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Esta bonita história começou a 20 de Agosto de 2018, quando Greta Tintin Eleonora Ernman Thunberg, então com 15 anos e a iniciar a frequência do 9.º ano de escolaridade, decidiu fazer greve às aulas até às eleições legislativas de 9 de Setembro (o ano escolar sueco começa mais cedo do que cá), em sinal de protesto contra a inacção do governo sueco face às alterações climáticas. Em vez de ir às aulas, Greta passou os dias seguintes frente ao parlamento sueco com um cartaz onde se lia “Skolstrejk för klimatet”: “Greve às aulas pelo clima”. Chegado o dia 9 de Setembro, Greta anunciou nova forma de luta: não queria comprometer a sua educação, mas não desistiria da luta: passaria a fazer greve pelo clima todas as sextas-feiras. O carácter inédito da iniciativa levou a que tivesse alguma divulgação, mas houve quem pensasse que a determinação da rapariga fraquejaria logo que os doces dias de Verão dessem lugar ao inclemente Outono sueco e o caso seria esquecido.
Um conto de fadas
A retórica de Greta não era muito sofisticada – na sua greve frente ao parlamento distribuiu uns panfletos em que justificava assim a sua acção: “Estou a fazer isto porque vocês, adultos, estão a cagar-se para o meu futuro” – e a sua campanha pelo clima era solitária – tentara aliciar os colegas de escola a juntar-se a ela, sem sucesso. Porém, as redes sociais trataram de divulgar a greve de Greta e, pouco a pouco, começou a aparecer nos noticiários televisivos e nos jornais, a ser citada por gente respeitável, a ser convidada para falar em público sobre a sua nobre causa e a inspirar adolescentes um pouco por todo o mundo a convocar greves climáticas: em Dezembro já eram 20.000 os “grevistas”, espalhados por 270 cidades.
Entretanto, no final de Novembro, Greta já expusera as suas preocupações numa conferência TEDx em Estocolmo e a 4 de Dezembro fizera-o na 24.ª Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, em Katowice, na Polónia. O momento decisivo teve lugar em Janeiro de 2019, quando o discurso de Greta no selecto Fórum Mundial de Davos correu mundo.
[Discurso de Greta Thunberg no Fórum Mundial de Davos:]
Os eventos tomaram um ímpeto inesperado: em Julho, Greta foi convidada para discursar na Assembleia Nacional francesa e a 23 de Setembro de 2019 teve o seu momento de maior projecção mediática até à data, quando fez um discurso de alta tensão emocional perante os líderes mundiais presentes na Cimeira da Acção do Clima das Nações Unidas, em Nova Iorque.
[Discurso de Greta Thunberg na Cimeira da Acção do Clima:]
A rapariguinha que clamava sozinha no meio do deserto viu subitamente toda a gente passar-se para o seu lado, iluminada pelas suas sábias palavras e encorajada pelo seu destemido exemplo: governantes e decisores multiplicaram-se em atos públicos de contrição e juraram lutar contra o dióxido de carbono até ao seu último fôlego, académicos com décadas de investigação em Ciências da Terra mas que nunca tinham erguido a voz sentiram-se compelidos a assinar manifestos pelo clima, filantropos abastados e gente anónima contribuíram para a criação de fundos de emergência climática, os partidos políticos, da esquerda à direita, apressaram-se a inscrever medidas ambientais nos seus programas (para grande amofinação dos partidos “ecologistas desde a primeira hora”), os gabinetes de arquitetura juraram nunca mais erguer um edifício ou uma casota para cão que não fosse “eco-friendly”, as empresas passaram a publicitar todos os seus produtos, serviços e eventos como “sustentáveis”, “bio” ou “eco”, as universidades anunciaram o banimento da malfadada carne de vaca dos menus das cantinas, houve gente que decidiu passar a urinar no duche para poupar água ou até a prescindir do duche tout court, os jornais e revistas encheram-se de artigos a explicar como diminuir a pegada de carbono consumindo produtos locais e de colunas de opinião denunciando os criminosos carbónicos e os ladrões dos sonhos e da infância das miúdas suecas. O planeta estava salvo. FIM.
É possível voar sem sentir remorsos?
Há um século a ideia de subir a bordo de um avião suscitava em muitos um sentimento de medo, plenamente justificado pela fragilidade e pouca fiabilidade das máquinas voadoras de então. O progresso tecnológico e a democratização da viagem aérea reduziram significativamente o medo de voar, mas este parece estar a ser substituído, em 2019, pelo que os suecos chamam de “flygskam”: “vergonha de voar”. Esta vergonha está associada a um sentimento de culpa decorrente das elevadas emissões de CO2 associadas às viagens aéreas (285 g por quilómetro e por passageiro) e tem contraponto, na Suécia, no “tagskryt”, o “orgulho em andar de comboio”, um meio de transporte com menor libertação de CO2 (14 g por quilómetro e por passageiro).
Porém, a “flygskam” tem ainda pouca difusão fora da Suécia e a tendência mundial é oposta: o número de passageiros transportados anualmente passou de 3.000 milhões em 2013 para 4.200 milhões em 2018 e prevê-se que duplique até 2035, um crescimento que terá lugar sobretudo na região Ásia-Pacífico – em 2016, as 10 rotas aéreas que mais passageiros transportaram situavam-se já todas nesta região, o que não tem nada de surpreendente, dado ser a região do planeta onde existem mais pessoas. O que não quer dizer que a viagem aérea não continue a expandir-se na Europa: o tráfego de passageiros nos aeroportos portugueses registou um aumento de 6.8% de 2017 para 2018, atingindo os 55 milhões; no ano passado, Lisboa recebeu 29 milhões de passageiros, tantos quanto a soma de todos os aeroportos portugueses em 2013. Com o Aeroporto Humberto Delgado saturado, parecia consensual que seria necessário construir um novo aeroporto que servisse Lisboa, embora não seja nada consensual onde deverá ser construído, com cada cabeça a emitir a sua sentença e, no registo presunçoso e quezilento que nos é peculiar, a “arrasar” as propostas alternativas como se fossem idiotas ou até criminosas.
Mas quando o actual Governo se inclinou para a opção Montijo, durante a fase de consulta pública do processo de avaliação de impacte ambiental, houve várias associações ambientalistas – nomeadamente a Zero – que contestaram o estudo de impacte ambiental (EIA) alegando que “as emissões de gases com efeito de estufa não foram adequadamente avaliadas”. Porém, quando a Zero prossegue a argumentação afirmando que “a aposta na duplicação de tráfego de passageiros nos aeroportos de Lisboa nos próximos 40 anos – dos 30 milhões para 60 milhões – é uma visão completamente contra a sustentabilidade do planeta” (ver Zero chumba Aeroporto do Montijo: “Vamos ter um conjunto de emissões enormes”), percebe-se que esta reprovação não diz, afinal, respeito ao rigor da estimativa de emissões de gases de efeito de estufa neste EIA em particular, nem sequer ao projecto do aeroporto do Montijo, já que os milhões de passageiros que o aeroporto do Montijo pretende servir gerarão as mesmas emissões de CO2 quer o aeroporto seja construído no Montijo, em Alcochete, na Ota, em Monte Real, em Sintra, em Alverca ou em Rio Frio. O que a Zero contesta, afinal, de forma pouco frontal, é a própria necessidade de um novo aeroporto na região de Lisboa ou a expansão da capacidade aeroportuária do país.
