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Cláudio avança em direção às grades, tingidas de um azul gasto pelo tempo. Atrás delas está Scar, um tigre grande e pachorrento, que desliza até à extremidade do espaço e encosta o focinho ao metal. “Andá cá, anda cá”, diz-lhe o domador, enquanto o animal abre muito a boca, soltando um ronco profundo. “Lindo, lindo, meu príncipe”, continua o dono, numa dança de afetos que oscila entre as festas e os beijos. “Se a minha mulher vê isto… ainda fica com ciúmes…”, atira, numa gargalhada.
Scar é um dos dois tigres que passeiam languidamente naquele retângulo convertido em casa há 19 anos. O outro chama-se Príncipe e parece menos dado ao convívio com os humanos. Está deitado numa espécie de prateleira na parte superior do espaço, com o focinho colado a uma janela minúscula de onde vai deitando o olho ao mundo. Os dois animais vivem numa jaula atrelada a um camião TIR. Está colada a uma área um pouco maior, circular e gradeada, que se desenrola para a frente — e onde os animais podem passear e abandonar, por momentos, a exiguidade da cela. Do lado esquerdo, há uma jaula igual, onde repousa um hipopótamo com o focinho entalado entre duas grades. Do outro lado da estrada, dois camelos caminham lentamente e à solta por entre um terreno relvado. A noite, passam-na no reboque; o dia, ao ar livre.
Cláudio Torralvo recebe o Observador em Corticeiro de Cima, uma pequena povoação do concelho de Cantanhede, com pouco mais de 700 habitantes. Os cartazes à beira da estrada — onde surge altivo ao centro e tendo, como retaguarda, uma zebra, um hipopótamo, um tigre e vários cavalos — anunciam “30 animais em pista” e o “inacreditável único hipopótamo amestrado do mundo”. São esses cartazes que nos vão guiando até um descampado com um número incontável de camiões, caravanas e, ao centro, a tenda branca que já está montada para dois dias de espetáculo.
Longe vão os tempos em que o proprietário do Circo Cláudio tinha 30 animais em pista. A lei dos circos, que foi aprovada em 2009, proibiu a compra e reprodução de animais ao abrigo da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção, também conhecida como CITES — e que abrange, por exemplo, macacos, elefantes, leões, tigres ou hipopótamos. Na prática, quer isto dizer que há nove anos que só podem ser exibidos em circos os animais selvagens que já existiam na altura da entrada em vigor da lei. “Os animais tiveram de ser todos castrados. Foi um horror, entraram em stress, porque foram já castrados adultos. Ninguém queria fazer aquilo, mas lá encontrei um lugar em Braga onde fizeram o trabalho”, explica Cláudio. “Os animais lembram-se sempre de se colocarem por cima da fêmea. O stress era tanto que roíam tudo. Até espetaram os dentes nos pneus que aí tinha para eles brincarem…”.
Mas a proibição pode, agora, ser mais funda. Em fevereiro deste ano, os deputados da Comissão de Cultura da Assembleia da República anunciaram a criação de um grupo de trabalho para discutir o fim dos animais nos circos. Cada partido nomeou o seu representante, foram ouvidos especialistas e entidades, e estará para breve o fumo branco quanto ao assunto — ou seja, a votação dos dois projetos-lei que foram, entretanto, criados.
Cláudio Torralvo nem quer pensar no amanhã depois de uma eventual proibição. “Ainda não consigo… repare, tenho 44 anos, fiz isto a vida toda, o que é que eu vou fazer? Que número vou fazer?”, questiona, com o desalento a fechar-lhe o rosto. O circo corre-lhe na família há cinco gerações. Começou no trapézio com dez anos e ali ficou até aos 30, numa altura em que já domava tigres. “Depois comecei a ficar pesado e já se tornava perigoso, porque eram quatro a cinco espetáculos por dia e os músculos já não respondiam. Então deixei o trapézio e dediquei-me só aos animais”, conta. Hoje, os oito filhos também já habitam o circo: uns são trapezistas, outros malabaristas, outros ainda palhaços — e há um domador.
