Na rua 47 do cemitério dos Prazeres, em Lisboa, está um técnico a caminhar, devagarinho, quase como quem não quer ser apanhado pelas superstições, aquelas que dizem que não devemos acordar os mortos. A missão é simples: entregar um guarda-sol (isto não é um enigma, mas quase, já lá vamos). Mais à frente, a restante equipa lima o que é preciso para fazer um par de ensaios antes de gravar o take derradeiro. Está sol, há silêncio. Vislumbra-se a cara da Mona Lisa numa das malas da produção. Uma pista? Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O realizador Sérgio Graciano encontra-se do outro lado numa pequena régie improvisada, rodeado por técnicos portugueses e brasileiros. Uns quantos turistas de visita ficam especados a olhar para o drone que irá ser protagonista dos planos de trabalho.
A cena é esta: o funeral de Martinho Toscano, historiador português que andava à procura das origens portuguesas de Cristóvão Colombo. Não estamos perante uma novela brasileira nem portuguesa, o objetivo é outro, porque o momento do audiovisual nacional assim o exige. Paulo Pires (ou o protagonista Tomás de Noronha), Ana Sofia Martins (Victória Perestrelo), Matamba Joaquim (Tiago Froes), Miguel Nunes (Rodrigo Cardoso) e Betty Faria (Luísa Toscano) fazem parte da trama de “Codex 632”, série de seis episódios de cinquenta minutos adaptada do livro de José Rodrigues dos Santos com o mesmo título, a primeira obra do autor e jornalista a chegar à televisão. Também estão lá os atores, com um ar triste, fúnebre, como quem é obrigado a dizer adeus quando não quer.
Afinal, estamos perante uma coprodução entre Portugal e Brasil, a primeira entre RTP, Spi (braço internacional da produtora SP Televisão) e a GloboPlay. E nas últimas cenas rodadas no país — antes de rumarem quatro dias para o outro lado do Atlântico para finalizar a série — o ambiente cénico deste “thriller de aventura” não é o de correria de um lado para o outro, de tiros, perseguições, professores universitários em busca do ouro perdido. Este dia quer-se fúnebre, ponto final. O Observador foi espreitar as gravações desta aposta portuguesa que quer entrar no mercado brasileiro.
“Nós, em Portugal, não estamos ainda ao nível do Brasil”
“O diferente aqui é a responsabilidade. Não há limite de gosto. Nós, em Portugal, não estamos ainda ao nível do Brasil, não há limite nenhum para criar nesta série”. Quem o garante ao Observador é Sérgio Graciano (“Salgueiro Maia — O Implicado”, “O Som Que Desce na Terra”, “Rainha Bastarda”, “Da Mood”), realizador português que tem estado entre as câmaras no país que filmam os projetos em coproduções, empurrados pelo PIC Portugal (sistema de incentivos/cash rebate para o audiovisual) e que estão a tentar beliscar outros mercados internacionais. Essa posição faz com que, na rodagem, Graciano pareça um daqueles maestros que, perante uma orquestra em alvoroço por estar num concerto repleto de gente, só precisa de levantar a mão para instalar a serenidade. Neste caso, o pequeno problema está relacionado com o drone que ainda não está alinhado para apanhar o funeral. Bastam ajustes.
E foi também de ajuste em ajuste que este projeto foi, ao fim de uma década, ganhando força. Foi preciso mais liberdade criativa. Mas foi preciso sobretudo mais dinheiro — ainda que não se saiba (mais uma vez) qual o orçamento ao certo. Foi a luz verde da Globo Play que conseguiu desabotoar a bota. Para Sérgio Graciano, um maior orçamento e uma conjugação de atores brasileiros e portugueses, permite fazer algo que Portugal tem tido dificuldade em conseguir: uma série comercial que atinja um público transversal, além das novelas, além dos nichos, além fronteiras. “O Codex 632 é um thriller de aventura, não é muito comum fazer-se cá nem no Brasil. Se olharmos para a Globo Play, não vemos este tipo de conteúdo.” Verdade.