É legítimo reprovar o EIA do aeroporto do Montijo por falta de qualidade científica ou tendenciosidade. É legítimo reprovar o aeroporto do Montijo com base em argumentos como a perturbação da avifauna do estuário do Tejo ou o acréscimo de poluição sonora infligido aos residentes na Baixa da Banheira. E é até legítimo defender que, como princípio geral, se deve desincentivar a viagem aérea e o turismo, pelo que Lisboa não precisará de outro aeroporto, nem sequer de ampliar ou aumentar a capacidade de tráfego do que já existe. Pode até defender-se que as taxas aeroportuárias sejam aumentadas para o triplo e que a recepção dos passageiros nos aeroportos portugueses deverá ser o mais desconfortável, morosa e antipática possível, de forma a dissuadi-los de voar para este destino.
Todavia, se se entende que é indesejável ter mais turismo e mais viagens áreas a partir e a chegar a Portugal, deverá 1) assumir-se isso claramente, 2) explicitar-se que modelo alternativo de economia se pretende para o país, 3) definir que outras actividades e produtos ambientalmente lesivos deverão ser desincentivados ou até banidos (tomar duche? usar sacos ou recipientes de plástico? usar papel higiénico?) e, claro, 4) levar uma vida em conformidade com estes ideais. Muitos portugueses lembrar-se-ão de, ao longo dos anos, terem visto estes dirigentes ambientalistas na televisão, prestando declarações a partir do Rio de Janeiro, de Kyoto, de Copenhaga, de Durban, de Paris e de Nova Iorque, e poder-lhes-á ocorrer perguntar que meio de transporte empregaram nas suas deslocações… o kayak?
Não no meu quintal
A Europa da Revolução Industrial era um sítio terrivelmente sujo e insalubre, mas, à medida que as indústrias extractivas e transformadoras foram desenvolvendo processos de fabrico mais “limpos” e eficientes (por pressão da legislação ou no interesse do industrial) e muitas unidades fabris se foram deslocalizando para países asiáticos onde a mão-de-obra é mais barata e a legislação ambiental mais permissiva, a Europa foi tornando-se mais aprazível, apesar de haver quem, ao mesmo tempo, lamente a perda de postos de trabalho decorrente da desindustrialização.
A Portugal, a Revolução Industrial chegou tarde e com menos intensidade do que na Europa setentrional e, com excepção de áreas localizadas, o país manteve uma natureza rural em boa parte do território, pelo que muitas das suas mazelas ambientais resultaram mais da urbanização desordenada do que das clássicas “dark satanic mills” a vomitar fumo negro e esgotos nauseabundos.
Foi em parte por ter “escapado” a essa industrialização maciça e ter conservado um encanto pitoresco e “retro” que Portugal encontrou uma fonte de rendimentos no turismo, que tinha, dizia-se, a vantagem de ser uma actividade pouco poluidora. Porém, quando começaram a fazer-se contas aos impactos dos turistas, percebeu-se que as pegada de carbono decorrente das suas deslocações era uma ameaça ao planeta e haveria que travar o seu crescimento. Quem assim opina não parece levar em conta que se dissuadirmos os turistas de visitar Portugal – impondo taxas aeroportuárias ou estrangulando os aeroportos – isso apenas os fará escolher voar para outro destino, pelo que, hélas!, em nada reduziria as emissões globais de CO2 associadas às viagens aéreas.
Mas se há quem se oponha ao turismo, também há quem nos diga que a agricultura intensiva não é alternativa, pois esta também põe uma infinidade de problemas ambientais, e o mesmo se passa com a pecuária, pois o consumo de carne e lacticínios é eticamente reprovável e ambientalmente insustentável. No que respeita à geração de energia, as centrais eléctricas que queimam combustíveis fósseis são para fechar quanto antes e apela-se à transição urgente para as energias renováveis, mas os locais mais convenientes e rentáveis para construir barragens hidroeléctricas estão praticamente esgotados e há forte oposição dos ambientalistas a alguns destes empreendimentos por destruírem os ecossistemas ripícolas e pouco acrescentarem à capacidade geradora de electricidade do país. As centrais solares desfeiam a paisagem e os aerogeradores são uma alternativa a encarar com reservas devido à mortandade que causam entre as aves (embora esta seja uma pequena fracção das aves que são mortas por gatos domésticos). Ao fim de décadas de investigação, as centrais movidas pela energia das ondas, das marés ou do gradiente térmico dos oceanos continuam a parecer muito pouco promissoras, além de terem, potencialmente, efeitos disruptivos sobre os ecossistemas marinhos. A geotermia dá para aquecer os islandeses, que são poucos e têm muitos vulcões e geysers, mas não é de grande préstimo para nigerianos ou uruguaios. Pois é, não há refeições grátis…
Apesar de governantes e políticos estarem agora tão embevecidos com a palavra “descarbonização” que a incluem em todos os discursos e programas, os especialistas em energia dizem-nos que, mesmo que duplicássemos o investimento em energias renováveis, ainda iríamos precisar de consumir quantidades colossais de combustíveis fósseis durante as próximas décadas.
Nalguns dias por ano, quando ocorre uma conjugação favorável de factores (barragens cheias, sol radioso e tempo ventoso), a produção de electricidade (que não é o mesmo que o consumo de energia) de Portugal pode assentar quase exclusivamente em energias renováveis, o que tende a criar a ilusão de que estamos perto da almejada “neutralidade carbónica”. Mas mesmo na improvável hipótese de, a curto prazo, as fontes renováveis conseguirem assegurar 100% da produção de electricidade, precisaríamos sempre de petróleo – de muito petróleo – para fazer mover os transportes e como matéria-prima para a indústria química.
Durante anos, a explicação (simplista) adiantada para a relativa pobreza de Portugal face à média europeia foi a falta de recursos minerais e durante décadas houve quem sonhasse com a descoberta de reservas de petróleo similares às que fazem a prosperidade da Noruega. Mas hoje, quando se fala de petróleo em Portugal, logo se ergue uma oposição intransigente – tão intransigente que nem sequer admite que se faça a prospecção, para saber o que poderemos ter (ou não). O argumento contra a extracção de petróleo é que, em terra firme, esta pode contaminar as águas subterrâneas, e no mar, arruinar a pesca e o turismo (que, nesta vertente retórica, volta a ser uma actividade desejável); em ambos os casos, são riscos bem reais e há que avaliar se os estragos causados pela extracção não excedem os seus benefícios. O argumento contra a prospecção de petróleo é mais difícil de entender: parte do princípio de que os combustíveis fósseis que ainda não foram extraídos são para ficar no subsolo. Uma vez que, pelo que vimos acima, iremos continuar a precisar de imensas quantidades de petróleo, a solução será continuar a importá-lo dos países que o possuem. Ou seja, o petróleo continuará a pesar na balança comercial e na pegada carbónica portuguesas mas quem fará o trabalho sujo e moralmente reprovável de o extrair serão os russos, os angolanos e os azeris.
Intimamente associado ao conceito de “descarbonização” está o conceito de “mobilidade eléctrica”: os transportes representam 25-30% do consumo de energia a nível mundial e 96% desse consumo é assegurado pelos combustíveis fósseis, portanto, se trocarmos os veículos movidos a combustíveis fósseis por veículos eléctricos, daremos um passo muito positivo, dizem-nos. Será verdade se conseguirmos assegurar que a produção de energia eléctrica seja basicamente de fontes renováveis, mas pouco adiantaremos se essa electricidade continuar a provir de combustíveis fósseis. Os veículos eléctricos requerem baterias cuja componente crucial é o lítio, um metal relativamente raro e desigualmente distribuído pelo planeta. Acontece que este parece ser um dos poucos recursos minerais com que Portugal foi bafejado: estima-se, grosseiramente, que as reservas portuguesas serão as 5.ª maiores a nível mundial, atrás do Chile, Austrália, Argentina e China. As empresas especializadas na extracção de lítio puseram-se em campo e logo encontraram obstáculos de monta: ambientalistas, populações locais e autarcas opõem-se terminantemente à sua extracção.