O empresário não entende os argumentos de bem-estar animal evocados pelos especialistas para defender a proibição (já lá vamos). “Mas qual bem-estar? Olhe para os meus animais”, apela, apontando em direção às jaulas. “Não estão bem tratados? Têm comida, têm tudo… são vistos regularmente por veterinários, sem isso não podem atuar”, assegura. Argumentos à parte, Cláudio não tem dúvidas num aspeto: a essência do circo são os animais. “Veja, há colegas meus que deixaram os animais e estão a passar muito mal. O Circo Chen, por exemplo, já só faz Natais. Durante o ano não tem capacidade para viajar porque o dinheiro que fazia, sem animais, não chegava para alimentar o circo. O Mundial teve de se mudar para Espanha porque aqui não vivia. Os animais foram morrendo, não podiam comprar mais, por isso tiveram de se mudar…”, diz.
A mesma história se escreve, garante Cláudio, na primeira pessoa do singular. Para o ilustrar, recorda a experiência que fez há dois anos. “Pensei: ‘os animais vão acabar’, então tentei investir noutro género de espetáculo. Mudei o nome para Circo América, comprei um carro que salta no ar — que me custou uma pipa de massa tão grande que dava para comprar um apartamento — e sabe o resultado? Três meses depois tive de ir buscar novamente os animais, senão morríamos todos à fome“, assegura. A temporada de verão acrescentou mais um exemplo à conversa. “Estive na Praia da Vagueira e outro colega na Praia de Mira, que tem muito mais pessoas. O espetáculo dele era melhor do que o meu, tinha mais artistas. Mas o meu tinha mais espectadores. Porque ele não tinha animais e eu tinha“, garante. “Sem animais isto não funciona. Não somos o Cirque du Soleil, que vem a Lisboa, vai embora, faz as grandes capitais europeias e ganha subsídios. Eles não vão à província. E mesmo que fossem não tinham público”, sentencia.
“Olhe para as pessoas”, continua, apontando para um grupo de crianças coladas à jaula dos tigres. “O que é que eles vêm aqui ver?”, questiona, para ele próprio responder. “São os animais. É por isso que as pessoas vêm aqui. Quando eles acabarem, acaba o circo. Aponte aí o que lhe estou a dizer”.
Proibir? — os argumentos do sim e do não
Assim como Cláudio, também Gonçalo Diniz, Relações Públicas do Circo Victor Hugo Cardinali, não entende os argumentos de quem defende a proibição. “Há uma enorme falta de conhecimento dos partidos. O discurso que têm assenta em associações de defesa dos animais que apresentam argumentos falaciosos, com base em circos de países de terceiro mundo. Mostram imagens de animais doentes e velhos e tentam transmitir que todos os circos são assim, mas não”, explica ao Observador por telefone (o Circo Victor Hugo Cardinali não atendeu ao pedido do nosso jornal para visitar as suas instalações).
Mas todas as alegações de bem-estar animal, por parte dos circos, não encontram eco nos especialistas ouvidos pelo Observador. E a questão vai mais além das imagens de maus tratos por vezes disseminadas e prende-se, sobretudo, com dois aspetos: a itinerância e o confinamento permanente a que os animais são votados. “Eu diria que é contundente afirmar que é impossível a um animal ter bem-estar nos circos, por muito bem cuidado que seja“, explica Leonor Galhardo, consultora de bem-estar animal. “Os circos têm uma restrição de espaço de tal maneira grande que não consigo pensar em nenhuma espécie que consiga, no espaço que tem disponível, exibir os padrões de comportamento semelhantes ao seu repertório natural”, conclui.
A especialista refere ainda quais os indicadores que lhe permitem tirar essas conclusões. “Há uma série de evidências de comportamentos anormais nos animais de circo — nomeadamente comportamentos estereotipados e repetitivos. Ursos a morder barras, animais com índice de atividade extremamente baixo, com agressividade excessiva, auto-mutilações que causam graves feridas a animais… há muitos indicadores que, com uma observação atenta, facilmente se encontram nos animais de circo”, assegura. “A restrição comportamental a que são votados permite perfeitamente inferir que esses animais não fazem o que um animal da sua espécie teria interesse e direito a fazer diariamente“.
A distinção entre animais domésticos e selvagens
O que nos leva à primeira separação de águas a fazer. É importante distinguir entre animais domésticos e selvagens no momento de pensar numa eventual proibição? Luís Vicente, biólogo da Universidade de Lisboa e especialista em comportamento animal, ecologia e neurobiologia, acredita que sim. “Os cães estão habituados a humanos há 14 mil anos, mas quando falamos de leões, tigres, elefantes, ou até répteis e aves selvagens, a história é outra. Tenho sérias dúvidas de que podemos manter esses animais felizes em circos. Os animais selvagens ocupam áreas vitais muito grandes, são animais que precisam muito de espaço e que não estão, historicamente, habituados a humanos”, sublinha.
