Trabalhou em várias áreas para pagar as contas e foi descobrindo o que queria fazer pelo caminho, sem traçar planos, embora a arte já fosse uma certeza. Quando acabou o curso de Artes Plásticas na Faculdade de Belas Artes do Porto, Cíntia Coutinho voltou para a Figueira da Foz, de onde é natural, e criou uma marca de roupa com a ajuda da mãe e da avó. Só vendia peças únicas, estampadas com cores vivas, caras e pompons. Chamou-lhe Espirro para refletir a sua personalidade: “divertida, bem disposta, positiva, desprendida”, como descreve em entrevista ao Observador. É com esse mesmo nome que hoje é seguida no Instagram por mais de 45 mil pessoas. Mas o negócio agora é outro.
Descobriu as tatuagens por acaso, à procura de uma carreira artística que lhe desse uma certa liberdade. Inscreveu-se num curso com um tatuador em Lisboa e apaixonou-se pelo processo, do início ao fim. Mas as pessoas também se apaixonaram por ela e os seguidores acumularam-se rapidamente nas redes sociais. Quem dá de caras com a sua conta de Instagram, encontra projetos abstratos, cheios de cores, traços toscos, parecem desenhos de crianças. É curioso, porque também ela passa por miúda. “Quando digo que tenho 32 anos a malta diz ‘ah! Afinal não és uma pita’.”
Se tivesse de encaixar o seu estilo em algum lado, era no ignorant style (“estilo ignorante”, em português), uma vertente alternativa da tatuagem que rejeita a perfeição do mainstream. A Espirro saltou de um pequeno projeto que fazia a partir de casa para um estúdio alugado. Agora, está no Fiasco, uma espécie de coletivo de tatuadores em Lisboa que abre portas à experimentação e a pessoas de todo o mundo. Em troca, também é recebida lá fora, o que é oportuno, já que os convites para ir tatuar lhe chegam de todo o lado.
Com a Espirro já foi a Londres, Paris, Amesterdão, Berlim e Barcelona. O objetivo para o ano é sair da Europa, rumo a Tel Aviv, onde lhe pedem muitas vezes para ir. Mas também quer ir a Bali. Porquê? “Porque apetece-me ir a Bali”, responde. Já perdeu a conta ao número de tatuagens que fez desde 2016, quando tudo começou. Também não sabe quantas tem no próprio corpo. “Talvez umas 60”, atira para o ar.
Lembra-se da primeira tatuagem que fez?
Sim. Passei um mês a fazer um curso num estúdio de um tatuador aqui em Lisboa, a aprender como se tatuava, as técnicas básicas. Queria perceber se gostava, se era uma coisa em que fazia sentido investir. Nesse período tatuei uma colega [de uma loja de roupa]. Já não falo com ela há anos. Foi uma tatuagem flash desenhada por mim. Uma baleia, num braço.
Como começou a Espirro?
Começou em 2014 como uma marca de roupa, abrangeu ilustração e pintura também. Passados dois anos, comecei a tatuar e, sendo eu a única criativa por detrás da Espirro, não achei que fizesse sentido criar outro projeto em paralelo.
Fale-me mais sobre a Espirro enquanto marca de roupa.
Foi depois de acabar a licenciatura, quando voltei para a Figueira da Foz. Quem costurava era a minha avó, que era modista, e a minha mãe, porque eu só dou uns toques na costura. Gosto de pensar as roupas e ver o resultado final, mas para tudo o que são coisinhas muito certinhas, que é o que a costura pede, eu não tenho paciência. A ideia era fazer sempre peças únicas, divertidas, castiças, com caras, pompons, muitas cores. Já se sentia aí um bocado a minha ideia das cores.
E porquê roupa?
Comecei por brincadeira a fazer para mim. Via às vezes coisas de designers na Internet que custavam 500 euros e tentava replicar. Quando dei por ela, estava também a fazer roupa para os meus amigos e criei uma marca. Fiz uma loja online, fui a feiras, mas estava sempre a precisar tanto da minha mãe como da minha avó. É muito difícil fazer uma peça única com um tamanho único, porque acontecia que quem queria determinada peça precisava de um tamanho diferente. Estava a desenvolver uma área criativa de que gostava, mas faltava-me um bocadinho de expressão e de liberdade. Quando comecei a tatuar juntei os dois, porque os desenhos que fazia como tatuadora também serviam para por nas roupas. Achei que tudo se interligava e fazia sentido, mas depois fui-me apaixonando pela tattoo e as roupas tornaram-se um plano B.
Em relação à técnica que usa para tatuar, em que se distingue na prática? Há tintas especiais ou ferramentas de trabalho específicas a que recorra?