Em tempos, as populações locais e os autarcas do interior tendiam a ser a favor da instalação de indústrias extractivas e transformadoras, por verem nelas postos de trabalho e injecção de dinheiro num debilitado tecido económico, e era o governo central que tinha de esforçar-se para que tais projectos se conformassem aos regulamentos e processos de avaliação de impacte ambiental. Entretanto, o interior esvaziou-se de população em idade activa, pelo que de nada serve acenar com postos de trabalho: quem lá vive são reformados e um ou outro hippie ou urbanita convertido à New Age ou a uma qualquer fantasia ecológica e o que querem (legitimamente) é paz e sossego, pelo que vêem minas de lítio e olivais intensivos como ameaça, incómodo ou chaga na paisagem; os autarcas colocam-se, naturalmente do lado dos seus eleitores e agora é o governo central que tenta tranquilizá-los assegurando que todos os riscos serão acautelados e todas as medidas mitigadoras implementadas – a exploração do lítio decorrerá “com todo o rigor ambiental”, garantiu o Ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, aos contestatários, mas como os ânimos não serenaram e as eleições estavam próximas, o Governo preferiu adiar o concurso das concessões de exploração para a legislatura seguinte.
No mundo anglo-saxónico é corrente, no contexto da relação entre populações e projectos de desenvolvimento, o acrónimo “NIMBY”, que significa “Not In My Backyard”. Todos estarão de acordo que o futuro dos transportes estará na mobilidade eléctrica, desde que o lítio de que ela necessita não seja extraído de um lugar que eu possa ver do meu quintal. A mobilidade a pedal é ainda mais louvável do ponto de vista ambiental do que a mobilidade eléctrica, mas só se as ciclovias não reduzirem os lugares de estacionamento na minha rua.
A deslocalização de tudo o que é desagradável
Entre as medidas que podem contribuir para um planeta mais sustentável está o encerramento das centrais termoeléctricas, sobretudo as que consomem carvão, que são as mais poluidoras. Mas mesmo estas têm os seus defensores: o Plano Nacional de Energia e Clima prevê que a central de Sines, que em 2018 libertou 7.400 milhões de toneladas de CO2 (o que faz dela o maior emissor nacional, por larga margem), seja desactivada até 2030, mas os trabalhadores – cerca de quatro centenas – que ela emprega entendem que tal medida não tem fundamento técnico e é ditada por considerações políticas ou até eleitoralistas. Sim, queremos todos um planeta mais verde, desde que isso não signifique perdermos o nosso emprego. Mas há quem lamente o encerramento previsto da central por motivos fúteis: são os banhistas que têm o hábito de desfrutar da água do mar a 30ºC na praia perto do ponto de descarga do circuito de refrigeração da central (Público de 26.09.19). Sim, queremos todos um planeta mais verde, mas também queremos banhos mornos.
Para que a central de Sines seja encerrada será necessário que, entretanto, se faça um pesado investimento em energias renováveis – o Ministério do Ambiente estima que serão necessários 7.000 milhões de euros –, mas o PAN e o Bloco de Esquerda advogam que a central de Sines deverá ser desactivada já na próxima legislatura, o que poderá deixar o país na situação de ter de comprar ao estrangeiro a electricidade que costumava ser produzida por Sines e é bem possível que essa energia seja, também ela, produzida por uma central termoeléctrica a carvão, tão poluidora quanto a central de Sines, pelo que a pegada carbónica do consumidor português se manteria igual, ainda que o CO2 fosse emitido no estrangeiro.
A postura acaba por ser similar à de quem não quer, por princípio, que se extraia petróleo nem lítio em Portugal, apesar de, uma vez que precisamos de ambos, termos de os importar. Os ambientalistas mais pueris ou desorientados parecem apostados em banir do território nacional todas as actividades que sejam sujas, desagradáveis e ambientalmente nocivas, deslocalizando-as para outros países, aos quais compraremos depois os bens e serviços gerados por essas actividades e dos quais não queremos prescindir. No limite, a extracção de matérias-primas, a produção agrícola intensiva, a produção de energia, a transformação dos produtos seriam todos delegados ao exterior e, no fim, também para lá enviaríamos os resíduos, já que ninguém quer ter aterros sanitários ao pé de casa. Sair-nos-ia muito caro e nossa pegada ecológica continuaria a ser a mesma, só que não seria impressa no território nacional.
Há muitos ambientalistas que fingem estar preocupados com o planeta, mas que só cuidam do seu jardinzinho.
Agora somos todos verdes
O “efeito Greta” também chegou à política portuguesa e fez quase todos os partidos arvorarem-se subitamente em paladinos das causas ambientais – até Rui Rio, em tempos um aficionado dos ambientalmente reprováveis desportos motorizados, prometeu, caso forme governo, declarar o “estado de emergência climática”, o que não impediu que André Silva, do PAN, acusasse as suas propostas na área do ambiente de não passarem de “ecologiazinha dos anos 80”.
Mas os maiores atritos na disputa “sou mais verde do que tu” surgiram, naturalmente, entre PAN e Partido Ecologista Os Verdes, que viu os recém-chegados alcançar, num ápice, um protagonismo muito superior ao que amealhara em 37 anos de existência e 36 de representação parlamentar. Jerónimo de Sousa lamentou que “alguns, para quem a questão do ambiente era zero em termos programáticos, apareçam agora como campeões do ambiente” (Público, 09.12.19) e os Verdes acusaram o PAN de ser um partido populista, fundamentalista e proibicionista. O PAN reagiu (ver PAN volta aos animais e responde aos Verdes), classificando os Verdes como uma “ficção política”, “um projecto do seu patrão político, que é o PCP” e um partido que “perdeu a sua validade”, quiçá por também estar amarrado à “ecologiazinha dos anos 80”, em contraponto com a holística, desempoeirada e biodançarina ecologia 2.0 do PAN, cuja aceitação entre os portugueses foi comprovada nas eleições de 6 de Outubro passado.
Ambientalistas e negacionistas
Para manter alguma clareza nesta luta de palavras, convirá aqui lembrar que o termo “ambientalista” não distingue entre activistas da defesa do ambiente e especialistas em ambiente. Claro que as duas vertentes podem coexistir numa mesma pessoa, mas é frequente que os defensores do ambiente mais visíveis no espaço público não tenham formação (nem informação aprofundada) sobre o assunto. Algo de similar se passa com o termo “ecologista”, usado como sinónimo de “ambientalista”, e a natureza vaga do termo levou a que, do lado da academia, começasse a ter curso a designação “ecólogo”, referente aos especialistas na relação do homem com o ambiente, criando uma distinção face ao “ecologista-activista”. Por analogia, poderia esperar-se que surgisse o termo “ambientólogo” para designar os especialistas em ambiente, ficando “ambientalistas” reservado aos activistas, mas provavelmente tal termo não emergirá e a ambiguidade em torno de “ambientalista” manter-se-á. Para adensar a confusão, para quem está no lado direito do espectro político o termo “ambientalista” perde o significado de alguém com conhecimentos científicos sobre ambiente e passa a designar gente fanática conotada com a esquerda radical que pisoteia campos de milho transgénico.
Infelizmente, no espaço mediático os ambientalistas-especialistas são menos solicitados a intervir do que os ambientalistas-activistas, pois os primeiros insistem em estabelecer nuances, em tentar ver as questões sobre vários ângulos, em insistir que o mundo é extraordinariamente complexo e que, portanto, os assuntos têm de ser estudados, o que tende a maçar e confundir os telespectadores e os ouvintes, enquanto os segundos são muito assertivos, explicam tudo de forma simples, estabelecem relações causa-efeito inequívocas e têm soluções óbvias para todos os problemas (“para que os ursos polares não se extingam temos de nos tornar todos vegan”).
