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Apresentemo-la assim: no cartão de cidadão Cátia Mazari Oliveira, nos palcos e na música A garota não, em talento uma das grandes escritoras de canções em língua portuguesa da atualidade. Ou só grandes escritores de canção, ponto final, que não há motivo para que o seu talento fique circunscrito nem ao género nem ao território para cá de Badajoz.
Depois de um primeiro disco (Rua das Marimbas) que a revelou como autora e intérprete com personalidade própria, capaz de construir canções de intervenção (prefere chamar-lhe “de inconformismo”) que não são só de amor e desamor e se posicionam inquietas também sobre o mundo e suas injustiças e desigualdades, após o segundo álbum não restam grandes dúvidas: Cátia Mazari Oliveira aperfeiçoou a caneta, a guitarra e as batidas. As suas canções não devem já nada às das figuras proeminentes da música portuguesa moderna.
O novo disco, intitulado 2 de abril em homenagem ao bairro de Setúbal com o mesmo nome em que cresceu e viveu durante os seus primeiros 26 anos, é editado este sábado. Imbuída do espírito de alguns dos seus heróis, de José Afonso a José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto Bordalo Dias, compôs 20 canções que são só suas, cheias de detalhes sonoros e musicais que só engrandecem letras e poemas de quem tem na escrita paixão séria.
Seria possível explicar aqui pedaço a pedaço, detalhe sonora a detalhe sonoro, letra a letra, porque é que 2 de abril chega na primavera com uma candidatura assumida a disco português do ano e ao estatuto de um dos álbuns portugueses mais importantes dos últimos anos.
Poderíamos falar mais longamente do arranque, com palavras escolhidas a dedo de quem tem desassossego na caneta, da fantasmagórica “Canção Sem Final” (“podem decretar o fim da arte / e a gente faz uma canção sobre isso (…) há sempre alguém que sonha em qualquer parte / e a nossa voz nunca será viúva“). Ou das voltas rítmicas, das aliterações e das rimas de “Dilúvio”, um dos singles. Ou ainda da magia de “Ai Weiwei” — utopia embrulhada a beats e um canto envolvente, quase dançante — e da voz apontada à gentrificação, à crise de habitação e aos alojamentos locais de “Não Sei O Que É Que Fica” (com o rapper Chullage como convidado).
Podíamos dissertar mais detalhadamente sobre a mordaz “Que Mulher É Essa” e o seu feminismo tornado grande canção, com ironia e balanço, mas a visar sem ligeirezas todas as portas fechadas às mulheres que não se parecem com as modelos-capas de revista. Ou sobre a terníssima “Urgentemente”, prova que A Garota Não também canta canções de amor, a envolver o ouvinte como uma manta à boleia das palavras do poeta Eugénio de Andrade:
É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.
Acontece que tudo isto são apenas exemplos, alguns dos melhores exemplos, é certo, mas exemplos apenas de um disco que não dá nenhum grande passo em falso, que pede atenção e tempo mas retribui em dobro ou triplo. Ao ouvir 2 de abril, fica a perceção — que Cátia há-de confirmar-nos em entrevista — de que foram muitas horas a compor, a escrever, a trabalhar e melhorar as canções, até que as oiçamos nesta forma final.
A inspiração não chega para casar palavras e música tão harmoniosamente, tão naturalmente. Num disco que “quis que fosse diferente, que deixasse de ter um universo muito de cantautor”, menos “de menina” e mais de mulher, A Garota Não confirma que é caso sério.
“O que me move é muitas vezes libertar-me de coisas que me estão a abafar o peito”, conta-nos em entrevista, confessando que há temas e palavras que não consegue conter: nomeadamente, os que a “rebentam por dentro”. Mas moldá-los e abordá-los assim nas canções, cantando-os como os canta, não está ao alcance de muitos.
A explicação para o nome A Garota Não
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Num circuito entre o jazz e a MPB, Cátia ia tocando e cantando ao vivo para quem a queria ouvir. Numa rota por adegas, teve um ouvinte exigente (para não dizer chato), que lhe ia pedindo a cada canção que tocasse a “Garota de Ipanema” — um clássico dessas tertúlias de copo de vinho na mão e uma guitarra e voz a entreter. Ao enésimo pedido, e sem vontade de interpretar um tema tocado e ouvido até à exaustão, respondeu: “A Garota Não”. O nome ficou.
“Escrevo sobre temas duros porque há alguns que me rebentam por dentro”
Na descrição do disco, escreveu: “Pelo pai, pela mãe e pelo bairro que tivemos”. Isto é mais uma dedicatória ou uma declaração de inspirações, de motivações, do que a fez compor este disco?