O que me diferencia acho que não tem a ver com a técnica. As técnicas que uso são comuns. Acho que o que pode ser diferente é que tento abordar a tatuagem da mesma forma que abordo uma pintura ou um desenho, para que ambas possam ser complementares, existir em simbiose. Trato estes dois formatos como se fossem um, extrapolando de um para o outro e devolvendo ao anterior. Daí, podem eventualmente surgir resultados que visualmente os ligam, mas que tecnicamente já lhes pertenciam.
Já fez alguma tatuagem no próprio corpo?
Sim, já fiz algumas. A primeira foi logo quando comecei a tatuar, foi a maneira que me pareceu mais sensata para entender o que estava a fazer aos outros. Depois disso, eventualmente fiz outras para experimentar máquinas novas, técnicas e ideias.
Fale-me um pouco sobre o Fiasco e sobre a forma como surgiu este coletivo.
O Fiasco é um grupo de artistas que se encontraram no universo da tatuagem, mas num ambiente mais descontraído do que o habitual. É um espaço aberto, em constante mutação. Eu e a Catherina [Not From This Box] vimos e agregámos vertentes artísticas variadas, desde a fotografia às artes plásticas, e encontrámos na tatuagem um ponto comum. Construímos o coletivo num pilar de experimentação e abertura individual, criativa e de comunidade artística onde se pode explorar novos formatos, técnicas e colaboração. Recebemos pessoas de todo o lado, tal como podemos ser recebidas em vários estúdios pelo mundo.
As pessoas que a procuram pedem-lhe coisas em concreto ou dão-lhe liberdade criativa?
Acontecem-me as duas coisas, o que é fixe porque acabo por conhecer imensas coisas que não conheceria de outra forma. Filmes ou músicas, por exemplo. Às vezes acontece os clientes quererem juntar 10 tatuagens numa só e tento orientá-los, digo que vai ficar uma bela “salganhada”. Mas gosto que me deem as suas ideias e eu tento, dentro do que me pedem, fazer uma versão minha. O desafio é fixe.
Alguma algum trabalho correu mal, ou a liberdade do abstrato ajuda a que nada corra realmente mal?
A liberdade do abstrato é relativa. Sou muito exigente comigo e com o meu trabalho e por vezes fico a indagar sobre o que podia ter feito de diferente ou melhor. O abstrato pode salvaguardar na evidência de um erro para quem vê uma composição, mas ser óbvio ou quase incomodativo para quem tem a tatuagem, ou até para mim, que a criei. Isto porque cada composição é trabalhada com o cliente até chegarmos a um entendimento, precisamente para excluir a possibilidade de correr mal. O que pode acontecer é, ao ver o resultado final, preferir que certo elemento estivesse noutro sítio, noutra cor ou não existisse, ou a pessoa sentir o mesmo em relação a algum elemento que eu tenha proposto. Mas também é por isso que, até começar a colocar a tinta na pele de alguém, no decorrer do processo, devo perguntar umas três ou quatro vezes se têm certeza e se está como querem. Se não estiver, agora é o momento.
O que gosta de ouvir enquanto trabalha?
Gosto de ouvir praticamente todo o tipo de música exceto jazz, punk rock e metal. Quando preciso de pensar e tomar decisões, encontro conforto no silêncio.
Por que motivo não responde a mensagens pelo Instagram, como indica no perfil?
Eu entendo e valorizo o papel que o Instagram tem na difusão de trabalho artístico hoje em dia, mas tem sido uma necessidade minha filtrar o tempo que passo nas redes sociais e ao telemóvel em geral. Estou a conseguir encontrar um equilíbrio saudável desta maneira.
Alguém que lhe envie um email hoje para saber mais informações recebe de volta uma resposta automática. Está a ser difícil gerir todas as mensagens?
Já não sou eu a gerir, isso é fixe. Tenho uma pessoa para me ajudar com isso.
Quando começou a ter uma assistente para ajudar?
Foi há cerca de 4 anos, quando entendi que, tal como com as mensagens no Instagram, já não estava a conseguir dar resposta a tempo aos pedidos que me estavam a chegar. Essa tarefa estava também a retirar-me muito tempo de trabalho criativo.
Quanto tempo é que um cliente tem de esperar, em média, desde que envia um email até conseguir visitá-la?
Depende muito. Antes do verão há mais procura porque a malta começa toda a mostrar a pele — apesar do inverno ser a melhor altura para tatuar. Mas a lógica é a mesma de comprar um biquíni, ninguém vai comprar um biquíni no inverno. Então, antes do verão começa tudo a lembrar-se que quer tatuagens e em janeiro não tenho muito trabalho. Mas, se tiver de dar uma média, é um mês e meio.
Como é um dia normal de trabalho na Espirro?
Se não tiver projetos paralelos à tatuagem, cuido de mim e dedico tempo ao que gosto e preciso de fazer, seja yoga, meditação, tomar um bom pequeno almoço, fazer um bolo, desenhar, responder a emails. Faço as tarefas de manhã e tatuo depois de almoço — por norma só tatuo à tarde. Depois do trabalho, quando possível, tento estar com os meus amigos. Seja a ver uma exposição, a beber um copo, a dar um passeio mais longo com a Baguete [a sua cadela].
