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Como a guerra na Ucrânia já invadiu o território russo

Desde o início da guerra, Ucrânia já atacou centenas de vezes território russo. Ocidente não ajuda, mas consente. Rússia instala sistemas de defesa anti-aérea em Moscovo e na mansão de Putin.

A 26 de março, um drone caiu na cidade de Kireyevsk, na província russa de Tula. Nada fazia prever que a localidade, a 224 quilómetros de Moscovo e a cerca de 360 quilómetros da fronteira ucraniana, seria alvo de um ataque — aquele não era, de resto, o destino final do equipamento de origem soviética e a que a Ucrânia tem recorrido no último ano. A Reuters citava relatos de equipas dos serviços de emergência no terreno que descreviam uma cratera visível numa zona urbana daquela cidade de 25 mil habitantes, provocado pela queda do drone. Ao lado, casas com telhados destruídos e paredes rasgadas. E uma população tão surpresa como revoltada pela decisão de Moscovo de travar aquele ataque numa zona residencial. “E se as crianças estivessem em casa? Teriam sido mortas. Ninguém pensou nisso. Permitiram que isto acontecesse. Simplesmente não querem saber, não tenho outra explicação”, desabafava uma moradora, enquanto apontava para um terreno baldio, a 500 metros de distância, como um local mais seguro para aniquilar a ofensiva.

Kireyevsk foi apenas um entre 56 episódios daquele mês em território russo. E um entre os quase 400 ataques com drones, bombardeamentos, situações de confronto armado do último ano — e mortos, cerca de 40, num registo com peso simbólico por representar a capacidade de Kiev em libertar-se das suas fronteiras e infligir danos no país invasor. O cenário daquela cidade mostra como a guerra na Ucrânia se tornou, com o avançar do conflito, uma guerra com cada vez mais consequências físicas na Rússia. Os 56 ataques de março de 2023 contrastam drasticamente com os números do ano anterior: em março de 2022, não foi registado um único ataque em território russo.

Depois do ataque de Kireyevsk, o ministério da Defesa da Rússia deu conta de que os sistemas de defesa aéreos russos conseguiram intercetar o equipamento. “Ao perder a direção, o veículo aéreo não tripulado caiu perto da cidade de Kireyevsk.” E apontou o dedo ao “regime de Kiev”, apesar de a Ucrânia nunca ter reivindicado o ataque. Mas a possibilidade de terem sido forças leais a Volodymyr Zelensky a lançar o drone não é totalmente infundada — Moscovo alega, aliás, que o equipamento utilizado foi o Strizh, um drone de reconhecimento que remonta à época soviética, que foi readaptado pelas tropas ucranianas (com capacidade para transportar mísseis) e que tem sido usado na última década.

Os ataques ucranianos em solo russo começaram logo após Vladimir Putin ter dado luz verde para o início da invasão, mas começaram a ser cada vez mais frequentes ao longo da guerra. Abandonando uma posição meramente defensiva, a Ucrânia mostra que também consegue furar pelo território da Rússia e lançar ataques de forma inesperada, levando as autoridades de Moscovo a tomar precauções.

Para prevenir um ataque, a Rússia instalou sistemas anti-mísseis Pantsir-S1, capazes de intercetar ataques de aeronaves, helicópteros e mísseis de cruzeiro, no topo de edifícios estratégicos em Moscovo. E até o Presidente russo parece recear que a Ucrânia possa atacar pontos estratégicos. Recentemente, Vladimir Putin terá instalado aqueles sistemas anti-mísseis perto da mansão que detém na cidade costeira de Sochi.

“O Kremlin tem tomado medidas de precaução ao reforçar as defesas áreas dentro e ao redor de Moscovo”, comenta Mikhail Troitskiy, em declarações ao Observador, o professor de Prática da Universidade de Wisconsin-Madison, que se dedica ao estudo da política russa. O especialista acrescenta que este tipo de defesa pode ser “suficiente” para aguentar ataques de um drone, mas não para suster “vários ataques de mísseis”. “Eu conjeturo que a Rússia possa estar seriamente preocupada com a perspetiva de retaliação ucraniana contra o território russo — especialmente naqueles locais que têm um significado simbólico.”

O primeiro ataque ocorreu em fevereiro de 2022 e, desde então, as ofensivas foram ganhando intensidade em alguns momentos decisivos do conflito. Mas há várias obrigações legais (quer à luz do direito internacional quer à luz dos requisitos dos aliados) que a Ucrânia tem de cumprir antes de concretizar estes ataques.