“Quanto aos domésticos — e aqui falo, fundamentalmente, de cães e gatos —, a ideia que tenho, pelos estudos em que participei, é que não há perda de qualidade de vida, desde que estes animais tenham os devidos cuidados: sejam bem alimentados e brinquem com eles”, continua o especialista. “Pelos dados bioquímicos de que dispomos, estes animais domésticos são felizes quando passeiam connosco na rua, quando brincamos com eles, quando lhes damos de comer”.
Luís Vicente faz um parêntesis na benevolência quanto à utilização de animais domésticos no circo, para abordar os cavalos. “Quando falamos de equídeos, a conversa é outra”, alerta o especialista. “São animais que precisam de áreas vitais extensas, por isso não recomendo que sejam utilizados neste contexto”. Leonor Galhardo está de acordo e levanta outro aspeto. “Não acho que cavalos e póneis tenham condições facilitadas em circos que são, por natureza, itinerantes. São animais que stressam muito durante o transporte“, assinala.
Os comportamentos humanizados — e a questão ética
Tal como Luís Vicente, a consultora de bem-estar animal também é apologista da distinção entre os dois tipos de animais, mas essa divisão não a leva às mesmas conclusões de Luís Vicente, ao introduzir na discussão a variável ética. “Os animais domésticos adaptaram-se a uma convivência muito próxima com os seres humanos, o que lhes confere maior capacidade de adaptação a ambientes artificiais. No entanto, há duas questões que me mantêm com dificuldades para aceitar o uso destes animais no circo”, avança a especialista. “A primeira é que há espécies de animais domésticos que também passam mal com transportes frequentes e com a falta de proteção que os circos, muitas vezes, lhes dão”, elucida. “Mas há outra questão que abrange tanto os animais selvagens como os domésticos: é que não acho que seja necessário, e sequer aceitável, do ponto de vista ético, usar animais num contexto de entretenimento, em que se lhes pede para entrarem em números antropomórficos, artificiais, que servem para divertir as pessoas”, conclui.
Gonçalo Diniz responde à preocupação dos especialistas relativamente aos animais de circo serem treinados para ter comportamentos fora do seu repertório natural — e, portanto, humanizados, com roupas e padrões de ação próximos dos adotados pelos homens. O Relações Públicas do Circo Victor Hugo Cardinali garante que os circos evoluíram também neste aspeto. “No início, os animais eram mostrados como umas bestas, ferozes, a rosnar, era um espetáculo diferente. Depois passou-se à humanização dos animais, com macacos vestidos de homem e isso hoje também não se vê”, garante. “Os números que apresentamos representam os comportamentos que o animal tem na natureza”, continua.
“Por exemplo, há um passo equestre, que é o piafé, e que é o comportamento que o garanhão tem quando está com o cio. Um tigre a saltar de uma banquilha para a outra equivale ao salto que o tigre faz quando caça uma presa“, ilustra. Quisemos, também, saber que números fazem os animais de Cláudio Torralvo no seu circo. Os tigres saltam entre banquilhas — a exibição mais comum entre os felinos —, os camelos circulam à roda da pista e o hipopótamo vai ao centro do palco comer um melão. “Ele parte o melão com a boca, fica com o sumo todo a cair. Os miúdos adoram aquilo”, diz ao Observador.
Os animais nasceram em cativeiro
É o mesmo Cláudio Torralvo que nos introduz a outro argumento usado, frequentemente, para defender a utilização de animais no circo. Enquanto caminhamos pela cela dos tigres e os vemos deambular pelo espaço, diz-nos, com uma ponta de orgulho. “Fui eu que os criei a biberão no circo do meu pai”. Uns metros mais à frente, volta a este tema. “Estes animais não são de selva, eles não sabem o que é a selva. Fui eu que ensinei estes animais a fazerem tudo, até as necessidades”. Gonçalo Diniz, noutro espaço e noutro tempo, concorda. “Hoje em dia, nenhum animal de circo em toda a Europa é capturado do meio selvagem, são todos nascidos em cativeiro”.