O termo “negacionista” também merece escrutínio: começou por designar os revisionistas que negavam a existência de eventos históricos plenamente comprovados, como o Holocausto ou o genocídio arménio, e foi alargado para incluir quem nega o fenómeno das alterações climáticas. Na verdade, a “negação” das alterações climáticas comporta várias nuances: há quem negue que elas sejam reais ou relevantes (ou seja, defendem que estão dentro das flutuações usuais nos parâmetros climáticos), há quem admita que são reais mas que a sua causa não é dominantemente antropogénica, e há quem, admitindo que são reais e de origem dominantemente humana, entende que não são causa para alarme nem para que, para as contrariar, se gastem milhares de milhões de euros e se comprometa o desenvolvimento económico. O negacionismo climático difere do negacionismo histórico num aspecto essencial: o segundo diz respeito a eventos passados e comprovados, o primeiro diz respeito a um futuro previsível, em relação ao qual há uma grande margem de incerteza.
Importa também distinguir duas variantes de negacionismo climático: há uma que se baseia não em estudos científicos mas em convicções ideológicas e mundividências – há, por exemplo, quem veja na campanha que exige acção contra as alterações climáticas uma conspiração da esquerda radical para destruir os valores tradicionais da civilização ocidental (o que inclui a fé cristã e a família patriarcal). Por outro, há cientistas competentes e honestos que, embora estando em minoria, apresentam argumentos válidos para contestar os 97% de climatologistas que defendem que as alterações climáticas são reais e dominantemente antropogénicas – é o caso da climatologista Judith Curry, de quem a Guerra & Paz acaba de publicar em Portugal o livro Alterações climáticas: O que sabemos, o que não sabemos.
Esta segunda variante, a que não será talvez apropriado aplicar o rótulo de “negacionismo” (“cepticismo” seria mais adequado), pois exprime apenas a abertura de espírito e a admissão de incerteza que a ciência tem necessariamente de comportar (e as ciências do ambiente mais do que quaisquer outras), vê, todavia, a sua credibilidade minada pela existência de uma terceira variante de negacionismo climático: a dos pseudo-cientistas ou cientistas renegados que são financiados por interesses económicos e políticos para desmontar a “teoria conspirativa do aquecimento global”.
O lobby das indústrias de combustíveis fósseis – cujos CEOs costumam saltitar, sem pruridos de consciência, entre o sector empresarial e cargos governamentais – e sectores políticos conservadores têm vindo a encomendar estudos que desacreditam o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) e os cientistas que com ele estão alinhados. Entre os mais activos financiadores deste negacionismo (aqui sim, o termo é plenamente justificado) têm estado os irmãos Koch, Charles e David (recentemente falecido), bilionários que presidem aos destinos da Koch Industries, o segundo maior grupo empresarial dos EUA, e que têm também financiado e instigado o sector radical do Partido Republicano (nomeadamente o Tea Party). Estima-se que 90% dos artigos que negam a visão consensual (entre a comunidade científica) das alterações climáticas sejam financiados por estes grupos de interesses económicos e políticos.
Sob a bandeira verde do comunismo
Mas deixemos a política norte-americana e regressemos à política nacional e, mais concretamente, ao confronto entre PCP/Verdes e PAN pela primazia na defesa do ambiente. Na última Festa do Avante, o PCP sentiu-se obrigado a puxar lustro aos seus galões ambientais: foi assim que se assistiu à aparição do slogan “O capitalismo não é verde” e ao ataque ao sistema de produção capitalista, que, dizem, por colocar o lucro acima de tudo, possuirá uma predisposição intrínseca para a destruição da natureza, enquanto o sistema socialista, ao rejeitar o primado do lucro, seria inevitavelmente mais amigo do ambiente.
Com efeito, se há regime político amigo do ambiente é o comunismo e a história da URSS dá disso amplo testemunho. O seu feito de maior repercussão mundial foi a explosão de um reactor da central nuclear de Chernobyl, em 1986, que foi (por larguíssima margem) o mais grave desastre numa central nuclear de sempre e cujo historial tem sido tão amplamente difundido e analisado (do arrepiante Vozes de Chernobyl, de Svetlana Alexievich, à recente mini-série televisiva da HBO) que dispensa mais detalhes.
Menos conhecida, mas igualmente meritória, é a Área de Testes de Semipalatinsk, a 150 Km da cidade do mesmo nome (hoje Semey, no Cazaquistão), onde foram realizadas, entre 1949 e 1989, 456 detonações de engenhos nucleares, sem que fossem minimamente acautelados os seus efeitos sobre a população local, que, de acordo com Lavrentiy Beria, responsável pelo programa nuclear soviético e pela selecção do local, seria inexistente.
Também não tem tido a publicidade que merece a cidade de Dzerzhinsk, situada 370 Km a leste de Moscovo, cuja indústria química terá enterrado e espalhado em seu torno 300.00 toneladas de resíduos tóxicos entre 1930 e 1998 e que foi, entre 1941 e 1965, um centro de produção de armas químicas. É considerada uma das cidades mais poluídas do mundo e a sua água contém níveis de dioxinas e fenóis 17 milhões de vezes acima do limite recomendado. Sem surpresa, a esperança de vida dos seus habitantes é de 42 anos para os homens e de 47 para as mulheres.
Um périplo pelo glorioso passado da URSS na defesa do ambiente poderá passar pela baía de Nezametnaya, na Península de Kola, onde, na década de 1970, os submarinos nucleares soviéticos abatidos ao serviço eram deixados a enferrujar; pelas regiões da Sibéria onde a extracção de petróleo e de minérios arrasou (e continua a arrasar, agora sob outro regime político) milhares de quilómetros quadrados de taiga e contaminou rios, lagos e águas subterrâneas; pelas lixeiras nucleares da Ásia Central, onde, ao longo de décadas foram despejadas, sem qualquer cuidado, 812 milhões de toneladas de resíduos radioactivos provenientes da mineração de urânio e da operação das centrais nucleares; pela cidade siberiana de Norilsk, situada acima do Círculo Polar Árctico e fundada em 1935 como nó central de um colossal complexo mineiro (o maior do mundo, à data) alicerçado no trabalho escravo dos prisioneiros do gulag conhecido como Norilag, e que lançava para a atmosfera anualmente dois milhões de toneladas de dióxido de enxofre, 500 toneladas de óxidos de cobre e 500 toneladas de óxidos de níquel; pelo Lago Karachay, nos Urais, que, a partir de 1951, foi usado como vazadouro do complexo de armazenamento e reprocessamento de resíduos nucleares de Mayak, e que ocupa, ainda hoje, o lugar n.º 1 do top dos locais com maior poluição radioactiva do planeta (é recomendado aos visitantes que não caminhem pelas suas margens durante mais de uma hora, tal é o nível de radioactividade dos sedimentos acumulados no seu fundo)
O roteiro dos triunfos ambientais do comunismo soviético poderá terminar no Mar de Aral, que, no início da década de 1960, era um lago salgado de 68.000 Km2 e que, em resultado do desvio das águas dos dois principais rios que nele desaguavam, o Amu Darya e o Syr Darya, para a irrigação de plantações de algodão no deserto do Uzbequistão, viu o nível das suas águas baixar ao ritmo de 20 cm por ano, entre 1961 e 1970, de forma que hoje é um conjunto de charcos estagnados e mortos.