400 ataques, 40 mortos:
a cronologia e os números dos ataques em solo russo

Os primeiros ataques compilados numa base de dados pela organização não governamental (ONG) Armed Conflict Location and Event Data Project remontam a 27 de fevereiro de 2022. A Ucrânia lançou dois drones para dois locais perto da fronteira: o primeiro para Tuapse (no sul, junto à Crimeia) e o segundo para Belgorod (a cerca de 50 quilómetros da fronteira russo-ucraniana).

Numa altura em que a Ucrânia se via a braços com uma invasão que dificilmente conseguia suster, atacar território russo não era tarefa fácil. Além de o foco das tropas leais a Volodymyr Zelensky estar na defesa do seu próprio território, Kiev ainda não contava com a preciosa ajuda do Ocidente no que diz respeito ao envio de armamento. Praticamente todo o arsenal de que dispunha naquele momento estava destinado a tentar travar o avanço das forças invasoras.

Naquele contexto, e olhando para os dados da ONG norte-americana, é possível constatar que durante o mês de março de 2022 a Ucrânia não concretizou qualquer ataque em solo russo. Nessa fase do conflito, as tropas ucranianas estavam espalhadas para combater em vários pontos do território, como Kherson ou Kiev, ao mesmo tempo que a diplomacia ucraniana se multiplicava em esforços para manter o apoio do Ocidente, além de trabalhar para garantir o envio de armamento vital do Ocidente.

Foi já no final de março que as tropas russas abandonaram os arredores de Kiev, deixando um rasto de destruição em localidades como Bucha ou Irpin. Praticamente em simultâneo, a Ucrânia dava início aos ataques em solo russo (mas sempre perto da fronteira), com dois no dia 1 de abril — um deles com recurso a drones.

Durante a primavera de 2022, e afastada a possibilidade da conquista da capital, com tudo o que isso teria implicado, a Ucrânia foi tentando resistir aos sucessivos avanços russos, principalmente no sul. Contudo, em meados de abril, os ataques contra território russo ganharam, pela primeira vez, intensidade — só no dia 14 de abril registaram-se quatro.

Em maio, a ofensiva russa estava concentrada no sul, nomeadamente na cidade cercada de Mariupol. O objetivo de Moscovo passava por conquistar a localidade — e isso implicava tomar o último reduto de resistência da Ucrânia controlada pelo batalhão Azov: a fábrica siderúrgica Azovstal onde centenas de combatentes e também cidadãos ucranianos se refugiaram. Após semanas de resistência, a 16 de maio, as forças de Kiev cederam.

O cronograma mostra que, no dia a seguir à tomada de Azovstal pela Rússia, os ataques ucranianos em solo russo sucederam-se. Antes da renúncia do batalhão Azov, a Ucrânia tinha atacado por seis vezes o território da Rússia desde dia 1 a 16 de maio; depois disso, de 17 a 31 de maio, contabilizaram-se 17 ataques. Em junho, no entanto, o número de episódios voltou a decair (apenas oito).

Julho de 2022 marca o fim dos avanços russos, nesta primeira fase da guerra. A última localidade conquistada pelas tropas de Vladimir Putin foi Lysychansk, logo no início do mês. Após isso, verificou-se uma situação de impasse entre os dois lados do conflito. Aproveitando esse momento, Kiev lançou vários ataques contra território russo a partir de 5 de julho — no total, e até ao final do mês, foram 26.

Como a Ucrânia enganou russos (e não só) com um golpe de contrainformação para recuperar território

Em agosto, numa altura em que a Ucrânia ultimava os últimos detalhes da contraofensiva, os ataques diminuíram em território russo, totalizando-se 13. As tropas ucranianas estavam focadas em retomar partes do território, principalmente a sul. Soube-se, mais tarde, que Kiev engendrou uma estratégia de contra-informação para enganar a Rússia. Sem que nada o fizesse prever, Kiev lançou uma contraofensiva a norte em meados de setembro, o que permitiu recuperar por completo o oblast de Kharkiv.

Ainda a meio daquele mês, os ataques em solo russo voltaram a intensificar-se. E, em outubro, numa altura em que a Ucrânia prosseguia na contraofensiva a sul, ainda aumentaram mais, foram registados 46 — um novo máximo desde o início da guerra.

A contraofensiva a sul registava o maior avanço em novembro. A Ucrânia conseguiu recuperar a cidade de Kherson, uma vitória que teve tanto de estratégica como de simbólica. Foi a primeira que Kiev conseguiu reconquistar uma localidade que tinha sido anexada oficialmente pela Rússia, após os alegados referendos realizados em setembro de 2022 (e cuja legitimidade é contestada pela comunidade internacional). Paralelamente, o número de ataques ucranianos foi praticamente o mesmo comparativamente com o mês anterior: 47.