Acho que ambas. Ao mesmo tempo que é uma dedicatória — porque é um agradecimento —, é um reconhecimento de que aquele bairro e aquela vivência que tive estruturaram-me a ponto de ser o que sou hoje. Com os meus problemas e as minhas inquietações, mas também com o que possa ter para dar e partilhar, com a força e vontade de deixar alguma coisa num ponto um bocadinho melhor. Temos de escrever sobre o que vivemos, é estranho se escrever sobre realidade do Minnesota sem nunca lá ter ido. Posso fazê-lo… O Chico Buarque conta que gosta muito de escrever, mas às vezes não conhece as realidades. Ele tem um tema muito engraçado que só fala de pássaros [“Passaredo”], quando na verdade tem fobia de pássaros. Diz que o escreveu porque lhe interessou o tema, quis escrever sobre aquilo e pesquisou muito. No meu caso, escrever as canções que escrevo tem muito a ver com as realidades que vou conhecendo, com as esferas por onde me movo — que são sempre limitadas mas são as minhas.
É sempre um exercício complicado de fazer, este, mas quanto é que aquilo que é como artista — aquilo que a motiva a escrever, que lhe interessa abordar numa canção —, se deve ao bairro 2 de abril, em Setúbal?
Para já, o bairro 2 de abril… só soube disto já adulta, cresci sem ter sequer a curiosidade de perceber porque se chamava assim. Quando percebi, fiquei muito orgulhosa de ter nascido naquele bairro porque 2 de abril é a data que decreta a Constituição da República Portuguesa, que é o documento por excelência que é criado depois do período de fascismo que tivemos em Portugal e que consagra os nossos direitos e responsabilidades. Sinto-me até um bocadinho vaidosa por ter crescido num bairro com um nome destes e uma força simbólica desta. Quanto das minhas canções são de lá? São muito. Quando nasci já os meus pais viviam ali com o meu irmão, que era muito pequenino na altura. Vivi naquele bairro até aos 26 anos, atravessei ali várias fases do meu crescimento: criança, adolescente, jovem adulta… com as minhas perturbações mentais e angústias [risos].
Tudo aquilo foi muito importante. Agora chamam-se a estes bairros, bairros de habitação municipal. Na altura conhecíamo-los como bairros sociais. São grandes caldeirões de muitas histórias e muitas influências. Musicalmente foi muito rico.
Pode detalhar porquê?
Vivia num prédio com angolanos, com ciganos, com pessoas que só ouviam musica eletrónica. Éramos todos muito diferentes, mas tínhamos de viver em conjunto o melhor possível. Houve ali muitos exercícios de respeitar o outro, de ir contra o outro e percebermos que estamos errado. Foi um grande exercício de respeito, para mim. Quando digo que vivia num prédio com ciganos, não o digo com preconceito nenhum.
O preconceito raramente está na utilização da expressão.
Eu convivi com esta realidade. Não é pela palavra que desrespeito a herança e identidade das pessoas. Isto tudo para dizer: o disco tem muito destas vivências. Brincámos muito todos juntos, chateámo-nos todos juntos, andámos à porrada às vezes mas brincámos muito nos baloiços, fizemos muitos jogos coletivos. Fiz um esforço grande, também, de me pôr um bocadinho de fora. Porque sentia que naquele meio era até um bocadinho privilegiada, os meus pais bem ou mal tinham sempre dinheiro para comprar alguma coisa — nem que fosse uma sopa que durava para uma semana inteira, tínhamos sempre comida. Mas havia muitas famílias que nem sequer essa sopa para a semana tinham. Muitos miúdos iam para a escola comigo e com o irmão sem tomar pequeno-almoço. Todas estas realidades muito duras foram-me mostrando, até com uma certa mágoa, que não era possível passar indiferente a isto, envolvia-me sempre. Na escola fui sempre aquela que procurava estar junto do lado menos favorecido, do lado daqueles que os outros ostracizavam ou punham de parte.
Não sei porque tive sempre esta tendência para me aproximar da parte menos favorecida, mas é importante para mim escrever sobre isto. Não sou muito comunicativa ou de entrar em grandes debates, mesmo em círculos de amigos. A música é para mim um exercício de compreensão da realidade que tenho à volta, de reflexão sobre como consigo lidar com isso e de usar a força e voz que tenho para falar sobre temas que muitas vezes passam ao lado da vida de muita gente. Há pessoas que me escrevem dizendo que sentem muito na pele e se identificam com o que escrevo, mas outras dizem-me que ouvir-me funcionou quase como um abanão, um alerta. Quando recebo este último tipo de mensagens, sinto um bocadinho que aquilo que gostava de conseguir como cantora e compositora fica cumprido.
Falava nos seus pais. Em algumas entrevistas falou muito da importância dos seus pais para o seu interesse musical: a sua mãe muito por cantar em casa, o seu pai porque gostava muito de música e de José Afonso. Eles tinham alguma relação com as artes, profissionalmente falando, ou era gosto puro e duro?
Não tinham relação profissional nenhuma. O meu pai fez muitos trabalhos, mas de foro mais industrial, em profissões de trabalhar em parques onde vinham carros em navios. Ele arrumava e limpava os carros. Teve sempre muitas profissões, mas nada relacionado com arte. Mas ouvia muita música, sempre que havia possibilidade ia a concertos na rua ou a festas populares. Lembro-me muito de ir a bailes e ter estas experiências com ele. A minha mãe era costureira, foi cozinheira, limpava coisas no geral. E não tinha formação nenhuma, tinha a quarta classe — o meu pai tem o 9.º ano do curso comercial-industrial.
