Em cada um dos seus partidos, ninguém se atreve a dizer nada a Pablo Iglesias nem a Albert Rivera. São, nestes últimos tempos, dois políticos à beira do precipício e sem disponibilidade para ouvir quem lhes grita “cuidado!”
Na imprensa espanhola escreveu-se que no Podemos “ninguém se atreve a dizer a Pablo Iglesias que é o único que ainda continua no Podemos” — e uma fonte acrescentou que ainda assim isso até pode ser bom para o líder daquele partido, porque assim pode dizer “que o partido está unido”.
Também na imprensa espanhola, surgiu um relato de dentro do Ciudadanos, onde se dizia que a equipa à volta do seu líder, Albert Rivera, estava a fazer de tudo para que ele não visse o filme “Joker”. Tudo porque o político catalão “é como uma esponja” e tende a imitar tudo o que vê.
As duas notícias saíram no El Mundo Today, jornal satírico online que se diverte a olhar para a política espanhola a partir de ângulos que ocorrem a poucos e que, fruto disso mesmo, se dá a várias liberdades no que diz respeito à realidade.
No entanto, por mais fictícias que sejam, estas duas notícias partem de um fundo de verdade: as coisas não vão bem para o Podemos nem para o Ciudadanos.
Nas eleições de dezembro de 2015, ambos entraram com estrondo no Congresso dos Deputados, tornando-se igualmente responsáveis por quebrar o bipartidarismo espanhol que marcou a maioria dos anos da democracia espanhola, entre governos do PSOE alternados com o PP. Mas os voos programados de cada um destes partidos não eram só para entrar no sistema. Mais do que isso, quiseram poder.
Em 2016, chegou a falar-se abertamente da possibilidade de o Podemos conseguir ultrapassar o PSOE e ser assim a maior força da esquerda — um movimento que ficou conhecido como o “sorpasso”. E do lado do Ciudadanos, foram algumas as sondagens que puseram o partido de Albert Rivera em primeiro lugar e ainda mais as que o colocavam como partido hegemónico da direita.
Agora, quase quatro anos depois, e nas quartas eleições desde então, a realidade destes partidos é bem diferente dos seus sonhos.
De acordo com a última sondagem da 40db para o El País, o Unidas Podemos (coligação do Podemos com a Esquerda Unida) poderá terminar estas eleições com 12,4% dos votos (menos de metade do que deverá ter o PSOE) e apenas 31 deputados, isto é, um quarto do que deverão ter os socialistas. Já do lado do Ciudadanos, o resultado é ainda pior: caindo de terceira para quinta força política, o partido de Albert Rivera poderá ficar cm 8,3% dos votos (quase um terço do que terá o PP) e apenas 14 deputados — uma soma insignificante perante os 91 previstos para o PP e também os 46 do Vox.
Se as sondagens se confirmarem, tanto o Podemos como o Ciudadanos terão os seus piores resultados desde que em dezembro de 2015 acabaram com a política espanhola como a conhecíamos e trouxeram algo de diferente consigo. Primeiro convenceram, mas agora nem tanto. Porquê?
As várias vidas de Rivera e Iglesias
Em política, como em tantas outras áreas da vida, não basta parecê-lo: há que sê-lo, acima de tudo. E esse é um problema destes dois partidos, mas que afeta especialmente o Ciudadanos.
Quando surgiu em 2006, pela mão de um grupo de elite catalã, que batizou então o partido como Ciutadans, o Ciudadanos era um partido unionista e social-democrata. O objetivo era evidente: ocupar o espaço no centro-esquerda unionista esvaziado pelo Partido Socialista da Catalunha, então coligado com os ecologistas e a Esquerda Republicana da Catalunha no governo regional.
O partido, que desde o início teve a liderança de Albert Rivera, manteve essa linha até dar o salto para a política nacional, nove anos mais tarde, em 2015. Nessa altura, passou a ser um partido de centro e liberal, adotando um discurso de defesa do empreendedorismo e de baixa de impostos ao mesmo tempo que alinhava com medidas socialmente liberais. Chegaram a unir-se ao PSOE em duas votações de investidura de um governo de Pedro Sánchez na primeira metade de 2016 — com Albert Rivera a desempenhar assumidamente o papel de pivot da política espanhola.