Kherson, vitória ucraniana ou russa? A estratégia militar diz-nos que tanto Kiev como Moscovo saem a ganhar

Com a chegada do inverno e da neve — uma fase que se antevia que pudesse paralisar as movimentações no terreno, pelas condições difíceis que a época representa —, as tropas ucranianas colocaram em pausa a contraofensiva. Depois de ter perdido alguns territórios, a Rússia centrou os seus esforços de guerra no leste do país, em redor de localidades ainda controladas pela Ucrânia nos oblasts de Donetsk e Zaporíjia, que Moscovo alega que fazem parte da Federação Russa. Os ataques aéreos russos, que visavam a destruição da infraestrutura civil e energética da Ucrânia, passaram a repetir-se com maior frequência.

Em dezembro e janeiro, a Ucrânia esteve por detrás de 34 ataques em território russo. À boleia dos esforços diplomáticos de Kiev, o novo ano trouxe, contudo, boas notícias para a frente militar da Ucrânia, com o anúncio do envio dos tanques modernos do Ocidente, que permitiriam preparar uma nova contraofensiva a partir da primavera. Ao mesmo tempo, a Rússia concentrava-se em redor de Bakhmut e também tentava preparar uma nova ofensiva.

Foi em fevereiro e março de 2023 que os ataques ucranianos em solo russo mais se fizeram sentir, superando um total de mais de 50 em cada um dos meses. Enquanto preparava uma nova contraofensiva, a Ucrânia procurou também atingir de forma mais intensa o território russo. Essa foi, aliás, uma promessa formulada pelo chefe dos serviços secretos ucranianos, Kyrylo Budanov. Numa entrevista à ABC News, o responsável disse que o objetivo ucraniano passava por atacar o território russo de forma “cada vez mais profunda”.

“A impunidade” e o golpe no moral russo:
os objetivos da Ucrânia

Para Mikhail Troitskiy, as forças ucranianas têm um objetivo em mente ao desencadear estes ataques, alguns deles cada vez mais “profundos”. “Tentam enviar a mensagem de que a Rússia não pode ficar impune ao atacar a infraestrutura militar e civil na Ucrânia”, sublinha o especialista, em declarações ao Observador.

“Kiev tem dito que os seus ataques visam apenas instalações militares, mas alguns dos seus ataques na Rússia até ao momento foram direcionados a infraestruturas de duplo uso, como aeródromos ou refinarias, para atacar o território russo”, ressalva o especialista.

Por sua vez, Ian Matvev, um analista militar russo, disse ao Washington Post que os ataques têm como objetivo desmoralizar as tropas de Moscovo, mais do que causar danos em edifícios ou destruir capacidades militares russas. “Com drones com pequenos explosivos, é improvável que isso cause danos físicos consideráveis, mas representa um golpe no moral”, afirmou.

Em relação à reação russa, o professor universitário considera que Moscovo já encara com alguma naturalidade os ataques perto da fronteira, que correspondem à esmagadora maioria. “As regiões russas fronteiriças com a Ucrânia estão há muito tempo na zona de guerra por conta dos ataques ucranianos e por aqueles que são levados a cabo por grupos pró-Ucrânia”, sinalizou Mikhail Troitskiy, referindo que a “Rússia já aceita este dano colateral” resultante do conflito que iniciou no país vizinho.

Na ótica de Mikhail Troitskiy, a “grande questão” é “perceber se a Ucrânia” é “capaz” de ir mais além do que a fronteira e atacar “Moscovo e outras grandes cidades“: “A Ucrânia pode já ter as armas com a distância suficiente para atingir Moscovo — e a Rússia está a instalar sistemas de defesa anti-aérea em redor de Moscovo para se prevenir desses riscos”.

Para o major-general José Arnaut Moreira, em declarações ao Observador no passado mês de janeiro, a Ucrânia “perdeu o medo internacional” de estar a “atacar na profundidade do território”, tendo isso ficado patente no número reduzido de “restrições que o Ocidente ia colocando sempre que atribuía equipamentos sofisticados no sentido de não serem utilizados dentro do território russo”.

O militar explica igualmente que, com o envio de armas, munições e carros de combate do Ocidente, a Ucrânia foi reunindo “um conjunto de capacidades” ao longo de conflito que acabaram por reforçar a capacidade do país para atacar o território russo. “Mais do que sistemas fornecidos pelos Estados ocidentais, estamos a falar do processo de transformação que a própria Ucrânia realizou com base em equipamentos que herdou desde os tempos soviéticos, nomeadamente a reconversão de drones ou através de equipamentos até de natureza comercial que foi capaz de adaptar a funções de natureza militar”, reforçou José Arnaut Moreira.