É aqui que entra o drone. Os planos mais abertos, os travellings e as estrelas brasileiras como Deborah Secco e Betty Faria, a filmar num cemitério de Campo de Ourique. “É impossível competir com as ‘Casas de Papel’, mas o ‘Codex 632’ pode contribuir. Não sei bem o que é o género português, sei que esta é uma história que pode atravessar fronteiras. Este é um conteúdo simples, comercial mas não simplista. É como os que querem ir aos Coldplay e os que detestam essa ideia. O género português pode existir, mas também têm de existir os outros”, diz.
E que história é esta? Para quem leu o livro, não são necessárias pistas. Mas 500 páginas de um livro não podem entrar em seis episódios de uma série. Nem aqui nem no Brasil. O professor universitário Tomás Noronha, um “herói acidental”, como apelidou Paulo Pires ao Observador, vê-se envolvido numa viagem histórica, do Brasil a Itália, até à República Dominicana, mexendo com a origem de Cristóvão Colombo e as questões da colonização portuguesa. Vai parar à Fundação Américo Vespúcio por dinheiro, mas acabará a desvendar enigmas sobre a morte de Martinho Toscano. Tem uma filha com trissomia 21, Margarida Noronha (interpretada por Leonor Belo, também com Síndrome de Down, e que tem aqui a sua primeira experiência em televisão) e um casamento periclitante com Constança Noronha (Deborah Secco). Mas isso fica para os outros episódios. Por aqui continuamos num cemitério, onde os figurantes se deixam contaminar pelo ambiente e acabam a falar de funerais e a equipa de catering questiona os técnicos sobre quem é, afinal, o morto deste dia.
Em qualquer rodagem existe a vertigem de talvez não conseguir acabar as cenas que estavam planeadas para o dia, mas isso parece não chega a Leonor Belo. Tem 18 anos, fez o casting no Porto para o “Codex 632” e tem em Catarina Furtado a sua maior referência. Está sentada no jardim à espera do Observador, as suas cenas só são gravadas depois do almoço. Começou as gravações em julho e só acaba no final deste mês. Depois, segue-se mais um projeto nos Açores. E, convenhamos, não vale a pena colocar uma jovem num cenário tão fúnebre para se despedir de uma personagem que nunca conheceu. “É um sonho realizado, fiz o casting com o Paulo Pires e fiquei muito emocionada por conhecer a Deborah Secco. Se fico nervosa com todo o aparato? Não, estou na boa”, conta, com o guião do dia debaixo do braço, sempre debaixo do braço.
Um “herói acidental” rumo ao Brasil e um autor indiferente às comparações com Dan Brown
Quem também está “na boa” é Paulo Pires. Encontramo-lo junto à igreja do cemitério, já bem almoçado, numa ronda de entrevistas e fotografias. O funeral já foi, falta a missa (costuma ser ao contrário, mas nem sempre a ficção imita a realidade), o sorriso e a boa disposição podem voltar. As próximas cenas vão acontecer no interior da igreja e Deborah Secco, a sua mulher nesta série, ainda não chegou. Desafiamo-lo a responder à pergunta já feita sobre alguns dos livros de José Rodrigues dos Santos: estamos perante uma história portuguesa à Dan Brown? Nim. “A comparação é inevitável com o Código da Vinci, mas as questões são outras. Claro que revi o filme e nem gostei muito. Mas sinto-me um privilegiado com este desafio porque não temos por hábito fazer aventuras e a minha personagem está muito presente. É embarcar nesta viagem desde o primeiro dia”, afirma.
A personagem está presente, mas não é nenhum galã, não senhor. É professor universitário, pessoa comum, que se vê envolvida em peripécias que obrigam a ações mais físicas e ainda tem de, a quatro mãos, segurar um casamento. Portanto, o maior desafio de Paulo Pires foi, no fundo, ser um tipo a quem acontecem coisas. “Ele não é um herói, é tudo no esforço, na sorte, no trabalho e na curiosidade. Tínhamos de justificar o facto de ser um professor, de ser uma pessoa normal. É um intelectual fechado no seu mundo. Não podia estar, de repente, numa cena em que tiro uma arma a alguém e o mando ao chão. Tem de ser verosímil. O Tomás é um herói acidental”, revela.
