“Preocupados” e “firmes”. Era assim que os novos aliados do Governo se diziam, no começo das negociações para o Orçamento do Estado de 2023, prometendo fiscalizar a pente fino o cumprimento das medidas que tinham feito aprovar no Orçamento deste ano para garantir que não se deixavam enganar por promessas vãs do Governo. Agora, já perto do final do processo orçamental, é difícil obter dados concretos sobre essa execução: nem Governo nem partidos fornecem números específicos, embora assegurem que a aplicação do OE está a correr bem.
Na véspera de mais uma aprovação assegurada, ou não fosse este um Orçamento de maioria absoluta, o Governo garante ao Observador que a execução das propostas da oposição está a decorrer e dentro do tempo previsto. Nos partidos aliados, há alguma hesitação e reparos nas demoras, mas a avaliação acaba por ser “globalmente positiva”, à medida que continuam a conseguir aprovar algumas propostas na especialidade (mesmo que muitas não tenham grande impacto orçamental), parecendo abrir a porta a mais uma viabilização.
Mesmo assim, é curioso constatar que os mesmos partidos já fizeram aprovar este ano várias medidas iguais ou muito parecidas com normas aprovadas no ano anterior – é o caso de formações sobre direitos humanos para funcionários públicos e forças de segurança ou estudos sobre o impacto da menstruação na saúde e na qualidade de vida em Portugal, que não terão chegado a sair do papel.
As restantes bancadas, em rutura com o PS – à esquerda como à direita – ironizam com mais um Orçamento em que, dizem, o Governo se compromete sobretudo a ir “estudar, avaliar e ponderar” (Mariana Mortágua dixit), dada a elevada quantidade de estudos e relatórios que aprova, enquanto chumba propostas de maior impacto orçamental (97% das propostas da oposição tinham sido chumbadas até esta quinta-feira, contabilizava o PSD ao início do dia).
Uns “pequenos aditivos” da oposição não ajudarão a que este Orçamento fique “turbinado”, sintetizava, durante o debate, Rodrigo Saraiva, líder parlamentar da Iniciativa Liberal. Ana Catarina Mendes respondia, numa tentativa de desmistificar a ideia do “rolo compressor”, uma imagem que se colou ao PS já no último Orçamento: a maioria absoluta será até um “estímulo” para o diálogo. Mesmo que esse aconteça mais fora, com parceiros sociais e sindicatos, como o Governo tem lembrado, do que dentro do Parlamento.
Governo diz que “maioria” está a ser executada, Livre lembra calendário difícil
O que é certo é que é difícil avaliar, na prática, a execução das medidas da oposição – uma vez que ninguém fornece números concretos. Ao Observador, o gabinete da ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, relembra que, graças à crise política do ano passado e às eleições antecipadas de janeiro, este Orçamento só entrou em vigor a 28 de junho – “e está a ser implementado no tempo previsto”, assegura, embora sem fornecer dados mais específicos. “A maioria das propostas da oposição aprovadas estão em execução ou já foram executadas”, garante a mesma fonte.
Entre os partidos da oposição que conseguiram fazer aprovar propostas no ano passado há, no entanto, mais cautelas. Questionado pelo Observador, o gabinete parlamentar do Livre faz a mesma ressalva sobre o calendário deste Orçamento, uma vez que “o ano de 2022 ainda decorre” e “a avaliação tem de refletir essa situação”.
O partido considera, de resto, que o Governo “poderia ter sido mais célere” na implementação de algumas medidas, e dá um exemplo: o estudo do impacto da menstruação no mercado laboral, medida que voltou a fazer aprovar este ano, depois de ter ficado na gaveta do Orçamento anterior.
“No entanto”, defende o partido de Rui Tavares, “outras medidas importantes” já estarão pelo menos “em andamento”: são os casos da medida-bandeira do Livre, o programa 3C, para a eficiência energética (com fundos associados ao Plano de Recuperação e Resiliência); a majoração no programa Interior Mais; os estudos sobre a semana de quatro dias (embora o PS tenha rejeitado este ano alargá-los à função pública, como chegara a admitir); a formação em direitos humanos para trabalhadores das forças de segurança (no ano passado tinha aprovado formação sobre pessoas LGBTQI) e o subsídio de desemprego alargado às vítimas de violência doméstica (segundo o partido, “em fase de legislação e a ser aplicado ainda este ano”).
Tendo em conta este balanço e o timing do Orçamento, o Livre diz fazer assim uma “avaliação globalmente positiva, já que todas as medidas estão em execução” ou pelo menos “em vias disso”, exceto o estudo sobre a menstruação. E promete que continuará a acompanhar a sua execução “para que esta seja o mais plena e célere possível”, parecendo deixar a porta aberta para mais uma viabilização do documento, embora discorde, como recordava Rui Tavares no plenário, da visão do Governo para este Orçamento, nomeadamente no que diz respeito à estratégia de contenção orçamental.
Do PAN, a quem o Observador pediu um balanço e dados sobre a execução desde a semana passada, não houve resposta.