Eram pessoas que cresceram com muitas dificuldades e muitas vezes encontravam na música um alívio. A minha mãe cantava muito fado e acho que o fado aliviava-lhe certos fardos. O meu pai, apesar de viver num meio um bocadinho difícil, o meio piscatório de Setúbal, tinha um grupo de amigos curioso: um tocava guitarra, outro gostava de cantar, gostavam de ir aos bailes — às vezes se calhar mais pelas moças do que por outras coisas, mas influenciavam-se uns aos outros na escuta de vinis. Quando aparecia aqui alguém com um, toda a gente se juntava na casa daquela pessoa para ouvir: um do Bob Dylan, um do Zeca Afonso, um do Rui Veloso já mais tarde. Acho que ele tem muito bom gosto.
Dei por mim a pensar que talvez mais do que fazê-la interessar-se por desigualdades e questões sociais, essa origem e esse meio em que cresceu possam ter tido sobretudo influência levando-a a fazer música sobre isso e a posicionar-se nas canções. Porque haverá artistas de origens sociais muito diferentes que partilharão preocupações semelhantes às suas — mas não é muito comum vermos artistas a trazerem essas preocupações diretamente para a música que fazem.
Sim, com certeza. Sou uma pessoa simples… sou complexa a nível emocional, sobretudo nas relações amorosas, e também preciso muito de escrever sobre isso, são exercícios catárticos que faço. Há músicas em que escrevo sobre recibos verdes [“80.nada”, do disco anterior], outras em que falo sobre pessoas a fugirem de uma guerra na Síria e a quererem atravessar o Mediterrâneo só para terem o direito a ter uma vida digna [“Mediterrâneo”]. Nem todas são coisas que vivi, mas são coisas que nos entram pelos olhos dentro e sobre as quais sinto que preciso de escrever, não porque queira ficar bem numa fotografia a escrever sobre um tema muito dramático mas porque dentro desses temas há alguns que me rebentam por dentro.
Esse em particular do “Mediterrâneo” [do novo disco], lembro-me que tinha estado a ler umas coisas, vi umas imagens e apareceu-me uma fotografia muito forte de duas crianças a chorar porque tinham perdido a mãe afogada. Nessa noite não conseguia dormir. Levantei-me da cama tão angustiada, de madrugada ou já a cair a manhã, que escrevi desalmadamente e essa música saiu. É uma questão dupla: há vivências que não tive, mas a que assisto como ser humano, como cidadã, e outras que trago comigo e sobre as quais também vou escrevendo.
De alguma forma a música de intervenção — ou música de inconformismo, como prefere chamar-lhe — não está em geral ausente da produção musical portuguesa? Excluindo talvez alguns artistas de hip-hop, estou a pensar mais na canção fora do rap.
Acho que é um espírito do tempo. Acontece na música como em muitas outras áreas artísticas. Acho que há um envolvimento um bocadinho desfasado da arte, e da composição e da criação, com aquilo que na verdade estamos a viver, em relação a um universo sobre o qual nos devíamos debruçar mais. É uma forma de estar na vida: passa logo por nos envolvermos mais ou menos com as pessoas que temos ao lado, com a vizinha que precisa de ajuda… a mim interessa-me muito uma vivência em que sinta que a minha ação possa mudar alguma coisa. E nem toda a gente está na arte ou na vida assim. Todas as sextas-feiras saem centenas de novas músicas e playlists com lançamentos. Há músicas incríveis a saírem, há letras que são puro entretenimento e está tudo bem com isso. Eu não sei estar de outra forma, porque se estiver só a fazer música para entreter os ouvidos dos meninos nas festas acho que não me vou sentir muito satisfeita. Mas ainda bem que há alguém que o faz, porque isso também é preciso.
Esse desfasamento de que falava, terá alguma coisa a ver com as origens sociais e os meios em que cresceram a maior parte dos artistas portugueses que têm alguma notoriedade, no campo da canção contemporânea? A indústria musical está “aburguesada” e lisboacêntrica?
[risos] Acho que nós todos estamos aburguesados de forma geral — também tenho os meus momentos de grande burguesa. Há uma parte de mim que quer responder de forma imediata a isso, mas há outra parte mais racional que me leva a pensar melhor, talvez devido a uma maturidade maior que já tenho. Não sei que tipo de vida é que as pessoas tiveram, que tipo de crescimento lhes proporcionou o facto de terem nascido em Lisboa ou terem pais com bons abonos. Não é por nascermos numa família abastada ou de bem que temos infâncias felizes. O Sartre tem uma frase interessante em que diz: não interessa o que a vida fez de ti, interessa o que fizeste com o que a vida fez de ti. Ou seja: não interesse como cresceste, o lugar ou as condições, independentemente do círculo de pessoas e do meio de onde provéns é importante olhares depois para o outro e saíres à rua e ires procurar realidades diferentes da tua.