Argumento que, no entender de Leonor Galhardo, não podia ser mais falacioso. “Um animal selvagem evoluiu, ao longo de milhares de milhões de anos, para se adaptar ao ambiente natural onde vive. Não é por estar duas ou três gerações retido em cativeiro que deixa de ter as necessidades que evoluíram com ele durante esses milhares de milhões de anos“, sentencia. E dá um exemplo. “Imagine uma uma ave que migra porque a temperatura no meio natural baixa e têm menos acesso a alimentos”, ilustra. “Podemos querer colocá-la numa jaula e dar-lhe a temperatura e a alimentação de que ela necessita. Não é por isso que ela não vai ter necessidade de migrar porque os genes são aqueles. Há uma série de fatores que lhe vão causar uma motivação muito forte para migrar”.
Esta dinâmica, garante, acontece com todos os animais, mesmo os que são “mais inteligentes, como os primatas, os ursos, os elefantes, que até conseguem um certo grau de adaptação, mas por outro lado também compreendem a sua realidade e o sofrimento deles é complexo”, diz a especialista. “Porque têm necessidades cognitivas que não são satisfeitas, há problemas graves a nível de emoções e de satisfação de necessidades cognitivas nestes animais”.
Luís Vicente está de acordo. “Não é um argumento minimamente válido e não o aceito enquanto investigador de comportamento animal”, atira. “Essas gerações de animais estiveram constrangidas a uma vida e a um espaço que não têm nada a ver com aquilo que eles são, com o que chamamos o seu mundo próprio. O seu mundo próprio é muito mais vasto do que o mundo de um circo. São animais que necessitam de estar sujeitos a uma variedade de estímulos que têm na natureza e que, em cativeiro, não têm”.
E os jardins zoológicos?
A assunção de que o cativeiro não substitui os estímulos do meio natural atira-nos para outra questão, muitas vezes levantada pelos proprietários dos circos. E as outras formas de cativeiro — em especial os jardins zoológicos? Luís Vicente reconhece alguma melhoria nas condições prestadas aos animais nos zoos mas, ainda assim, mantém o ceticismo. “Fiz alguns trabalhos para jardins zoológicos em Portugal e no estrangeiro, os chamados Projetos de Enriquecimento Ambiental [que tem como objetivo estimular os comportamentos naturais de cada espécie, melhorando o bem-estar animal] e conseguimos, de certa maneira, enriquecer o ambiente em que esses animais vivem. Mas, mesmo assim… também sou contra os animais em jardins zoológicos“, defende o especialista.
Leonor Galhardo é mais otimista. “Comparando o melhor dos circos e o melhor dos parques zoológicos, podemos dizer que os parques zoológicos estão francamente em vantagem relativamente ao que podemos facultar a animais selvagens”, sentencia. Mas, adverte, é preciso olhar caso a caso. “Também depende das espécies. Não há nenhum parque zoológico, por melhor que seja, que consiga, por exemplo, alojar um urso polar em condições adequadas. Mas se quiser alojar, por exemplo, avestruzes, entre o melhor dos circos e o melhor dos parques zoológicos, o zoo tem muito mais condições de dar bem-estar a uma avestruz”.
A consultora de bem-estar animal considera que não existe qualquer discriminação — ou mesmo perseguição — aos circos. “A questão das touradas tem sido extremamente escrutinada, os parques zoológicos foram alvo de uma campanha brutal durante vários anos por parte de ONG’s, das quais resultaram alguns relatórios ferozes. Esses relatórios determinaram uma agitação social que fechou alguns parques zoológicos e melhorou as condições de outros tantos”. “Isto não é uma guerra com ninguém, é uma constatação que os animais merecem bem-estar”, sintetiza.
Também Maria Manuel Rola, representante do Bloco de Esquerda no grupo de trabalho do Parlamento, explica a diferença que considera existir entre as duas situações de cativeiro. “O caso dos circos preocupa-nos particularmente porque, além de estarem em cativeiro, os animais são treinados para terem comportamentos que não são do seu repertório natural e são mantidos em situação de itinerância, o que os stressa ainda mais”.
O circo educa?
Na audição no grupo de trabalho que está a discutir o tema, Gonçalo Diniz apresentou outro argumento, assente no valor educativo do circo — que teria o potencial de revelar as espécies selvagens às pessoas e até de as proteger. “Hoje há mais tigres em cativeiro do que em estado selvagem. Em 10 anos, 43% do habitat do tigre desapareceu. Os circos podem e devem fomentar a preservação da biodiversidade, criar um contacto direto com as pessoas, também porque o humano esforça-se mais para proteger o que conhece”, referiu, exemplificando: “Se uma criança vai ao circo e toma contacto com um elefante, vai para casa e pensa: ‘Gostei deste animal, vou protegê-lo’. É importante reforçarmos a ideia de que os circos podem e devem fomentar a conservação da natureza”, sublinha.
