefe do MI5, Kevin McCallum, referindo-se à ciberespionagem chinesa.
Bem como aquele que é levado a cabo pelas próprias empresas chinesas que, na lógica monopolista chinesa, servem sempre o Estado. “Há muitas empresas e indivíduos na China envolvidos na espionagem para beneficiar os interesses nacionais”, afirma Nigel Inkster. “Muita da atividade clandestina faz parte daquilo a que chamo a ‘China, Lda.’ E que não entra necessariamente na categoria oficial de espionagem, nem sequer em ilegalidade.”
Ao todo, a China tem 150 mil empresas que pertencem ao Estado, das quais 50 mil são diretamente controladas pelo governo. Em 2018, notava o especialista Nicholas Eftimiades no The Diplomat, “o Presidente Xi Jinping ordenou todas as empresas estatais que revissem as suas leis internas para garantir que o conceito de serviço ao Partido Comunista Chinês e a segurança nacional e económica passassem a ser prioritárias face ao lucro.”
Isso explica casos como o que se registou na Polónia em 2019, por exemplo, quando foram julgados um funcionário público do país e um funcionário chinês da Huawei, acusados de espionar a favor do Estado chinês. Para os procuradores, os dois tentaram usar a empresa para influenciar o governo polaco.
Do Linkedin aos políticos. A “captura de elites” dos espiões chineses
É por isso mesmo que especialistas como Nigel Inkster consideram que, por muitos avanços tecnológicos que a China consiga na área da espionagem, há um ponto que continua a ser mais relevante: os recursos humanos. “É claro que a IA, por exemplo, consegue analisar dados e detetar ligações muito mais rapidamente do que qualquer ser humano. Mas a espionagem é mais do que isso: é convencer os políticos a prestarem atenção e a entenderem a informação que lhes está a ser mostrada”, afirma. “E não tenho a certeza que isso aconteça no sistema chinês, especialmente no que toca a mostrar informações negativas à liderança.”
Isso não significa, porém, que não tenha havido uma evolução no lado mais “humano” da espionagem chinesa. Os agentes são atualmente muito mais sofisticados do que no passado: melhoraram as capacidades de falar inglês e conseguem adaptar-se melhor a culturas diferentes, por exemplo, notava um agente norte-americano à revista The Atlantic em 2019: “Eles aprenderam bastante e cresceram”, disse.
Tanto que muitas das operações que realizam atualmente nos EUA e na Europa já são bem sucedidas. Veja-se o caso de “Robin Zhang” (nome fictício), que, durante cinco anos, conseguiu extrair informações de pessoas que contactou pelo Linkedin no Reino Unido, num caso denunciado pelo jornal The Times. Segundo o chefe do MI5, Londres suspeita que agentes chineses tenham abordado mais de 20 mil pessoas no Reino Unido através deste site.
Muitos dos abordados são antigos militares, como reconheceu o próprio responsável máximo das secretas militares britânicas ao Parlamento, dizendo que há “uma campanha ativa por parte dos chineses para recrutar pilotos [britânicos]”. Por essa razão, o Ministério da Defesa aconselhou no ano passado os seus funcionários e subcontratados a não publicitarem o facto de terem autorizações de segurança (que lhes dá acesso a algum tipo de informação classificada) nos seus perfis de Linkedin.
Nos Estados Unidos, um famoso caso ilustra esta estratégia de Pequim: quando Xu Yanjun aliciou um funcionário da GE Aviation com viagens pagas para dar conferências na China, acabou por conseguir que este lhe transmitisse informação confidencial da empresa. O agente chinês acabou por ser detido na Bélgica e, depois de extraditado, condenado a 20 anos de prisão.
Por essa razão, a antiga agente Helt admite que a China tem demonstrado muita “iniciativa” no que diz respeito a recrutar ativos nos Estados Unidos. “Não sei o que leva alguém a colaborar de livre vontade, mas algumas das táticas que eles usam — a lisonja, o acesso ao poder, encher alguém de atenção e talvez ganhos financeiros — são provavelmente difíceis de resistir para alguns.” As consequências, afirma, podem ser catastróficas: “Basta um ou dois indivíduos bem colocados para provocarem muitos danos.”