De que forma é que a nossa realidade se enquadra nas demais: essa é uma preocupação que tive sempre. Não sei se aconteceu por ter nascido ali, por sermos todos tão diferentes e termos de nos gramar e brincar juntos — porque brincar só com dois ou três seria uma chatice, a maior parte dos jogos não podíamos fazer com duas ou três pessoas. Portanto tínhamos de chegar ali a consensos, tínhamos de ser diplomáticos e amigos. Quero dizer com isto que não faço ideia o que leva a que o panorama nacional possa estar mais ou menos musicalmente ligado à realidade e interventivo sobre ela. Agora, posso dizer: sim, acho que a nossa música está socialmente muito pouco interventiva. Mas também não sai um Zeca Afonso assim de cada esquina [risos], nem um Sérgio Godinho, nem um Adriano [Correia de Oliveira].
“Quis deixar de ter aquele universo de cantautora. O álbum anterior era mais vulnerável, quase de menina”
Foi mais difícil compor este disco do que o anterior? Há aquela ideia meio mística do “difícil segundo disco”, do que acontece a um artista depois de ter canalizado canções, muitas ideias e muitas letras para um primeiro álbum — para o qual já verteu tanto de si.
Não aconteceu nada disso, nada mesmo. Quando lanço o primeiro disco, sai com oito canções na primeira edição e com nove na segunda. Há um tema chamado “O Monstro” que sai na segunda edição como nono tema. Na altura, as coisas saíram assim porque também só queria perceber como o disco ia ser recebido e como eu própria me sentia com ter partilhado aquelas músicas com as pessoas. Saiu de forma muito desinteressada e inocente. Na verdade, tinha 99 ou mais canções que podiam ter saído, mas aconteceu assim, foram trabalhadas aquelas. Nunca foi uma coisa nada racional, o primeiro disco sai e foram aquelas nove canções que vieram — sinto que podiam ter sido outras, sinceramente.
Neste disco já tinha uma objetividade maior. Depois do álbum anterior, comecei a tocar, bastante até, mas tinha um repertório muito curto — nove canções não dão para um concerto. Tinha outras músicas em que comecei a trabalhar e fui lançando como singles novos temas. Queria que esses singles não ficassem perdidos, desirmanados. Então, destas 20 canções de este disco, cinco são temas que já vinham do espectáculo anterior ao vivo. As outras 15 acabam por ser uma fatalidade, queria muito trabalhá-las. Já não as fui escolhendo com a lógica de: hoje se calhar faço esta, amanhã se calhar a outra. Aqui escolhi aquelas que que queria mesmo ter, que faziam sentido para mim estar neste conjunto. Pensei que a “Ai Weiwei” batia certo com a “A Sede do Xega”, por exemplo, que a “Urgentemente” batia certo com a “Magnetização”. Enfim, já fui fazendo uma relação entre canções. Mas não aconteceu esse bloqueio de “e agora o que vou fazer mais?”, não tive uma crise existencial sobre as canções.
Estava à procura de um som diferente? O que tinha definido antes de começar a trabalhar no álbum?
Quis que este disco fosse diferente, que deixasse de ter um universo muito de cantautor — que era algo que o primeiro tinha. Esse era um álbum muito mais vulnerável, muito mais quase de menina. Queria que este fosse uma coisa mais dura, mais encorpada, com mais instrumentos, mais cheia. Trabalhámos nisto muito intensamente, é um disco muito longo e que exigiu muitas horas de estúdio e de produção. Mas as canções chegam sempre a um ponto em que penso: está feito, podem ter imperfeições mas para mim estão boas, é mesmo assim que queria que saíssem.
Não é comum na indústria musical, mesmo na mais independente, um artista ou uma artista afirmar-se musicalmente na fase de vida em que a Cátia está — teria 35 ou 36 anos quando o primeiro disco de A Garota Não saiu. Mas a verdade é que pode ser considerada uma “revelação” musical neste momento da sua vida. Acha isso curioso? Pode ser visto como uma prova de que, para quem tem talento, nunca é tarde para fazer a sua música ser descoberta, ouvida e apreciada?
Em termos pessoais, apareço no momento da minha vida em que podia aparecer. Até esta fase não estava nada preparada ou pronta para mostrar as coisas que tinha para mostrar. Sempre fiz muitas músicas, desde muito novinha, mas era tão envergonhada e tão reservada que jamais me poria num palco a cantar o que quer que fosse. O meu processo é muito pessoal. Se mostra que independentemente da idade há sempre uma forma de nos mostrarmos e há sempre uma oportunidade? Acho que sim. Não quero parecer imodesta ou armada em esperta, mas acho que quando o que trazemos é um bocadinho diferente do que existe, não tem nada a ver com a idade. É uma mensagem nova, fresca, diferente. Sinto que foi isso que trouxe. É o que as pessoas me dizem: gostam de mim por eu ser um bocadinho diferente do que existia.