Nesse sentido, o responsável diz mesmo ao Observador que o Circo Victor Hugo Cardinali vai apostar mais na vertente pedagógica. “Vamos às escolas e passar a mensagem da preservação da natureza nos nossos espetáculos, o circo pode fazer isso. O circo é itinerante, visita aldeias e vilas onde não há a possibilidade de ir a um jardim zoológico”, refere.
Os especialistas ouvidos pelo Observador garantem que tudo não passa de boas intenções. Luís Vicente esvazia completamente o valor educativo dos circos. “Isso é um disparate. Se queremos fazer conservação, não fazemos exibições. Há o argumento de que, se não exibirmos os animais, as crianças não os vêem. Mas estão ali a vê-los fazerem figura de parvos“, considera. Do ponto de vista pedagógico, é desastroso exibir animais em cativeiro, porque condiciona os visitantes a pensar que aquilo é a vida natural de um animal”. O biólogo é acompanhado por Leonor Galhardo. “Acho que num lugar onde o comportamento dos animais está tão profundamente alterado, não há qualquer potencial educativo nisso e, pelo contrário, há um potencial deseducativo porque passa uma mensagem errada sobre o que hoje em dia sabemos sobre educação ambiental”.
E deixa ainda uma pergunta: “Imagine um tigre dentro de uma jaula. Acha que vale a pena a vida de um tigre em nome de mostrar a uma criança que um tigre tem riscas, tem quatro patas e bigodes? Eventualmente valerá a pena uma criança ter noção da complexidade daquela entidade e isso atira-nos para a dimensão do comportamento, que no circo é completamente impossível de ser observada”, sustenta.
O que defendem os partidos?
Entre os seis partidos que participam no grupo de trabalho criado para legislar a proibição dos animais no circo, as águas dividem-se entre os entusiastas do ‘sim’, os que estão inclinados para o ‘não’, os indecisos e os mais moderados. Trocando por miúdos, e em termos genéricos — já vamos ao detalhe —, o PS, o Bloco de Esquerda e o PAN juntaram-se num mesmo projeto-lei que visa a proibição dos animais no circo, o PCP propôs um projeto autónomo mais moderado, o PSD começou contra a proibição e agora está sensível a uma mudança desde que se cumpram certos pressupostos, e o CDS está contra a proibição e a favor da lei de 2009 que regulamenta o setor.
O projeto-lei do PCP
Em traços gerais, o projeto do Partido Comunista Português visa desincentivar a utilização dos animais selvagens pelos circos sem a criminalizar. Quer isto dizer que a solução legislativa apresentada prevê um programa de seis anos para que os proprietários dos circos entreguem os animais de forma voluntária. Como contrapartida, recebem uma indemnização no valor pago pelo animal, mais um valor estimado do que ainda lucrariam com esse animal e ainda um apoio à reconversão profissional. “Um tratador não pode ir para o desemprego, por isso tem de ser apoiado na sua reconversão. O Estado determinaria os termos dessa reconversão, para serem dadas às pessoas as opções necessárias para, na sua área ou noutra, continuarem a ter uma profissão”, explica ao Observador Miguel Tiago, que integrou o grupo de trabalho antes de ser substituído como deputado do partido.
Ao fim desses seis anos, esclarece ainda, os circos poderiam continuar a utilizar os animais, mas sem os publicitar. “Atenção que já estamos a falar de poucos animais, porque a maioria já está proibida desde 2009”, assinala. Em caso de adesão ao programa de entrega voluntária, seriam o ICNF (Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas) ou a Direção Geral de Veterinária a receber o animal e a encaminhá-lo para um santuário adequado — ou seja, um espaço protegido onde os animais encontram condições semelhantes ao seu meio natural.