Um desses exemplos de investimento nas capacidades militares ucranianas é o da indústria dos drones. À revista Economist, uma fonte da Defesa ucraniana confessou que um dos grandes objetivos é tornar aqueles equipamentos cada vez mais potentes, desempenhando um papel mais “significativo” no conflito, inclusivamente nos ataques à Rússia — que se querem mais “profundos” e a chegar a localidades que antes eram inimagináveis.

O gatilho ucraniano surgiu em resposta aos ataques russos com recurso a drones iranianos durante o inverno (significativamente mais baratos), que danificaram parcialmente o setor energético do país. Kiev quer replicar esse modelo — e o ministério da Transformação Digital está empenhado nesse objetivo. “A necessidade é a mãe de todas as invenções”, salientou ainda fonte da Defesa ucraniana.

Não encorajam, mas também não reprimem:
a reação complacente dos aliados de Kiev

Até ao momento, o Ocidente nunca censurou qualquer ataque ucraniano na Rússia. O secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, esclareceu, em dezembro de 2022, que os aliados não “encorajam”, nem “permitem” que seja utilizado armamento ocidental em solo russo. Mas logo a seguir concedeu que é “importante” entender que os “ucranianos estão a enfrentar todos os dias a agressão russa contra o seu país”.

Assumindo que os Estados Unidos têm conhecimento dos ataques (mas não os orquestram, nem ajudam a Ucrânia a concretizá-los), Antony Blinken lembrou que o território ucraniano era alvo de ataques recorrentes, de “dia e de noite”. “É uma realidade diária e noturna na Ucrânia”, destacou, sem apontar qualquer repreensão às autoridades de Kiev.

Mikhail Troitskiy mostra-se cético das declarações de Blinken, quando o responsável norte-americano recusa a ideia de que a mão de Washington possa estar por detrás dos ataques em território russo. O especialista aponta o facto de a Ucrânia se ter limitado (pelo menos, de que haja conhecimento público) a usar “armas ucranianas para atacar território russo”. Mas, contrariando a posição expressa por Blinken, deixa em aberto a possibilidade de o Ocidente já ter prestado algum tipo de apoio com a “divulgação de informações” confidenciais, necessárias para que os ataques sejam bem-sucedidos.

Isto porque, argumenta o professor universitário, os aliados da NATO “provavelmente querem que os ataques de Kiev sejam precisos”, não concedendo dessa forma a Moscovo um “pretexto para uma escalada massiva” do conflito. Por exemplo, no ataque à ponte de Kerch (na Crimeia) que ocorreu no dia a seguir ao 70.º aniversário de Vladimir Putin, a Rússia ordenou um ataque massivo de drones a vários pontos ucranianos.

Havendo ou não apoio explícito à Ucrânia por parte do Ocidente, Mikhail Troitskiy não tem dúvidas de que os ataques em solo russo são, pelo menos, consentidos — e não são alvo de qualquer reprovação. “Os apoiantes ucranianos definitivamente consideram que esses ataques são legítimos, porque a Ucrânia está em estado de guerra com a Rússia”, embora nenhum dos dois países tenha declarado guerra.

À luz das Convenções de Genebra (um conjunto de tratados que estabelece as bases do Direito Internacional Humanitário), e considerando o conflito que mantém com a Rússia, a Ucrânia não comete qualquer crime de guerra ao atacar alvos militares em solo russo. Apenas estaria a fazê-lo se usasse armas biológicas, nucleares ou químicas, ou se atacasse alvos civis — o que até ao momento não se comprovou.

Não havendo qualquer impeditivo em termos legais, o Ocidente não faz nada para impedir as investidas ucranianas na Rússia. Na ótica de Mikhail Troitskiy, essa situação apenas mudará se a Ucrânia utilizar armamento ocidental num ataque contra a Rússia sem informar os seus aliados. Mas essa hipótese não parece provável.

Dando como exemplo a doação britânica à Ucrânia dos mísseis de longo alcance Storm Shadow (que têm capacidade para atingir a região de Moscovo, se lançados desde a fronteira ucraniana), o especialista lembra que o Reino Unido tem capacidade para “controlar” a trajetória do míssil. “Seria necessário a autorização de Londres”, frisa.

Mikhail Troitskiy também não acredita que o Ocidente mude a sua abordagem no que concerne aos ataques em solo russo, ou seja, não deverá incentivá-los. Apenas se as “circunstâncias mudarem”. Ou seja: se, por exemplo, a Rússia empregar “táticas” e “armas proibidas” na Ucrânia — como as nucleares —, isso poderá levar a um volte-face na posição do Ocidente. Mas levaria também, inevitavelmente, à entrada de outros potências no conflito. E a uma escalada indesejada da guerra na Europa.

 

[Já saiu: pode ouvir aqui o quinto episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. E ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio, aqui o terceiro episódio e aqui o quarto episódio. É a história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África]

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