Isto tem um impacto direto nas canções? Acha que com 20 e poucos anos conseguiria fazer canções como estas ou a maturidade foi decisiva para ter mais coisas a dizer sobre o mundo, sobre as relações humanas, sobre as injustiças e desigualdades que foi conhecendo e vendo?
Vamos crescendo e sentimos — achamos, pelo menos — que temos sempre mais a dizer sobre o mundo. Eu já escrevia muito, mesmo em criança. Nem tinha 10 anos, tinha 7, 8 ou 9, e havia um programa na televisão cujo conceito era pegar em áudios que já existiam e mudarmos a letra. Lembro-me que uma vez peguei no tema “Esta Vida de Marinheiro”, dos Sitiados, e fiz uma letra com coisas que via no telejornal.
A hora do telejornal era sagrada para a minha mãe, estivéssemos a jantar (que era o que normalmente acontecia) ou na sala, em família. Assistíamos religiosamente. Aquilo foi-me marcando e lembro-me de escrever sobre assuntos sobre os quais se calhar nem percebia grande coisa, mas fazia-o com a perceção que tinha. Escrevia sobre estas realidades que me marcavam e sobre as quais queria escrever. Acho que o que mudou foi que se calhar a minha escrita era um bocadinho mais pirosa, menos lírica. Acho que agora consigo dizer as coisas de forma menos bruta, ou com um bocadinho mais de classe, com alguma elegância. Quando escrevo uma música sobre os recibos verdes e falo da Segurança Social, é difícil escrever sobre esse tema sem ser muito básica. Tento, pelo menos… pode haver quem não ache poético de todo.
Já pensou muito no que se propõe quando se senta a escrever uma canção? Qual é o principal objetivo e intuito: é escrever uma canção que gostasse de ouvir, é escrever uma canção que comova o ouvinte, é escrever uma canção que convide à ação?
É uma resposta muito egoísta: o que me move é muitas vezes libertar-me de coisas que me estão a abafar o peito. Quando escrevo sobre amores, sobre encontros e desencontros, coisas que vivi, coisas que me deixaram tensa ou triste, é porque preciso de escrever sobre isso. Não é para ninguém ler e se identificar — pode acontecer porque somos humanos e muitas vezes repetimos a mesmas histórias. Mas não é para A ou B ouvir.
Há pouco falava da história do “Mediterrâneo”: “vivi” aquilo intensamente através da televisão e precisava mesmo de, depois de chorar — ou enquanto chorava —, escrever sobre aquilo. Não sou um animal muito social, tenho amigos e sou empática, mas não sou de grandes conversas, muito profundas. Se calhar por isso é que faço psicoterapia, é o momento em que digo o que se passa comigo aqui dentro. As músicas são quase como se fosse a uma consulta, é aquele momento de deixar ir alguma coisa. Não faço uma canção para ser gostada. Fico muito contente quando é apreciada, quando alguém se identifica, quando aquilo ajuda alguém. Mas é sobretudo para mim e para me tratar a mim.
“Se dou continuidade a José Mário Branco? Não sei. Se me sinto herdeira? Sinto”
Começa o disco com os versos “podem decretar o fim da arte / é como decretar o fim da chuva”. Quem é que vai decretando, ou tentando decretar pelo menos, o fim da arte?
Em última análise seremos todos nós. Quer enquanto criadores quer enquanto consumidores de cultura e seres humanos, se não percebermos que a arte tem funções e é um mecanismo importante no exercício da cidadania, da partilha, do conhecimento — sobre nós e sobre o outro — podemos decretar isto se não nos envolvermos mais. Falávamos há pouco do envolvimento dos músicos com a realidade, mas a questão é muito mais profunda: passa pelo envolvimento de todos nós com a realidade. Se quisermos apontar o dedo a alguém, podemos sempre dizer que a culpa é dos Governos…
Os Governos têm, claro, um papel central, de base, porque se nas escolas não houver educação para a cultura, se não formos educados ou preparados para alguma coisa também nunca daremos o valor a essa coisa, ao que ela representa. Esse é um dos textos do disco que não fui eu que escrevi, é um texto que nasce de uma publicação que vi no Facebook do Miguel Tiago, que na altura já nem era deputado do PCP na Assembleia. Ele publicou essa entrada no Facebook: “Podem decretar o fim da arte / é como decretar o fim da chuva”. O João Monge pegou nesse verso e escreveu todo um poema, que é o poema do canção. Ele publica-o, eu li o poema, enviei-lhe mensagem e disse-lhe: João, vou musicar isto. Nessa noite musiquei-o e depois a música nasce. Mas voltando atrás, quem pode matar a arte? Somos nós e estes governos, a quem se calhar exigimos pouco do ponto de vista da cultura — com Orçamentos muito [pausa] parcos, nem sei bem qual é o adjetivo, e sem a lógica que devia estar por trás de uma educação para a cultura.