“Quando o Ciudadanos dá o salto para o nível estatal, é um partido liberal e de centro e passou a ser kingmaker [partido minoritário que é essencial para facilitar governo a partidos maiores, mas sem maioria]”, sublinha o politólogo espanhol Jorge Galindo, numa entrevista por telefone ao Observador. “Mas a pergunta a partir daí é: estás contente com isto? Chega-te ou não?”.
A resposta de Albert Rivera a esta dilema foi um rotundo não. E aí o Ciudadanos voltou a mudar de vida.
Aconteceu em outubro de 2017 e na “casa” de Albert Rivera: o governo regional da Catalunha, então liderado por Carles Puigdemont, levou avante um referendo para determinar a independência da Catalunha. O que era um problema para o presidente do governo regional catalão (o referendo não foi autorizado pelos tribunais nem teve aval político do Governo central, então liderado por Mariano Rajoy) foi uma oportunidade para Albert Rivera. Assumindo a crise catalã como uma questão pessoal, decidiu ultrapassar pela direita o PP na resposta àquele desafio independentista. Numa altura em que o então Governo de Mariano Rajoy hesitava em falar da Catalunha por achar que aquele era um assunto dos tribunais e não da política, Albert Rivera foi o primeiro líder partidário a exigir aplicação do Artigo 155 na Catalunha, levando assim à suspensão da autonomia da região.
Foi uma jogada que correu bem ao Ciudadanos. Perante um Presidente de Governo do PP fragilizado pela gestão da questão catalã e também pelos casos de corrupção no seu partido, Albert Rivera assumiu de facto a liderança do bloco da direita em Espanha — de tal maneira que as sondagens chegaram, já em 2018, a colocar o Ciudadanos em primeiro lugar.
Foi uma escolha de Albert Rivera — e escolher implica também abrir mão de algo. Neste caso, do centro.
“Foi Albert Rivera que quis ser líder do bloco da direita e isso dá sempre mais trabalho. Porque quem fica no centro está sempre a disputar um eleitorado específico que o pode levar a ser terceiro ou quarto partido, saltando de bloco ideológico em bloco ideológico, consoante as medidas que propuser”, diz Alberto Galindo. “Mas ao projetar-se como líder de um bloco político, Rivera está a dizer não só que votem nele mas também que não votem no outro bloco. E isso é a estratégia do ‘tudo ou nada’.”
Foi já com essa mentalidade que Albert Rivera foi a eleições no passado 28 de abril, prometendo ajudar a formar (e até a liderar) um governo de direita — reeditando assim a nível nacional aquilo que já tinha feito com o PP e o Vox no governo regional da Andaluzia e veio mais tarde a fazer na região de Múrcia e na Comunidade de Madrid, entre outros. Nessa senda, Albert Rivera disse várias vezes que não facilitaria qualquer governo de Pedro Sánchez e do PSOE. “Não é não”, repetiu em campanha e quase até ao fim dos meses do atual bloqueio.
Até que mudou de ideias. Perante umas sondagens que atiravam o Ciudadanos para o fundo — com uma fuga imensa de votos para o PP e também para o Vox, além da abstenção — , Albert Rivera renunciou ao “não é não” a poucos dias do prazo final para evitar novas eleições e propôs um pacto de Governo a Pedro Sánchez. A resposta do socialista não foi simpática: “O que o desespero faz”.
Nestas eleições, Albert Rivera procura moderar a sua mensagem e continua a pôr de lado o “não é não” que outrora disse a Pedro Sánchez. “O Ciudadanos nunca estará num governo com o PSOE enquanto ali estiver Sánchez, mas também digo que o Ciudadanos nunca será parte do problema”, disse, indicando que poderá abster-se para permitir que o socialista governe.
A questão é que, olhando para as sondagens, e ao contrário do que aconteceu em abril, o Ciudadanos pode descer ao ponto de não conseguir formar uma maioria por si só com o PSOE. Ou, dito de outra forma, Pedro Sánchez já não precisa de Albert Rivera e do Ciudadanos.
O mesmo se pode dizer à esquerda do PSOE, isto é, a coligação Unidas Podemos, liderada por Pablo Iglesias. Depois de ter ajudado Pedro Sánchez e o PSOE a vingarem uma moção de censura que, contra todas as expectativas, empurrou Mariano Rajoy para fora da Moncloa, a coligação de Pablo Iglesias tornou-se num importante sócio do PSOE — formando uma espécie de “geringonça” à espanhola, que ali mereceu outro nome pejorativo, a do “governo Frankenstein”.