Miguel Tiago acredita que o facto de a entrega dos animais ser voluntária não seria um entrave à eficácia da medida. “Se os circos não os quiserem entregar, deixam de poder publicitar o espetáculo e os lucros também são incertos. É um risco que o proprietário assume, mas julgamos que o incentivo seria suficiente”, defende. Miguel Tiago sublinha que o enfoque deste projeto-lei são as pessoas e não os animais. “Colocamos as pessoas em primeiro lugar. Se há uma pessoa que vive disto, não podemos lançá-la no desemprego por uma atividade que agora se acha que é um crime. Isto apesar de partilharmos a preocupação de que o espetáculo deve menorizar o sofrimento dos animais”, diz, para sintetizar tudo numa premissa. “O que queremos é incentivar que as pessoas abandonem a sua atividade e passem para outra, mas é uma decisão do próprio, não queremos criminalizar o comportamento”.
O projeto-lei do PS, PAN e Bloco de Esquerda
É um projeto que visa a proibição dos animais selvagens nos circos — e que resulta do consenso encontrado entre os três partidos, que fizeram ajustes aos seus projetos iniciais. Tal como a proposta do PCP, também aqui existe um período onde pode vigorar a entrega voluntária — durante a qual os circos podem continuar a utilizar os animais que já lá existem. A diferença é que, passado esse período, os circos que não fizerem a entrega incorrem numa infração. Como tal, os animais são retirados, entregues a santuários (em Portugal ou fora do país) e é aplicado um regime sancionatório (que será o que já está em vigor nas infrações da atual lei dos circos).
Ao contrário da proposta comunista, neste projeto-lei não há o pagamento de uma indemnização aos circos. “Entendemos que seis anos é tempo mais do que suficiente para os circos amortizarem a despesa que tiveram na aquisição desse animal”, explica ao Observador André Silva, deputado do PAN. Ainda assim, quem entregar os animais no prazo de seis anos recebe apoio estatal à reconversão profissional. “Temos de perceber que estas pessoas vivem disto e não as podemos deixar desprotegidas. De acordo com a nossa proposta, o Estado vai garantir proteção às pessoas que entregarem voluntariamente os animais”, diz. Maria Manuel Rola, do Bloco de Esquerda, complementa. “É importante que nem pessoas nem animais tenham um tratamento busco nesta mudança”.
Para André Silva, a proibição é necessária e está fundamentada “em todos os pareceres e técnicos que estudam biologia, etologia e comportamento animal”. “Não é possível ao melhor circo do mundo, com as melhores condições do mundo, com a melhor fiscalização do mundo, garantir bem-estar a animais selvagens devido às condições de itinerância e confinamento excessivo e permanente”, sentencia. E os argumentos económicos não são suficientes, no seu entender, para alterar a questão de base. “Não podemos continuar a divertir-nos à custa do sofrimento de animais, mesmo que isso represente — e representa, obviamente –, uma vantagem económica para alguns setores”.
O que pensam PSD e CDS
Os dois partidos mais à direita do espetro político foram os únicos que não apresentaram um projeto-lei para regular o tema. Mas nem por isso têm posições semelhantes. Comecemos pelo PSD — o mais indeciso. Joel Sá, representante do partido e líder do grupo de trabalho, explica ao Observador que, no início dos trabalhos, a intenção era não apoiar uma mudança legislativa. “Achávamos que a lei que está em vigor era suficiente, porque já proibia que os circos comprassem ou reproduzissem animais — o que, na prática, fazia com que o assunto ficasse resolvido, à medida que os animais fossem morrendo”, esclarece. “Depois, os especialistas foram dizendo que algumas dessas espécies podiam, ainda, durar muitos anos. Fomos evoluindo e, neste momento, há alguma predisposição para acompanhar uma eventual mudança legislativa“.
Mas apenas, assegura o deputado, mediante algumas condições. “O projeto tem de incluir apenas animais selvagens — porque os domésticos já vivem com o ser humano — e ter um período de transição mais alargado do que os dois anos inicialmente propostos pelo PAN, para dar tempo a estas profissões de se reconverterem e aos animais de serem realojados”, esclarece Joel Sá. “Percebemos a evolução da sociedade, mas achamos que as coisas não podem ser feitas de um dia para o outro. Se for um projeto equilibrado, o PSD está disponível para acompanhar, mas a nossa posição ainda não está fechada”, confirma ao Observador.
Já o CDS está mais inclinado para se opor à proibição. Sobretudo porque, como explica a deputada Patrícia Fonseca, “a lei atual, e os diplomas que se seguiram, já prevêem o fim natural da utilização dos animais no circo”, pelo que uma alteração é vista como “bandeira política”. A recolocação dos animais é, também, uma preocupação — pelo receio de não existirem santuários suficientes em Portugal e pelos custos que podem advir para o Estado, que, “no fim de contas, somos todos nós, contribuintes”.