Há uma canção particularmente surpreendente, na medida em que se diferencia um bocadinho de outras canções que escreveu, ritmicamente e melodicamente: a “Ai Weiwei”, que no balanço tem qualquer coisa de onírico, de sonhador.
Essa música em particular nasce de uma parceria que fiz com o Fred [Pinto Ferreira]. Participámos num projeto que era o MAPA — Mostra de Artes da Palavra, em Oeiras. Propusemos fazer um espetáculo que não fosse nem de A Garota Não nem de Fred — que foi convidado e me convidou a mim. O Fred já tinha muitos beats feitos, outros fizemos mesmo à medida. A ideia foi: vamos pegar em jornais e revistas e eu reescrevia sobre temas que estavam nesses jornais e revistas. “A Sede do Xega” foi um dos temas que nasceram aí, o “Ai Weiwei” foi outro.
Nessa altura o Ai Weiwei estava a ter um impacto grande aqui em Portugal, devido à exposição que teve na Cordoaria. Havia outdoors sobre a exposição espalhados pelas cidades. Isso despertou-me interesse e fui ver vários documentários que ele produziu e entrevistas que deu. Fui à exposição e nem gostei particularmente, embora acho que isso se deva mais à curadoria do que às peças. Mas impressionou-me aquele homem, aquela personalidade, a forma como se envolve nos assuntos. Ele é mesmo um ativista. Às vezes sinto-me quase uma ativista de pantufas quando penso: escrevi sobre refugiados mas o Ai Weiwei foi ao campo de refugiados, levou uma equipa de reportagem, filmou e fez documentários. Ele vai aos sítios, vai à China e arrisca-se a ficar lá retido outra vez porque tem mesmo de fazer um documentário sobre um terramoto que destruiu escolas e no qual morreram milhares de crianças, que o Governo estava a querer abafar. Ele é o tipo de ativista que admiro porque vai aos sítios, envolve-se, fala com as pessoas, está lá nos escombros.
Isto foi uma forma de lhe prestar homenagem — e queria que fosse uma homenagem contente. Quando o Fred me apresentou dezenas de beats para os quais podia escrever, gostei particularmente deste e pensei: o do Ai Weiwei é este. Exatamente por isso, porque tem esse som meio onírico, de utopia, de sonharmos com uma coisa que podia ser mais frequente em nós, humanos: sermos ativistas a sério. E falo também por mim.
Tem como convidado o Chullage na canção “Não Sei O Que É Que Fica”. Sei que é uma referência para si, um artista cujo discurso musical — e provavelmente fora da música também — acha interessante. Quer explicar porquê e como é que surge esta canção?
Vivo em Setúbal e trabalho na divisão de juventude da Câmara Municipal de Setúbal. Conheci o Chullage porque ele era uma espécie de formador, de professor, numa formação em produção musical que tínhamos aqui para os miúdos do bairro. O papel dele era dar-lhes dicas, ensiná-los a trabalhar com as máquinas, com os programas de computador que serviam para isso. Fiquei logo muito impressionada com a forma como se relacionava com os miúdos e como estava a dar gratuitamente o seu tempo para vir a Setúbal. Foram muitas, muitas aulas e ninguém lhe estava a pagar nada, ele acreditou no projeto e veio. Isto foi há uns cinco anos, eu tinha acabado de entrar neste trabalho.
Começámos a falar bastante. Ele na altura ainda voltou para Inglaterra, estava lá a estudar e viver, mas correspondemo-nos sempre por e-mail sobre poesia, sobre coisas que ele via em Inglaterra acontecerem e o desconcertavam, sobre coisas que a mim me aconteciam e me desconcertavam. Quando começo a escrever esta letra sobre questões relacionadas com o turismo, a habitação local, sobre pessoas serem retiradas da casa onde sempre viveram porque há um interesse maior que se levanta… isso é uma realidade que compromete muitas vezes a dignidade das pessoas, porque muitas ficam sem um sítio para ir ou têm de ir para sítios onde ninguém quer viver.
Esse fenómeno existe em Setúbal?
Começámos a sentir. Era uma fenómeno de que ouvíamos falar em Lisboa — retirar do centro da cidade pessoas que sempre aí viveram —, que serve para estimular o turismo e para ter como arrendatários pessoas que possam pagar rendas muito altas. Isso começou a acontecer em Setúbal, também. Tenho amigos nesta condição e escrevi sobre isto. Depois convidei o Nuno para complementar o meu texto, para fazer o que fizesse. Tem de ser uma coisa muito livre com ele, porque é um tipo muito difícil [ri-se]. Mostrei-lhe o que tinha e ele disse: faço. Mas ainda me disse: acho que isto tinha de ser mais aprofundado. E eu: olha, mas eu não sou rapper, as minhas letras não têm de ter quilómetros como as vossas que escrevem 500 versos numa canção. Disse-lhe que sentia que parte do que queria dizer estava ali escrito, que ele escrevesse o que lhe apetecesse dizer porque nada se esgota aqui. E ele fez.