Também a República Popular da China coleccionou medalhas de mérito ambiental, sob a liderança inspirada de Mao Tse-tung: uma das mais famosas foi a Campanha das Quatro Pragas, lançada em 1958 e integrada na política do Grande Salto em Frente. A campanha tinha por alvo ratos, moscas, mosquitos e pardais, sendo estes últimos sido apontados como causa de incomensuráveis prejuízos nas searas e pomares, rotulados de “animais capitalistas” e perseguidos com zelo fanático até perto da extinção. Ao fim de dois anos de campanha, algumas autoridades perceberam que, embora os pardais tivessem sido erradicados, as colheitas tinham diminuído, já que o consumo de cereais pelos pardais era amplamente compensado pela predação que exerciam sobre insectos nocivos e estes, livres dos seus predadores, estavam a proliferar e a causar estragos tremendos. Perante este tiro pela culatra, Mao decidiu substituir na lista das Quatro Pragas o pardal pelo percevejo, mas a ruptura do equilíbrio ecológico resultante do extermínio dos pardais levaria alguns anos a ser reparada e entretanto o Grande Salto em Frente dera lugar à Grande Fome de 1959-61, que causou algumas dezenas de milhões de mortos.
Outra das sábias medidas da campanha do Grande Salto em Frente foram as fundições de quintal: Mao entendeu que a forma mais rápida de industrializar a China seria que cada comuna – cada uma agregando cerca de 5000 famílias – construísse e operasse a sua própria fundição para produção de aço, que deveria duplicar a cada ano. O entusiasmo asinino colocado neste plano foi similar ao empregue na perseguição aos pardais: todas as matérias combustíveis (de árvores e arbustos a portas e caixões) foram colhidas para alimentar as fornalhas, onde foram vertidos, nas regiões onde não havia minério de ferro disponível, objectos como panelas, bicicletas e arados. Tudo isto redundou na produção não de aço de qualidade, mas de gusa imprestável, na destruição de vastas áreas de floresta e na poluição de todo o país por metais pesados, em resultado da tecnologia rudimentar das fundições de quintal.
[A campanha das fundições de quintal na China de 1958 (excertos de um documentário da PBS):]
https://youtu.be/60_Q-kAZbXA
Não só não há nada de intrinsecamente verde no comunismo e a sua atitude perante a natureza e o planeta é tão antropocêntrica, predadora e irresponsável como a do capitalismo. Para cúmulo, toda a destruição ambiental que os sistemas comunistas causaram nem sequer teve como contrapartida uma conquista tão modesta como providenciar sapatos decentes e confortáveis a todos os cidadãos.
Assim, não é de espantar que quando comunismo e capitalismo dão as mãos, como acontece na República Popular da China dos nossos dias, os efeitos no ambiente sejam calamitosos. O espectacular crescimento económico da China nas últimas três ou quatro décadas foi obtido à custa de graves danos ambientais: cidades permanentemente envoltas em smog, (apenas 1% da população urbana chinesa respira ar considerado apropriado pelas normas ambientais da União Europeia), solos agrícolas contaminados, rios poluídos, vastas áreas desertificadas devido à desflorestação, a práticas agrícolas desadequadas, à salinização dos solos e às chuvas ácidas, ecossistemas destruídos pelo represamento ou desvio de rios. Os efeitos do desenvolvimento a todo o custo da aliança comunista-capitalista não fazem sentir-se apenas no ambiente: a própria economia se ressente, estimando-se que os danos ambientais “roam” 2 a 10% do PIB chinês.
A República Popular da Coreia do Norte não se rendeu ao capitalismo, mas comete a proeza de combinar o pior de dois mundos: a produção agrícola e industrial está muito longe de ser capaz de satisfazer as necessidades básicas dos seus cidadãos, mas, como recorre a tecnologia decrépita, emite quantidades desproporcionadas de poluição. Por outro lado, o programa de obras públicas é guiado por critérios ideológicos ou pelos caprichos megalómanos do líder, que não têm em conta a preservação do ambiente ou o bem-estar das populações. Pelos padrões asiáticos, o tráfego automóvel na Coreia do Norte é irrisório, mas como 50% da produção de energia eléctrica do país é assegurada por sete centrais a carvão obsoletas, o nível de poluição atmosférica é preocupante. O atraso do país reflecte-se também na taxa de cobertura do saneamento básico: em 2017, apenas 7% das casas coreanas estavam ligadas a um colector de esgoto – o que significa que ficam por tratar os efluentes de 23.5 milhões de habitantes.
Poupar no farelo, gastar na farinha
Greta Thunberg não viaja de avião. É uma questão de princípio a que se atém intransigentemente e justifica-se por as emissões de CO2 por quilómetro das viagens de avião serem, em média, muito superiores às de outros meios de transporte. Assim, na Europa Greta tem-se deslocado de comboio e para estar presente na Cimeira da Acção do Clima das Nações Unidas cruzou o Atlântico, entre Plymouth e Nova Iorque, no Malizia II, um iate de competição que foi posto à sua disposição por Pierre Casiraghi, filho da princesa Carolina do Mónaco; o navio é movido pela força do vento e as suas necessidades de energia eléctrica são supridas por painéis solares, sendo, portanto, um meio de transporte neutro em carbono. Supostamente.
Acontece que para que esta viagem fosse realizada foi necessário que os tripulantes do Malizia II viajassem sobre o Atlântico de avião, pelo que, só por isto, a pegada carbónica da viagem de barco de Greta superou a que teria resultado se tivesse embarcado num qualquer voo comercial. Mas isto não é tudo: o Malizia II não é um tronco com uma vela, é uma peça de tecnologia de ponta cujo valor está estimado em 4.6 milhões de euros e nas matérias-primas, nos refinamentos tecnológicos nele incorporados está implícita uma pegada carbónica e uma pegada ecológica (são coisas bem diversas: a primeira diz apenas respeito a emissões de CO2, a segunda engloba a primeira e inclui todo o consumo de recursos e toda a geração de poluentes, resíduos e outras “externalidades” ecológicas). Uma piroga escavada num tronco com um machado poderá ter uma pegada ecológica negligenciável, um barco hi-tech de 4.6 milhões de euros tem uma grande pegada ecológica associada à sua construção e manutenção, mesmo que não emita (directamente) um grama de carbono enquanto se desloca.
Mas mesmo que o Malizia II fosse tão “ecológico” quanto é propagandeado, que poderia ele fazer para resolver o problema dos transportes do comum dos mortais, que não tem amigos generosos entre a realeza monegasca, nem leva uma vida tão relaxada e desafogada que lhe permita despender duas semanas para atravessar o Atlântico?
Enquanto o mundo se comovia com o discurso de Greta em Nova Iorque, nos antípodas outro paladino das causas ambientais anunciava uma alteração drástica na sua vida: o australiano Michael Mobbs, consultor em assuntos ambientais e autor de dois livros sobre como levar uma vida citadina sustentável, tinha vindo, desde 1996, a converter a sua casa em Sydney, num paradigma de autonomia e sustentabilidade. Todavia, chegou à conclusão – por moto próprio ou influenciado pelo tom apocalíptico do discurso de Greta – de que as alterações climáticas estão a desenrolar-se a um ritmo tão vertiginoso que irão causar o colapso da civilização dentro de três a cinco anos. Assim sendo, Mobbs pretende mudar-se com a família para um terreno na costa australiana onde instalará uma casa modular pré-fabricada “completamente auto-suficiente” e colocou à venda a sua casa de Sydney de 2 milhões de dólares (mas não anunciou ir devolver o dinheiro a quem comprou os seus livros sobre sustentabilidade que agora admite, implicitamente, serem inúteis).