Pedro Sánchez pôde governar muito em parte graças aos esforços de Pablo iglesias, que se serviu das suas boas relações com partidos independentistas — o líder do Unidas Podemos fala com frequência com Carles Puigdemont, entre outros independentistas — para conseguir convencê-los a permitir um governo socialista. O Frankenstein nasceu em junho de 2018 e terminou em fevereiro de 2019, quando o entendimento já não era possível.
Com novas eleições, o Unidas Podemos voltou a oferecer o seu apoio a Pedro Sánchez, mas agora com um preço mais pesado: queria ministérios. Além da vice-presidência de Governo, chegaram a exigir pastas como o Trabalho (que seria também da Segurança e Social e Luta Contra a Precariedade), Transição Energética, Meio Ambiente e Direitos dos Animais, Justiça Fiscal e Luta Contra a Fraude, o da Ciência, Inovação, Universidades e por fim o Ministério da Economia Digital.
Esta lista é conhecida apenas porque o PSOE a colocou na imprensa, numa altura em que as negociações entre os dois partidos azedavam. Acabaram ambos em trocas de galhardetes em público, abrindo-se um fosso potencialmente intransponível entre as duas forças. Ao contrário do Ciudadanos e de Albert Rivera, o Podemos e Pablo Iglesias já não têm pretensões de liderar um governo — mas a ambição de querer fazer muito com o pouco que têm não soou bem nos corredores do PSOE, que sempre disse que não queria “ter dois governos num só”. E, assim, o Podemos ficou sem nenhum governo na mão — e depois foi pelos ares.
Acima de todos, o líder
Falar em Ciudadanos é falar em Albert Rivera, da mesma forma que Podemos é praticamente sinónimo de Pablo Iglesias. Além de fundadores dos seus partidos, são também os únicos que, nas suas curtas histórias, desempenharam até agora o cargo de líder. E, mais relevante ainda, foi à volta deles que os partidos se organizaram e não o contrário.
“Ambos montaram mecanismos piramidais em que o centro de decisão passou a ser a cabeça do líder do partido”, aponta o politólogo Jorge Galindos.
O Podemos de Pablo Iglesias perdeu María e Jorge — e pode perder quase tudo nas eleições
Um dos casos mais evidentes da centralização do Podemos surgiu pela altura do segundo congresso do partido, em fevereiro de 2017. Ali, a moção defendida por Pablo Iglesias venceu com 89% dos votos, arrumando assim a um canto as vozes críticas que, lideradas pelo também co-fundador Iñigo Errejón (atualmente líder do movimento Más País), pediam um caminho menos radical e ligado ao Partido Comunista de Espanha (uma parte importante da Esquerda Unida, que se coliga com o Podemos desde 2016) e mais aberto a pactos. Essa foi, ironicamente, a postura adotada por Pablo Iglesias mais à frente — mas apenas porque foi essa a sua decisão. “Pablo Iglesias e o seu círculo preferiram ganhar o partido em vez de tentar ganhar o país”, disse, em abril, o também co-fundador e ex-miltante do Podemos Jorge Lago, numa entrevista ao Observador.
Já no Ciudadanos, o verão de 2019 marcou a pior temporada da liderança de Albert Rivera, que enfrentou saídas de peso da direção do partido. A causa da revolta foi a guinada para a direita do Ciudadanos, cujo maior exemplo foram os pactos regionais e municipais em que o Vox foi incluído. Aos que saíram, Albert Rivera respondeu à altura: “Se há quem pense que o sanchismo tem de ser deixado à solta, então que faça um novo partido político”. A resposta de um dos principais dissidentes, Toni Roldán, não demorou a surgir: “Não é preciso criar um partido, basta apenas que nos sentemos, exijamos reformas, regeneração e que não haja pactos com nacionalistas”.
“É a mesma lógica do tudo ou nada, não só fora do partido, mas também dentro dele”, sublinha Jorge Galindos. “As vias minoritárias no partido não têm maneira de usar as suas vozes e a facção vencedora nunca sentiu necessidade de falar com a vencida.”
No final de contas, tanto o Podemos como o Ciudadanos podem estar agora à beira de terem os seus piores resultados desde 2015. É, pelo menos, uma realidade que está bem mais perto de ser capa de jornais sérios do que manchete em media satíricos.