Ao décimo tema, traz o Chega e “um gato na sede da Chega” para a música: lembra-se do momento em que escreveu essa canção e porque a caneta a levou por aí?
Esse texto é muito irónico. O que queria era fazer um exercício de sarcasmo com uma reportagem que vi na Sábado. Não é que a reportagem jornalisticamente me parecesse mal, até a achei bastante isenta e curiosa. O pressuposto era acompanhar André Ventura no período de umas eleições, durante não sei quantos dias — creio que uma semana. A reportagem era extensa, mas achei engraçada porque tinha várias partes: agora está no hotel com a mulher, agora está no carro, agora foi tomar o pequeno-almoço. Quase me fazia lembrar aqueles livros: Anita no campo, Anita no supermercado, Anita mamã, Anita com um animal de estimação. A reportagem depois evolui, evolui, vai sempre acompanhando e ele vai dizendo aquilo que tem a dizer.
Às tantas apeteceu-me pegar naquilo e brincar com todo aquele conceito. Não inventei nada, todas as palavras são retiradas daquela reportagem. A cereja no topo do bolo foi na sede do Chega haver este gato que se chamava António. Brinquei só um bocadinho sobre isto [ri-se], porque não dá para ficar sempre e só zangada com as coisas que ele diz e com a forma como nós o comunicamos. Apeteceu-me só explorar um bocadinho o ridículo que é… todos de facto somos assim, temos estes movimentos perpétuos de simplicidade, somos todos muito parecidos em algumas coisas. Mas ideologicamente carregamos um fardo.
Tem também logo a seguir uma canção muito comovente, a “Urgentemente”, um poema-canção liricamente e musicalmente muito peculiar. Enquanto em muitas canções problematiza injustiças, denuncia de alguma forma defeitos ou desequilíbrios sociais, esta canção não faz exatamente isso, é quase uma receita terna de combate. É uma canção refúgio?
Neste disco creio que são três os temas cujo texto não é meu: esta “Urgentemente”, a primeira de que falámos que tem como autor da letra o João Monge e há ainda um texto que usei do Criolo, rapper brasileiro. Esta é um poema do Eugénio de Andrade, maravilhoso, que musiquei. O poema chama-se Urgentemente e é exatamente aquilo que cantei — mas repeti-o três vezes porque a proposta ali era quase criar um mantra, para que enquanto ouvíssemos fossemos imaginando aqueles lugares que ele descreve e porque é que tínhamos de destruir isto e aquilo e procurar os outros elementos a que ele chama “a conversa”.
Acho o poema delicioso, é terno, é meigo. Este tema está estrategicamente colocado a seguir à “A Sede do Xega” no alinhamento do disco — e é engraçado porque sede tem um duplo sentido, é o espaço físico e a sede por algo —, e vou cantá-los também nessa ordem nos concertos. É precisamente o que acho que falta no discurso do Chega: amor, partilha, tolerância, compreensão.
Na faixa 15 canta um tema do Criolo, “Casa De Mãe”. Foi por gostar muito do tema ou porque de alguma forma a letra ecoa experiências suas, experiências que teve?
Ecoa sempre em todos nós, a menos que para aí aos 18 anos já tenhamos uma casa alternativa onde possamos namorar [risos]. Para quem vive na casa dos pais — e eu vivi até aos 26 —, ressoa, pelo menos ao longe porque nunca fui muito namoradeira. Mas acho que todos fomos sentindo mais ou menos no nosso crescimento que às vezes para namorar um bocadinho, o facto de vivermos com os pais nos retirava algum espaço para isso. Acho muita piada à forma como o Criolo descreve isso na letra dele. Ele fez isto como um sambinha, aqui foi transformado num tema mais denso, à imagem do que sou musicalmente. Escolhi-o não tanto por ressoar na minha vida, mas sobretudo porque tenho uma imensa pena de já não ter mãe. É por isso que às vezes os temas que me falam de uma mãe são os que me apetece cantar, trazem-me memórias e comovem-me por ter esta saudade aqui mais latente.
Canta também “Mulher Batida”, uma nova versão do tema que fez com os Orelha Negra a partir da “Ready”. Essa versão anterior, com os Orelha Negra, fez crescer o número de pessoas atentas à sua música, que a ouvem?
Sim. Trouxe mais público, senti isso por exemplo nas redes sociais: conseguimos quantificar um bocadinho por aí, é o que temos e a realidade que vivemos. A partir desse lançamento comecei a ter muito mais seguidores, comparativamente aos que tinha. E sobretudo terem-me levado a participar no “Eléctrico”, programa que o Henrique Amaro produzia para a RTP e Antena 3, fez mais gente conhecer a minha música. Esse vídeo foi muito bem recebido. Não fiz esta parceria para procurar isso, agora que veio e que me sinto agradecida por isso? Sem dúvida. Isso é normalmente o que o Fred traz à minha vida: acrescentar valor, criar espaço para crescer e dar-me oportunidades para que me ouçam. Tenho de lhe prestar homenagem porque este convite parte essencialmente dele. Eles são cinco, mas é uma banda mesmo muito democrática. Um deles diz: gostava de convidar esta pessoa. E os outros respeitam e aceitam.