Tal como acontece com o Malizia II, uma casa de 2 milhões de dólares incorpora necessariamente materiais e tecnologia a que está associada uma pegada ecológica. O luxo e a sofisticação têm custos ambientais implícitos e, pela mesma razão, é provável que os Tesla eléctricos (que custam entre 32.000 e 113.000 euros) com que Elon Musk diz pretender salvar o planeta acabem por ter, no cômputo global (construção + operação + manutenção + abate), uma pegada ecológica superior ao de um Toyota Aygo ou de um Fiat Panda, embora estes sejam movidos a combustível fóssil.
Temos em Portugal um exemplo paradigmático de como, no sector dos transportes, o ambientalismo sem fundamentos nem lucidez pode ser terrivelmente contraproducente: o Sistema Automático de Transporte Urbano (SATU) de Oeiras, um comboio não-tripulado circulando em viaduto (inspirado pelo Sydney Monorail), foi inaugurado em 2004 e apresentado como nec plus ultra de modernidade e consciência ambiental, um vislumbre do futuro da mobilidade urbana. Porém, acabou por revelar-se uma ruína do ponto de vista financeiro e foi desactivado após 11 anos a circular quase vazio e 40 milhões de euros de prejuízo (ver O “comboio fantasma” de Oeiras: O que correu mal com o SATU?). Menos publicitado foi o facto de o SATU ser também ruinoso do ponto de vista ambiental: sendo movido a electricidade, as emissões poluentes directas eram nulas, mas quando se considerava o seu consumo implícito de recursos e energia por passageiro e por quilómetro eram várias vezes superiores aos do mais guloso dos automóveis particulares.
O discurso ambientalista mais populista – o que domina no espaço público – faz uma contabilidade simplista das pegadas de carbono e repreende quem come carne de vaca ou bananas importadas da Colômbia ou não trocou o saco de plástico por um saco de pano, mas parece saber pouco sobre a complexidade do funcionamento dos sistemas naturais e da economia e não parece dar-se conta que algumas soluções favorecidas pelos “ambientalistas de senso comum” têm custos ambientais implícitos que superam os de opções que são usualmente demonizadas.
Não consideram, por exemplo, que na avaliação do desempenho ambiental de um painel fotovoltaico teremos de contabilizar os custos de extrair e refinar os metais empregues na sua construção (o que inclui a poluição associada à extracção e refinação dos minérios) e do destino a dar-lhe quando atingir o fim da sua vida útil – e não basta tentar varrer o problema para debaixo do tapete dizendo que “pode ser reciclado”, pois a reciclagem tem um custo energético e nem tudo é reciclável. O carácter extremamente diluído da energia solar e a sua inconstância faz com que, em certas regiões do mundo, um painel fotovoltaico instalado sobre um telhado com uma orientação solar não ideal, numa casa particular, poderá representar, quando se considera todo o seu ciclo de vida, um efeito global negativo no ambiente, por mais bem intencionada que tenha sido a decisão do proprietário da casa ao instalá-lo.
Também nem sempre se leva em conta que o saco de pano tem um custo ecológico de fabrico tão superior ao de um saco de plástico que só se torna ambientalmente menos lesivo se for reutilizado 131 vezes (assumindo que o tecido é algodão), pelo que o saco de plástico poderá, em muitas situações (e sobretudo se for reutilizado), revelar-se opção mais sensata do ponto de vista ambiental. O Expresso justificou a troca do seu tradicional saco de plástico por um de papel como sendo uma “contribuição para a sustentabilidade do nosso planeta”, mas na verdade um saco de papel, embora possa ter menor pegada de carbono, terá de ser reutilizado três vezes mais do que um de plástico para ter uma pegada ecológica equivalente.
As veementes exortações a consumir produtos locais e a rejeitar os que vêm de longe como via para a “santidade carbónica”, assentam num entendimento simplista do funcionamento do ciclo de produção e consumo de alimentos, como demonstraram Christopher L. Weber & H. Scott Matthews, num artigo publicado em 2008 na revista Environmental Science & Technology, concluindo que, para os EUA, o transporte representa, em média, apenas 11% das emissões de gases com efeito de estufa associados ao ciclo e apenas 4% das emissões correspondem ao transporte entre o produtor e o retalhista. Este transporte é, usualmente, feito em massa, através de procedimentos logísticos optimizados, e pode ter uma pegada de carbono bem inferior ao da deslocação de automóvel do consumidor final ao hiper-mercado ou ao “ambientalmente consciente” mercado dos produtores locais.
As condições locais de produção também influenciam a pegada ecológica e podem sobrepor-se à componente do custo ecológico do transporte: uma alface produzida na Dinamarca durante o Inverno requer um consumo de energia e recursos que pode exceder o da soma da energia e dos recursos envolvidos em fazê-la crescer em Portugal na mesma altura do ano acrescidos do custo do seu transporte até à Dinamarca; no Verão, todavia, pode ser ambientalmente mais vantajoso ao habitante de Copenhaga comprar a alface dinamarquesa. Reciprocamente, quem queira jogar golfe e viva no Algarve, onde o clima é quente e seco e é preciso pagar uma factura ambiental elevada para manter os relvados vivos e com saúde, poderá concluir que produz menos estragos no planeta se voar até um campo de golfe na Escócia ou na Irlanda (ou na Holanda ou Dinamarca, se se quiser evitar a viagem de avião), onde a relva cresce naturalmente, sem necessidade de rega ou de manutenção intensiva (o que é irónico é que os golfistas costumam movimentar-se de avião em sentido inverso).
A “campanha pela alimentação local” tem-se tornado tão insistente, omnipresente e fanática que se estranha que não tenha ainda surgido a “campanha pelo casamento local”: quem se case fora da comunidade local vai, necessariamente, ter de viajar algumas vezes por ano para visitar os sogros (ou os sogros virão em visita), causando emissões de CO2 que tornam irrisórias as que decorrem de comer maçãs argentinas e salmão norueguês. O ideal, do ponto de vista da alimentação e das relações humanas, é que regressemos todos ao modelo medieval, em que a maior parte das pessoas levava as suas vidas num raio de 20 ou 30 Km em torno do local de nascimento. Pela mesma lógica, não tardará a surgir a “campanha pela música local”, que demonizará as tournées de artistas internacionais, sobretudo os de origem mais remota – a bem do planeta, os portugueses terão de habituar-se à ideia de não voltar a ver Bruce Springsteen ou os BTS ao vivo.
O ambientalismo mais simplista também têm dificuldade em compreender o conceito de economia de escala, que faz com que os custos ecológicos da agricultura intensiva em grandes superfícies, ao serem repartidos por um grande volume de produtos e ao requererem escassa intervenção humana, podem ser inferiores ao dos produtos cultivados com esmero por um agricultor biológico solitário numa pequena horta nas redondezas (ver capítulo “Será que precisamos realmente de produzir os nosso próprios alimentos?”, em E se os ricos pudessem comprar votos?).
Quem compre um carrinho de mão para a sua horta de 1000 m2 terá, para efeitos de contabilidade ambiental, de ratear o seu custo (ambiental) por todos os legumes que nela produzir e terá de produzir algumas toneladas de couves e beringelas até conseguir amortizá-lo. E para contabilizar a pegada ecológica de um produto é preciso também considerar a fracção de pegada ecológica associada às pessoas envolvidas na sua produção, pelo que a “idílica” agricultura biológica em pequena escala, que dispensa “químicos” e maquinaria mas é intensiva em trabalho, pode acabar por revelar-se menos sustentável do que a agricultura industrial (embora possa apresentar vantagens nas qualidades organolépticas dos produtos – o que seria outro assunto).