Nos outros partidos, a visão sobre este Orçamento é irónica. Enquanto Ana Catarina Mendes assegurava, no plenário, que a maioria absoluta até vai estimular mais o diálogo e que o PS tem mantido conversas permanentes com todas as bancadas, a oposição lançava gargalhadas, deixando o PS cada vez mais isolado no Parlamento e apenas com Livre e PAN a servirem como prova desse esforço de diálogo.
Os restantes partidos tinham conseguido aprovar poucas propostas de alteração no Orçamento passado. Agora, quase todos confessam não saber do estado em que essas medidas estarão. É o caso do Bloco de Esquerda, que diz ao Observador não ter “nenhuma informação” sobre o andamento da sua proposta de ações de informação sobre o ciclo mestrual ou do programa de promoção do estatuto dos profissionais da Cultura, que seriam, de qualquer forma, medidas com pouco ou nenhum impacto na despesa.
Já o PCP recorda ao Observador que no OE2022 só conseguiu aprovar parcialmente a sua proposta para atribuir o direito de preferência às autarquias na venda de imóveis penhorados no âmbito de processo de execução fiscal no seu território. “Na prática trata-se da criação de um mecanismo ao dispor das autarquias, que podem utilizá-lo caso o entendam. Portanto neste caso em concreto, as questões de execução orçamental não se aplicam”, lembra o partido. PSD e IL também tinham conseguido aprovar algumas propostas, não responderam em tempo útil.
Oposição ironiza com número de estudos e grupos de trabalho
De resto, na esquerda, que muitas vezes se disse enganada pelo PS na aplicação das propostas que conseguia fazer, mas só teoricamente, aprovar na reta final da geringonça (ainda neste debate Catarina Martins argumentava que o problema do SNS são as propostas que o PS repete todos os anos), constata-se com ironia a quantidade de “estudos e projetos-piloto” que os novos aliados fazem aprovar.
No ano passado somavam-se medidas como relatórios sobre a qualidade do alojamento no ensino superior (PAN), um relatório independente sobre espécies cinegéticas (PAN), um relatório sobre a qualidade das refeições servidas nas escolas (PAN), um estudo sobre a segurança nas zonas envolventes de instituições de ensino superior (PAN), a realização de um atlas de risco (PAN), o tal estudo sobre menstruação (Livre), um grupo de trabalho sobre a conversão de veículos de combustão para zero emissões (Livre), e ações de formação sobre a comunidade LGBTI ou questões de direitos humanos (Livre).
Este ano, somaram-se mais uns quantos exemplos, como a comissão técnica e científica para avaliar e apresentar propostas para a mitigação da poluição luminosa da luz artifical exterior ou o estudo nacional sobre poluição luminosa, ambas propostas do Livre, aprovadas sem as alíneas que implicavam compromissos financeiros, ou o projeto-piloto para a distribuição de produtos menstruais (PAN e PS).
A juntar, claro, a algumas medidas com mais algum impacto orçamental ou a propostas bandeira, como as do PAN para o alargamento da tarifa social da energia ou a extensão da taxa de carbono para as viagens aéreas com jatos privados, e a criação do passe ferroviário nacional para comboios regionais, proposta pelo Livre.
Partidos aprovam medidas iguais às que ficaram na gaveta
Mas uma pista mais concreta sobre o que não está a ser executado poderá passar pela quantidade de propostas que este ano estão simplesmente a ser repetidas, depois de ainda há meses terem sido aprovadas.
Há vários casos deste género: este ano, repete-se a proposta de formação para direitos humanos para alguns funcionários públicos, incluindo conteúdos sobre a comunidade LGBTI e igualdade de género; no ano passado era aprovada a ideia de um plano de formação contínua na administração pública nas mesmas áreas, assim como em matérias ligadas ao acolhimento de refugiados e migrantes.
Desta vez, o PAN também voltou a aprovar, como fez no OE2022, a criação de um atlas de risco das alterações climáticas, para que sejam identificados “os principais riscos para o território e para a população decorrentes de diferentes cenários de alterações climáticas”.
No OE2022 estavam também previstas medidas que ficaram por executar, “alegadamente por falta de verba da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas”, para a aquisição de livros para as bibliotecas integrantes da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas e a oferta de cheques livro às famílias no valor de cinco euros – propostas do PAN que voltaram agora a ser aprovadas.
Já o relatório sobre a qualidade nutricional das refeições servidas nos estabelecimentos de ensino básico e secundário, que tinha sido aprovado no Orçamento passado, não deverá ter chegado à prática – e este ano acabou chumbado.
A forma mais concreta de acompanhar a execução orçamental acontece, curiosamente, devido a uma proposta de alteração o PAN, que no Orçamento de 2022 conseguia inscrever uma normal que obrigava à inclusão de dados sobre execução no portal Mais Transparência. E essa proposta foi implementada: é possível consultar o site e ver os números totais de despesa executada até setembro. Só não é possível distinguir em a que medidas corresponde essa despesa – e sobre isso não há, pelo menos para já, respostas.