Patrícia Fonseca explica, igualmente, que, para o partido, “há outros valores e patrimónios que têm de ser equilibrados com o bem-estar animal, porque há empregos que dependem dos circos”, e que os animais em causa “nasceram, na sua maioria, em cativeiro, e a sua libertação no meio natural terá, seguramente, uma difícil adaptação”. O partido poderá rever a sua posição, mas apenas se houver uma “solução mais ponderada e exequível”, sublinha a deputada.
Proibimos os animais. E agora?
E se o hoje determinar o fim dos animais no circo, como vai ser o amanhã? Comecemos pela questão dos animais. O realojamento é uma preocupação para o biólogo Luís Vicente — que usa uma analogia com os campos de concentração para o ilustrar. “Esta é uma questão que tem de ser fortemente controlada para não se correr o risco de sair de Aushwitz e ir para Treblinka”, diz. “Tem de haver um controlo público honesto, caso contrário os interesses em causa podem abrir o risco de tudo isto descambar em tráfico”, alerta.
Leonor Galhardo sublinha a importância de outro aspeto: a inexistência, em Portugal, de centros de acolhimento suficientes para alojar estes animais — e, por isso, a necessidade de uma cooperação com outros países, instituições de recolha e até ONG’s. “O realojamento de animais selvagens é uma questão supra-nacional. Há, na Europa, vários centros de recolha e santuários especializados em certas espécies e vontade de receber uma série de indivíduos que estão, atualmente, em circos”.
A questão está, também, na cabeça dos partidos — nomeadamente dos que estão a criar novas soluções legislativas. André Silva acredita que, “tão ou mais importante do que a proibição, é a solução que vai ser encontrada para os animais em utilização”. “Se a partir de amanhã houver uma proibição com um regime sancionatório enorme, o que vai acontecer é que os animais vão ser abatidos ou levados para sítios ainda piores”. Como tal, é precisa “uma solução legislativa responsável”, que acredita estar no projeto-lei criado em parceria com o PS e o BE.
Embora assuma que “ainda não está completamente definida” a questão do realojamento, “porque, como tantas leis, tem de ser regulamentada”, a intenção é que haja uma responsabilidade partilhada entre o Estado e as associações nacionais e internacionais para reconduzir os animais para os lugares mais adequados ao seu bem-estar. “É também por isso que prevemos um espaço alargado de seis anos”, especifica André Silva, que acredita que esta questão não trará custos significativos aos contribuintes. “A maior parte do acolhimento destes animais tem um custo reduzido. Onde reside o custo maior na transferência, até porque não existe nosso país, são os elefantes e os grandes felinos, que são cerca de 65. Aí sim, o transporte tem algum impacto, mas apenas o transporte”, explica. “Estivemos em contacto com várias associações internacionais que recebem estes animais gratuitamente. A questão dos custos é uma não questão. A maior parte dos animais tem alojamento em Portugal; os outros têm de ser colocados fora, mas em locais onde não há uma renda”.
Gonçalo Diniz, do Circo Victor Hugo Cardinali, não esconde a indignação. “O circo nunca foi apoiado pelo Estado. Mas, se isto for para a frente, o Estado vai ter de pagar pela recolocação dos animais, os contribuintes vão pagar por isto”, expressa ao Observador. O responsável acredita que, “com a qualidade que atualmente tem, o circo não pode subsistir sem animais”. “Em 2016, fizemos o estudo, com os nossos espectadores, para perceber o que eles queriam mesmo ver e 84% das pessoas respondeu que eram os leões”, ilustra.
Cláudio Torralvo partilha a mesma opinião — e o mesmo desalento quanto ao futuro. “Quando acabarem os tigres, vou experimentar com animais domésticos a ver se funciona”, solta, para logo depois concluir, num encolher de ombros: “Mas não vai funcionar”. Lançamos a pergunta: “Aceitava ajuda à reconversão profissional?”. A resposta sai disparada, seca. “Mas para fazer o quê?”. A muitos quilómetros de Corticeiro de Cima, do outro lado da linha de um telefone, é assim que Gonçalo Diniz responde à mesma questão: “Claro que não aceitamos. Crescemos no circo e é no circo que vamos continuar“.