O ambientalismo fundamentalista que lança fatwas sobre a carne de vaca ou a fruta importada labora frequentemente em erro, pois não considera que o mundo é complexo e não pode ser percebido através de uma foto a preto e branco de alto contraste.
Uma história de sobre-endividamento
O conceito de Dia de Sobrecarga da Terra (Earth Overshoot Day, EOD) pode ser contestado quanto aos critérios e dados usados no seu cálculo, mas não deixa de ser um indicador útil na avaliação da relação da humanidade com o planeta. O conceito, desenvolvido originalmente pela Economics Foundation (e que anteriormente foi conhecido como Ecological Debt Day) e que é hoje calculado pela Global Footprint Network, faz as contas à biocapacidade do planeta (o total dos recursos naturais gerados ao longo do ano) e confronta-os com a pegada ecológica global (o consumo desses recursos pelas sociedades humanas). Em linguagem de finanças pessoais, o Dia de Sobrecarga da Terra é o dia em que a nossa “conta ambiental” fica a descoberto.
Quando a humanidade era menos numerosa e menos consumista, o ano acabava com crédito na conta, mas no início da década de 1970 começámos a gastar recursos mais depressa do que os sistemas naturais os repunham. Em 1974, a conta ficava a descoberto no início de Dezembro, na viragem do milénio na primeira semana de Outubro e em 2019 o dia fatídico ocorreu a 29 de Junho, o que significa que a meio do ano já tínhamos gasto todo o “capital ecológico” do ano.
Examinando a evolução do Dia de Sobrecarga da Terra ao longo do tempo constata-se que a tendência galopante para a sua antecipação só é sustida nos períodos de crise económica global – o “choque petrolífero” de 1973, as recessões do início do anos 80 e do início dos anos 90, o rebentamento da “bolha” das dot.com na viragem do milénio, a crise do subprime de 2007 e a subsequente crise das dívidas soberanas. Ou seja, a ecologia só arrebita quando a economia vai ao fundo – um inquietante indício de que a economia não estará a ser gerida da forma mais correcta.
Pode perguntar-se como pode o Dia de Sobrecarga da Terra chegar cada ano mais cedo se, desde o início da década de 1990 se têm multiplicado as cimeiras e acordos internacionais sobre exploração de recursos naturais, poluição e alterações climáticas (nomeadamente Rio de Janeiro em 1992, Kyoto em 1992, Paris em 2015), se têm vindo a desenvolver-se tecnologias de fabrico cada vez mais limpas e eficientes, se por todo o lado se implementou a reciclagem, se se lançaram programas de reabilitação de zonas contaminadas, se têm sido encerradas unidades industriais e centrais eléctricas poluidoras e se aposta maciçamente em energias renováveis, se os veículos híbridos e eléctricos começam a implantar-se, se se melhorou a eficiência térmica das novas construções, se governos, empresas e particulares decretaram guerra ao plástico, se cada vez mais marcas de produtos e eventos, da alta costura aos festivais de rock, se apresentam hoje como “verdes”, “amigas do ambiente”, “sustentáveis” ou “neutras em carbono”.
Este paradoxo dissipa-se quando se examinam mais de perto as proclamações de “neutralidade carbónica” que agora estão em voga. Tome-se o anúncio, surgido a 4 de Outubro, pelo fabricante de carros de luxo Bentley, de que a sua fábrica em Crewe, Grã-Bretanha, se tinha tornado “neutra em carbono”. A notícia irá certamente tirar um peso da consciência a quem estava a pensar comprar um sedan Bentley Mulsanne (512 HP, preço em Portugal entre 383.000 e 440.000 euros, emissões de CO2 de 342 g/Km, ou seja, 3.4 vezes as emissões de um pequeno automóvel citadino), mas tinha reticências no domínio ambiental. Se fosse verdade, seria uma excelente notícia, mesmo para quem não tem rendimentos ou apetência para comprar um Bentley, pois significaria que a indústria automóvel conseguira um milagre.
Porém, basta ler o comunicado na íntegra para perceber que, por trás da eco-gabarolice, a Bentley só afirma que, graças à instalação de painéis solares, a fábrica de Crewe se tornou auto-suficiente na produção de energia eléctrica. Ora o consumo directo de energia eléctrica é apenas uma das parcelas da pegada de carbono total da fábrica, que, por sua vez, é apenas uma componente da colossal pegada ecológica associada ao fabrico de uma dessas maravilhas sobre rodas que é um Bentley. Some-se a isto que os custos (ecológicos) da operação e manutenção dos veículos saídos da linha de montagem de Crewe continuam a ser tão elevados como dantes, e concluir-se-á que, mesmo se escolher o mais “eco-friendly” dos Bentleys, o SUV híbrido Bentayga (550 HP, preço em Portugal 240.000 a 295.000 euros, emissões de CO2 de 260 g/Km, ou seja 2.6 vezes as emissões de um pequeno automóvel citadino a gasolina), não estará a contribuir para salvar o planeta.
A maior parte dos media não quer saber de minudências e limitou-se a reproduzir a ideia de que a Bentley era agora “neutra em carbono”, havendo mesmo quem se entusiasmasse e, numa extrapolação delirante, proclamasse que a Bentley é “a marca [automóvel] mais sustentável” do mundo.
[Este conto de fadas tem um belo tom de verde mas a tinta sai toda com a primeira chuva]
Ao contrário do que pode depreender-se da vaga de notícias que inundou os media sobre empresas que abraçam a causa da sustentabilidade”, a maior parte das marcas não estão a fazer esforços realmente relevantes para se tornarem mais verdes. Estão, sim, a investir em campanhas de marketing que dêem a ilusão de estarem a ficar mais verdes.
Se as grandes empresas e os governos parecem pouco dispostos a tomar acções relevantes contra as alterações climáticas, a maioria dos investidores, grandes e pequenos, não mostra comportamento diferente. Um estudo realizado em 2019 pela multinacional de gestão de fundos Schroders, que sondou 25.000 pessoas em 32 países (um dos quais foi Portugal), revelou que 63% dos investidores acreditam que as alterações climáticas irão ter um efeito negativo sobre os seus investimentos, porém, apenas 32% expressou interesse em investir em activos sustentáveis, e apenas 16% realizaram efectivamente esse investimento.
Esta grave dissonância cognitiva pouco difere, afinal, da do cidadão comum português, que diz estar preocupadíssimo com os cenários de redução de precipitação e de maior frequência de ondas de calor que os climatologistas prevêem para a Península Ibérica, mas que rezinga azedamente de cada vez que chove e sopra um vento fresco (ver E se pudéssemos ter 364 dias de Verão?).
Pânico numa casa em chamas
A ABC comparou o discurso de Greta Thunberg na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Setembro passado, aos de Winston Churchill, Martin Luther King e John F. Kennedy; no The Guardian, Richard Flanagan comparou-o ao Discurso de Gettysburg, de Abraham Lincoln; o Sydney Morning Herald viu em Greta “um verdadeiro líder, de qualquer ponto de vista”.
É difícil perceber todo este entusiasmo: Greta limita-se a repisar generalidades e a debitar slogans que fazem parte do discurso dos movimentos ambientalistas há décadas. A haver novidades, estarão na sua tenra idade e na veemência (e ressentimento, no discurso de Nova Iorque) com que se exprime.
Quando é solicitada a ir um pouco mais além da langue de bois dos seus discursos panfletários, Greta parece ter pouco para dizer.