Já Nigel Inkster nota que, na Europa, os serviços secretos chineses têm tido melhores resultados naquilo a que chama “captura das elites”. “Isto é sem dúvida verdade em países como o Reino Unido, onde muitas empresas chinesas têm recebido grandes benefícios e alguns membros do establishment criaram laços para dizerem bem da China e criarem uma boa influência.”
O maior exemplo dessa “captura” surgiu a 13 de março, quando a polícia britânica anunciou ter detido dois homens suspeitos de espionagem a favor da China. Um deles era um britânico, funcionário de uma deputada, Alicia Kearns, que tem assento no comité parlamentar dos Negócios Estrangeiros.
Mas não se pense que Londres é o único local onde tal acontece. Há poucas semanas, uma investigação conjunta do Financial Times, Le Monde e Der Spiegel revelou que um antigo senador belga, do partido de extrema-direita Vlaams Belang, manteve contacto com um agente chinês para tentar influenciar a política nacional a favor do regime chinês. “O nosso objetivo é dividir os EUA e a Europa”, chegou mesmo a dizer-lhe o agente numa das SMS a que os jornais tiveram acesso.
Um caso que, para Inkster, não é dos mais graves, já que o senador em causa era de um partido com pouca influência na política externa da Bélgica. “Mas não nos podemos esquecer que a abordagem chinesa é muito paciente e é uma abordagem de pequenos passos”, nota. “Eles aprendem com os erros. E avançam.”
A reação do Ocidente. CIA focada na China, Europa mais ambivalente
Do outro lado, os serviços secretos ocidentais enfrentam as suas próprias dificuldades. A CIA, que sempre manteve o melhor contingente de espiões — aparte os soviéticos — na China continental, viu a sua principal rede ser descoberta e desmantelada há cerca de dez anos.
No livro Chinese Communist Espionage, Peter Mattis e Matthew Brazil, relatam como o MSS lidou com isso: “Para os empregados de um certo Ministério chinês em Pequim, o dia mais frio de 2011 não foi durante o inverno. Foi na manhã em que todo o pessoal foi obrigado a assistir à execução de um dos seus camaradas, que tinha sido exposto como espião da CIA, e da sua mulher, grávida. Os dois foram alvejados no pátio interior do Ministério, com o processo a ser mostrado no circuito interno de televisão”.
Desde então, Washington tem tentado reconstruir a sua rede, com a CIA a admitir que a China é a sua principal prioridade. Esse trabalho, porém, tem sofrido constrangimentos, na reação aos conflitos na Ucrânia e na Faixa da Gaza, noticiou o Wall Street Journal na passada semana. “A realidade é que não temos recursos suficientes para explorar todo o mundo”, reconheceu um antigo agente ao jornal.
Os especialistas ouvidos pelo Observador, no entanto, consideram que as guerras recentes não têm sido decisivas para afetar o foco na China e defendem que a CIA continua focada em Pequim. “É um erro achar que a China deixou alguma vez de ser a prioridade”, nota a ex-agente Helt.
Nigel Inkster, por seu turno, considera que pode haver “alguma dissipação dos esforços”, mas não acha que esse seja o principal problema para a CIA no que diz respeito à espionagem sobre o China. Os principais problemas, diz, têm sido o foco durante décadas no terrorismo e a falta de “capacidades linguísticas e de entendimento cultural e político da China”.
O mesmo já tinha sido notado em 2020 pela especialista Anne-Marie Brady: “Penetrar o véu das línguas chinesas é difícil. O Ocidente não tem tido interesse em fazer o esforço. Outra razão: a cultura popular não criou nenhum James Bond chinês. Ainda.”
O diretor da CIA, William Burns, assegura, porém, que a República Popular da China é a principal prioridade da sua agência, tendo duplicado o seu orçamento para esta área do globo. E Nigel Inkster considera que a CIA, com alguma ajuda do MI6, são as únicas secretas em todo o mundo com capacidade para responder ao MSS chinês nesta guerra de espionagem. “Não consigo pensar em nenhuma agência de informações europeia, por exemplo, que consiga competir com a China nas circunstâncias atuais.”
Um problema, que, diz, é muito mais profundo do que os serviços de informação. “A grande maioria dos países europeus é ambivalente em relação à China”, decreta. “Normalmente, têm um Ministério da Economia que quer a melhor relação comercial possível com a China, enquanto que tem outros Ministérios preocupados com os riscos que isso traz. E vão oscilando entre as duas posições.”