Já anoitecia em Coimbra quando José Luís Carneiro saiu do carro acompanhado da mulher, dirigiu-se à sede distrital do PS, subiu as escadas e posicionou-se no púlpito para falar numa sala pequena, com 16 lugares sentados (e mais outros tantos de pé). Ouviam-no militantes socialistas vindos de vários pontos do país, mas quem se destacava na sala era uma espécie de sombra: ao lado do púlpito, uma fotografia emoldurada de António Costa sorria diretamente na direção de Carneiro.
A sombra de Costa — que promoveu o antigo segurista Carneiro por várias vezes, garantindo-lhe cargos de destaque dentro do partido e do Governo — e a conciliação entre a próxima etapa do PS e o seu legado será um dos dilemas que o candidato à liderança socialista terá em mãos até ir a votos nas eleições diretas, marcadas para meados de dezembro.
Talvez por isso, depois de ter feito saber nos últimos dias que andava a recolher apoios pelo país fora e que estaria disponível para avançar contra Pedro Nuno Santos, Carneiro acabou por lançar a sua candidatura, numa declaração curta e sem direito a perguntas dos jornalistas, focando dois pontos: abriu o discurso com a defesa de um PS que esteja acima de outros “interesses” que não o “nacional”; e fechou-o com uma palavra “muito sincera” de homenagem a Costa.
Carneiro promete reformas para o 25 de Abril
No arranque da intervenção de poucos minutos acompanhada pelo sorriso do primeiro-ministro demissionário, o atual ministro da Administração Interna fez questão de reconhecer o momento “excecional” que o país vive, defendendo que é imprescindível que um partido “fundador do regime democrático” — escolheu, de resto, a sede de Coimbra por ser a primeira que o PS inaugurou, ainda antes do 25 de Abril — e de Governo prove ter claro que “os desígnios permanentes do interesse nacional têm de valer e ser preservados acima de quaisquer outros interesses”.
Num momento em que um escândalo por suspeitas de corrupção atinge o PS onde mais dói — e provoca a queda do primeiro-ministro –, Carneiro quis deixar uma espécie de garantia de idoneidade em “tempos difíceis”. Sem lançar nenhuma farpa diretamente contra Costa, a referência anti-interesses fez ainda assim lembrar o antigo líder do PS e rival de Costa, António José Seguro, que Carneiro apoiou e que na quente disputa interna de 2014 fez campanha contra a velha política que misturava “negócios, interesses e favores”.
Mais à frente, Carneiro insistiria no assunto: a primeira promessa que deixa passa por apresentar um “ambicioso programa de reformas pelo rejuvenescimento das instituições democráticas”, como marca dos 50 anos do 25 de Abril, que se comemoram em 2024.
Nove anos depois da última contenda interna no PS, e estando plenamente integrado no ‘costismo’, Carneiro tem consciência do “enorme desafio” que tem pela frente: primeiro, e antes de olhar para o país, na corrida à liderança do PS, onde deverá representar a ala mais moderada e centrista do partido por contraponto à candidatura do rosto da ala esquerda socialista, Pedro Nuno Santos, que tem a seu favor um maior controlo do aparelho do partido e a simpatia de militantes de várias sensibilidades.
Por isso mesmo, Carneiro fez questão de se apresentar como um “convicto militante do socialismo democrático”, com uma opção “ideológica” clara, e “acima de tudo um democrata”. Se Pedro Nuno deverá oferecer uma visão de um PS mais à esquerda, na convicção de que o partido deve polarizar para ganhar votos, Carneiro deu algumas pistas sobre o que seria uma liderança sua, com um teor ideológico menos vincado e muitas promessas de diálogo e pragmatismo à mistura: falou da necessidade de promover “esforços de concertação” e “cooperação” entre todos os setores, insistiu na importância da “disponbilidade para o diálogo” e “capacidade de compromisso”, e rejeitou empenhar-se em “retóricas inúteis e voluntarismos inconsequentes”.
Carneiro será antes um candidato “firme e de pés na terra”: “É com esta atitude, que implica falar claro, saber ouvir e decidir com fundamento, que me candidato”, atirou. Quantos à estratégia de Governo mais concreta que apresentaria se vencesse o PS, mencionou as “contas certas” que são um legado dos tempos de Costa (e de Mário Centeno, João Leão e Fernando Medina) e a vontade de apostar numa “economia dinâmica”.
Feito o agradecimento a Costa, pelo “legado político” e pela confiança que depositou em José Luís Carneiro (que escolheu como secretário-geral adjunto do PS, secretário de Estado das Comunidades e ministro da Administração Interna), sobrou uma promessa, a olhar para dentro do partido: qualquer um dos adversários contará com um “camarada fraterno e disponível para o engrandecimento de um projeto político comum”, mesmo que haja diferenças de opinião “circunstanciais”.
Com Pedro Nuno Santos, que apresentará a sua candidatura esta segunda-feira, no Largo do Rato, as diferenças serão certamente mais do que circunstanciais. Na sala em que escolheu lançar a sua candidatura, Carneiro tinha consigo, além da sua mulher, o ex-presidente da Câmara de Coimbra Manuel Machado e dezenas de militantes de base vindos de vários pontos do país (Lisboa, Setúbal, Porto, Viseu, Braga e Aveiro), além do publicitário próximo do PS Vítor Tito, que em 2015 foi associado à criação dos polémicos cartazes da campanha de António Costa, negando ter sido o responsável.
Foi com a mulher, Tito e alguns apoiantes que fizeram questão de o cumprimentar pelo caminho que Carneiro se dirigiu ao carro em passo rápido, depois de não responder às perguntas pelos jornalistas, atirando apenas: “Vai haver tempo, vamos ter tempo”. Entrou no carro e à porta da sede do PS Coimbra ficaram alguns dos colegas de partido que ali se deslocaram para apoiar o candidato, e que focaram depois as atenções no homem a quem Carneiro quer suceder, minutos antes de o atual primeiro-ministro falar ao país sobre o caso judicial em que está envolvido: “Então e o Costa, já falou?”.