Ora, este “herói acidental” foi desenhado por José Rodrigues dos Santos em 2005. Jornalista, autor de best-sellers, colecionador de vendas e de críticas. Já perto das 15h00, chega ao cemitério. De fato e gravata, óculos escuros, parece uma estrela de Hollywood. Não é habitual que o autor se desloque até às rodagens, mas esta segunda-feira José Rodrigues dos Santos, além de inverter os papéis transformando-se em entrevistado, vai fazer um pequeno papel de figuração “como Hitchcock fazia nos seus filmes”. Sejam feitas as devidas distinções, como o jornalista fez, e não destoemos do essencial.
Sendo José Rodrigues dos Santos um homem confiante nas suas capacidades para as letras, será que quis envolver-se no processo de escrita do guião? Não, apenas umas dicas. “Uma vez falei com um argumentista belga que trabalha para os Estados Unidos da América e que me disse: os bons romancistas dão sempre maus guionistas e os bons guionistas dão maus romancistas. Não sei se é verdade ou não, mas eu prefiro cada ‘macaco no seu galho’. Acompanhei o processo, dei dicas, mas a minha especialidade é outra. O argumentistas de televisão é mais importante do que o escritor”, afirmou ao Observador.
Sem fazer qualquer tipo de resistência à adaptação, José Rodrigues dos Santos garantiu ainda que está na calha uma segunda, em filme, para outro dos seus livros. No fim de semana passado esteve na Feira do Livro de Lisboa e “vários dos seus leitores” garantiram-lhe que iam voltar a ler o Codex 632 por causa da série. Mas o jornalista sossegou-os: a história vai ser diferente, não vale a pena ficar preso à literatura. “Disse-lhes para se prepararem porque não vai ser igual”, garante. Quanto a comparações com Dan Brown, que já o perseguem desde que lançou este seu primeiro livro, o jornalista continua sem estar muito preocupado, mesmo que a sua história passe agora para a televisão. “A mim não me aquece nem arrefece. Gosto muito de trabalhar com enigmas tal como o Dan Brown, mas não foi ele que os inventou. Já o Alan Poe o fazia. Cada autor tem a sua própria voz. Se quiserem comparar é-me indiferente”, termina.
As gravações continuaram pela tarde dentro, mas ninguém conseguiu confirmar se, nessa tarde, algum funeral verdadeiro ocorreu. É o que dá estar demasiado concentrado no trabalho. E para José Fragoso, diretor de programas da RTP, que também esteve presente nas filmagens, o canal público de televisão está concentrado em manter estas parcerias com países estrangeiros, em regime de coprodução, com histórias que possam ser partilhadas por audiências diferentes numa linguagem comum. A RTP trabalha, por estes dias, num tipo de ficção diferente, diverso, com orçamentos apertados que competem com um autêntico “caldeirão” mundial deste género televisivo. “Nós não produzimos novelas, há público para ver outros conteúdos e a novela tem cada vez menos público. Esta é uma história universal, mas não queremos fugir do registo novelesco para ir ao encontro de outro. Como não temos a capacidade de produção de outros projetos, temos de encontrar alguns como ‘Glória’, ‘Auga Seca’ ou este, que nasce de um best-seller. O Brasil já conhece o livro. Vai ser uma maneira de abrir portas aos espetadores brasileiros”, afirmou.
Quer-se abrir portas e Deborah Secco, que teve uns exatos sete minutos para falar com a imprensa por lapso entre produtoras presentes, quer já ter a chave de uma casa em Portugal. Fora as informações mais cor de rosa que pintaram esta pequena conversa, o Observador tentou perceber se a mítica “Bruna Surfistinha”, rosto bem conhecido das novelas brasileiras, considera que Portugal e Brasil podem finalmente encontrar-se noutro lugar que não o deste género televisivo. “Sim, este pode ser o início de uma longa parceria”. Espera-se agora que dure mais do que sete minutos de conversa ou seis episódios de uma aventura.