Num primeiro olhar, há uma qualidade quase infantil nas tatuagens da Espirro. As inspirações vêm dos tempos de criança?
Lembro-me de gostar de desenhar quando era pequena. Não era um fascínio, mas acabava por ser instintivo. De alguma maneira encontrava algum sentido nessa expressão. No entanto, mais do que desenhar interessava-me explorar os materiais, tinha curiosidade em perceber o que era possível fazer com eles, como reagiam. Juntava farinha, ketchup e massa para ver o que acontecia ou fazia cinzeiros com lama na barragem de Montargil, para onde íamos todos os verões.
Com que olhos é que a família viu esta opção profissional pouco tradicional?
Inicialmente desaprovavam, mas não de uma forma negativa. Como, desde de pequena, tive sempre muitas ideias e vontades relativamente às artes, pensaram que esta seria só mais uma e tinham esperança de que passasse. Isto porque tinham o estigma de que o mundo da tatuagem era estar num estúdio escuro, a fazer caveiras e a ouvir Rock’n’Roll. Passados uns meses, quando perceberam que a minha ideia era totalmente o oposto — desenhar coisas divertidas e coloridas — apoiaram-me totalmente e são os meus maiores fãs.
Sente que ainda existe algum tipo de estigma em relação à profissão?
Não sinto isso na pele, mas sinto com os meus clientes. Às vezes dizem-me que não podem fazer tatuagens em certos sítios por causa do trabalho. Apesar de achar que temos de romper com isso, eu própria tenho essa preocupação. Não quero que ninguém perca o trabalho porque fez uma tatuagem mais exposta. Se, com 22 anos, não sabem o que querem ser, não façam uma tatuagem na mão. Costumo perguntar sempre se têm a certeza, porque sei que em Portugal ainda existe um bocadinho esse estigma em certas áreas. Mas já tatuei pilotos, que supostamente não podem ter tatuagens e que preferem não abdicar disso.
Quem tem trabalhos em áreas mais convencionais sofre mais com isso?
Às vezes tem a ver com o medo que o chefe tem do que o cliente possa pensar e o cliente se calhar nem vai pensar nada. É um ciclo vicioso. Ainda bem que há muita gente a romper com ele, mas ao mesmo tempo percebo que este seja um mundo muito competitivo e que haja certos riscos que as pessoas não podem correr. Isto são as conversas que tenho com os meus clientes. Não sei se na prática é mesmo o que acontece.
Quando começaram a surgir os convites para ir lá fora tatuar?
Diria que foi exponencial de há uns 5 anos para cá. Já tatuei em Barcelona, Berlim, Londres, Amesterdão, Paris. O plano em 2023 é tatuar fora da Europa.
Então nunca tatuou fora da Europa?
Não. Gostava de ir a Tel Aviv porque recebo muitas mensagens para ir lá. Há um estúdio [de tatuagens] específico de que gosto e que gostava de conhecer. E gostava de ir a Bali porque apetece-me ir a Bali (risos). É um sítio que já está muito europeizado, tem muitos estúdios e há muita malta a viajar para lá. Sei que há trabalho lá, já recebi uma mensagem ou outra. É bom conjugar isso de haver sítios a que quero mesmo ir e poder levar a máquina atrás e trabalhar dois dias, conhecer novas pessoas e fazer dinheiro, o que ajuda a pagar a viagem. Faz sentido fazer essa junção.
Há algum trabalho por que guarde um orgulho especial?
Sinto-me uma sortuda, porque tenho muitos trabalhos de que me orgulho, mas tenho um carinho especial pelos projetos de corpo inteiro. São tatuagens de um ou dois dias inteiros a tatuar. É duro física e mentalmente, mas compensa tanto pelo trabalho final como pela conexão criada com a pessoa.
Em que se distingue um trabalho de corpo inteiro?
O processo é idêntico ao de uma tatuagem de 2 centímetros. Por norma, as pessoas dão-me uma liberdade criativa grande para ser intuitiva e fazer o que sinto que vai resultar dentro de uma composição. Ouço muito a frase “confio em ti, faz o que quiseres”. Já aconteceu serem dois dias inteiros a tatuar. Às vezes, estou há tanto tempo a fazer um trabalho que nem é preciso estarmos a falar, porque estamos ali para o mesmo e acaba por haver uma troca de energia. Toda a gente sabe que as tatuagens doem um bocadinho e eu, como tatuadora, também começo às tantas a ter dores de costas e na mão, mas estamos ali os dois para o mesmo. Acho que consegues sentir isso em qualquer relação: uma coisa é ires beber um café de 20 minutos e outra coisa é passares um fim de semana inteiro com uma pessoa.