Nesse tema reflete sobre o papel da mulher, sobre a imagem social que há da mulher, sobre amarras à liberdade feminina. São temas que aborda também noutra canção, a “Que Mulher é Essa”, que começa com os versos “que mulher é essa / que eu vejo na telenovela? / as mulheres à minha volta / não se parecem nada com ela”. E depois: “será que as feias vivem todas na minha cidade?”, “só entra a gorda para perder calorias” e “mas a preta não entra / a baixa não entra, não / a velha não entra / a torta não entra, não”. Como é que isto se resolve, esse desfasamento entre a importância predominante da aparência e a importância de tudo o resto?
Não sei. Acho que a partir do momento em que a escola sirva para formar cidadãos e para preparar seres humanos com profundidade, acabaremos por ir resolvendo alguns problemas. Para mim, são problemas. Escrevo essa música porque assisti, num tempo curiosamente muito próximo cronologicamente, a dois episódios de amigas minhas. Uma é preta, outra é baixa. Por fisicamente ou esteticamente não obedecerem a determinadas regras, as duas foram excluídas de algo. Não sei como se resolve, mas penso que devemos tratar deste problema que temos enquanto sociedade: rejeitarmos tudo o que não corresponde ao nosso padrão. As marcas hoje em dia até já estão a fazer algo para mostrar uma outra mulher, que não tem as medidas X, aquele rosto perfeito e super simétrico. Acho que também foram muito empurradas para isso pelos movimentos ativistas e sociais. Tem de haver educação e menos valorização da imagem, do que cada um usa, dos ténis que calça, do carro que tem.
Termina o disco com “Canção a Zé Mário Branco”. É notório que se identifica com o património musical — e de intervenção musical — de José Mário Branco. Sente-se herdeira, discípula, alguém que dá continuidade a esse património?
Não sei se dou continuidade. Se me sinto herdeira, sinto. Todos nos devíamos sentir herdeiros. É uma herança, uma preciosidade o que o José Mário Branco nos deixa, quer em canções quer em outro tipo de manifestos. Somos todos seus herdeiros.
Que expectativas é que tem para a receção a este disco? É um disco no qual notoriamente investiu muito de si. Além de conseguir ter um disco como este nas mãos, que tipo de outras recompensas gostaria de ter? Concertos, mais gente a ouvi-la?
Vou ser mentirosa se disser que não esperamos sempre isso. Todos esperamos isso quando lançamos um disco: que as pessoas nos queiram ouvir, que existam espectáculos ao vivo, sentirmos que aquilo que fizemos está a ser procurado. Também gostava muito de ouvir as músicas na rádio — não só as minhas, há tantos projetos que vou conhecendo pelo algoritmo do Spotify, portugueses, que nunca ouvi em nenhuma rádio em Portugal. Adorava que as rádios dessem mais oportunidades àqueles que não estão ainda muito bem estabelecidos, que não têm o apoio dos lobbys comerciais e editoriais que sustentam as playlists das rádios. É muito difícil ouvir durante duas horas uma rádio e aparecer alguém de quem nunca ouviste falar. Gostava que fosse um bocadinho diferente, não só pela minha música mas pela música de muita gente de valor que compõe e nunca tem espaço radiofónico.
Já teve convites para escrever para outros, já teve intérpretes a pedir-lhe canções?
Já escrevi muito para fadistas, para estas fadistas da nova geração. Para a Sara Correia, por exemplo, já escrevi um fado. Já escrevi alguns para a Maria Emília e já escrevi outros para fadistas que não são tão conhecidas. E gosto muito de escrever para outros, mas neste momento… quando escrevi para a Sara Correia não a conhecia, conheci-a no dia do lançamento do disco, fui cumprimentá-la nos bastidores. Agora só me apetece escrever quando conheço a pessoa e quando sinto que posso escrever alguma coisa que aquela pessoa possa dizer com propriedade, sendo em simultâneo um texto que me deixe confortável. Tem de ser sempre um dois em um. Não faz sentido pôr um texto mais politizado na voz de pessoas cujo perfil de artista não segue muito essa linha. E também não me interessa escrever só sobre amor, sobre fait-divers [risos]. Posso escrever mas tenho de ter ligação à pessoa. Gostava muito de ter convites, e tenho tido até alguns — não vou referir nomes porque acho que não devo —, mas tenho de sentir alguma identificação com a pessoa e sentir que tenho alguma coisa para lhe dar com uma letra minha.
Acharia socialmente interessante ter cada vez mais mulheres, no fado, a escrever canções para outras mulheres e para homens também? Historicamente no fado acontecia o contrário: eram sobretudo homens que escreviam as letras que as fadistas cantavam.
Historicamente acontecia o contrário, é verdade. Acho que a Manuela de Freitas foi muito importante nisso, abriu-nos território a muitas de nós — até credibilizando a voz da mulher nisto. Foi importante.