Mas a verdade é que o discurso sobre ambiente de governantes, políticos e ambientalistas de sofá também não costuma ser mais sofisticado nem denotar reflexões ou conhecimentos aprofundados sobre o assunto. Veja-se, por exemplo, como na recente onda de indignação perante a continuada desflorestação da Amazónia foi inúmeras vezes repetido, dos discursos do presidente Emmanuel Macron a artigos de opinião de deputados do Bloco de Esquerda na imprensa portuguesa, a tolice de que “a Amazónia é o pulmão do planeta” (fornecendo argumentos a Bolsonaro e aos arautos do desenvolvimento ilimitado para desacreditar quem pugna pelo ambiente). Quando adultos em lugares de responsabilidade e rodeados de assessores se ficam pelo cliché e pela superficialidade, que pode esperar-se de uma rapariga de 16 anos?
A pouca idade e a fragilidade da figura de Greta não têm sido contabilizadas como atenuantes pela direita e extrema-direita, onde se abrigam os negacionistas das alterações climáticas e os crentes do desenvolvimento ilimitado num planeta limitado, pelo que a jovem activista tem sido atacada com a mesma sanha que seria aplicada a um adversário adulto.
Em Julho passado, na Assembleia Nacional francesa, deputados de direita e extrema-direita opuseram-se a que uma “profetisa do apocalipse em calções” discursasse perante o plenário, pelo que Greta acabou por dirigir-se aos deputados noutra sala. Por outro lado, têm sido veiculadas suspeitas de que a inocente Greta será um joguete nas mãos dos pais e do novo “capitalismo verde”. Há quem sugira que a sua greve pelo clima foi uma manobra promocional para promover Scener ur hjärtat (Cenas do coração), o livro autobiográfico da sua mãe, Malena Ernman, que trata do empenhamento da família na luta pelo ambiente e das perturbações psicológicas das filhas, Greta e Beata.
Malena Ernman, que é cantora de ópera, terá desistido da componente internacional da sua carreira porque o eco-fundamentalismo de Greta a terá convencido a desistir de andar de avião, mas não parece, para já, importar-se por serem abatidas árvores para imprimir o seu livro. Outros rumores sugerem que a greve pelo clima de Greta terá sido iniciativa do empresário Ingmar Rentzhog, que depois se terá aproveitado da imagem da jovem activista para promover os seus negócios na área da sustentabilidade.
Reagindo à intervenção de Greta em Nova Iorque, Vladimir Putin, após fazer um elogio sonso ao papel dos adolescentes em chamar a atenção para os problema do nosso tempo (os adolescentes russos que o tentam fazer são reprimidos com bastonada e canhões de água), insinuou que Greta, embora bem intencionada, está a ser usada por gente que pretende fazer dinheiro à sua custa (as indústrias de energias renováveis e outro “capitalismo verde”, fica subentendido), o que não é uma posição inesperada da parte do líder de um país cuja periclitante economia está assente na exportação de combustíveis fósseis e cujos amigos e cúmplices mais importantes detêm cargos nas maiores empresas russas de combustíveis fósseis.
[Vladimir Putin fala sobre Greta, numa conferência sobre energia em Moscovo, Outubro de 2019:]
Dando provas da descabida importância que uma adolescente de 16 anos assumiu no que deveria ser um debate exaustivo e ponderado entre especialistas em clima e economia e políticos responsáveis, no próprio dia em que Greta discursou na Assembleia Geral das Nações Unidas, a sociedade Friends of Science entregou uma carta ao Secretário-Geral da ONU, assinada por 500 cientistas, em que se reafirma que não existe emergência climática alguma. Apesar de o nome da sociedade sugerir um apreço generalizado pela ciência, a Friends of Science, fundada em 2002, tem uma única missão: desfazer os “mitos das alterações climáticas”. Para a Friends of Science, todos os pressupostos da “emergência climática” estão errados: o crescimento das temperaturas nas últimas três décadas não é tão grande como se pretende e faz parte de um padrão corrente de oscilações, as calotas polares não estão a derreter, não há relação causa-efeito comprovada entre o aumento da concentração de CO2 na atmosfera e a subida das temperaturas, o principal factor que controla a temperatura da Terra é a actividade do Sol e o aquecimento global não é a causa do aumento da frequência e violência de furacões e outros fenómenos atmosféricos extremos. Para a Friends of Science, os esforços para que o mundo seja neutro em carbono em 2050 irão prejudicar o crescimento económico e impedir que milhões de pessoas nos países menos desenvolvidos não consigam sair da pobreza (pode perguntar-se o que impediu o mundo de melhorar a condição dos seus pobres antes de se ter começado a gastar dinheiro na luta contra as alterações climáticas…).
Alguns pontos desta tomada de posição mereceriam discussão, mas quando nos deparamos com o argumento de que “o CO2 é um alimento das plantas e a base de toda a vida na Terra”, suspeita-se de que há por aqui falta de seriedade: ninguém contesta que o CO2 seja uma componente natural da atmosfera terrestre e seja indispensável à fotossíntese, mas tal não impede que não seja plausível que, quando a sua concentração cresce muito, o seu papel como gás de efeito de estufa não possa causar o aquecimento do planeta (e sem que a produção fotossintética seja beneficiada, já que as temperaturas mais elevadas e a falta de água irão provavelmente afectar negativamente a produtividade e a saúde das plantas).
A Friends of Science queixa-se do tratamento desigual que os media dão ao assunto das alterações climáticas: enquanto cada palavra de Greta é bebida avidamente, os comunicados da Friends of Science costumam ser ignorados.
[A carta da Friends of Science a António Guterres. A Friends of Science escolheu contrapor ao tom acusatório, neurótico e à beira das lágrimas da adolescente Greta, o tom calmo, ponderado e apaziguador de avó experiente e sensata de Michelle Sterling:]
Mas não é preciso dar crédito a teorias conspirativas para achar plausível que a obstinação de Greta na sua cruzada pelo clima pode ser parcialmente explicada pelo seu historial clínico: para lá de ter passado por crises de depressão, letargia e mutismo e ter comportamentos obsessivo-compulsivos, foi diagnosticada com síndrome de Asperger, que favorece a focagem estreita, a monomania e a visão do mundo a preto e branco e exacerba emoções como o medo. As suas intervenções públicas deixam ver uma criança aterrada com a perspectiva de perecer num holocausto iminente. Greta não só se confessa apavorada, como pretende instilar esse medo nos outros, como deixou claro no discurso no Fórum Mundial de Davos: “Os adultos estão sempre a dizer aos jovens para terem esperança. Mas eu não quero a vossa esperança. Não quero que tenham esperança. Quero que entrem em pânico. Quero que sintam o medo que eu sinto todos os dias e quero que ajam. Quero que ajam como se estivessem numa crise. Quero que ajam como se a casa estivesse em chamas – porque está”. Numa intervenção no Parlamento Europeu, em Strasbourg, apresentou-se assim “Chamo-me Greta Thunberg, tenho 16 anos, venho da Suécia e quero que entrem em pânico”.
Naomi Klein, uma das vozes mais sonantes do eco-activismo, que, após o pífio This changes everyting: Capitalism vs. climate, de 2014 (publicado em Portugal como Tudo pode mudar), lançou no mês passado On fire: The (burning) case for a new green deal, numa entrevista (Público de 20.09.19) afinava pelo diapasão emocional de Greta: Klein confessa que “não passa um dia em que não tenha um momento de pânico puro, terror cru, completa convicção de que estamos condenados”.
Também Al Gore, o primeiro “climate warrior” (ou profeta carbónico) a conquistar notoriedade planetária, estava convencido de que “temos de criar medo!”. Parece ter falhado nesse intento, pois o livro, o documentário e a tournée mundial de conferências pelo clima que pôs em marcha a partir de 2006, também foram ovacionados (e premiados), mas, após esta fugidia comoção, foram varridos para um canto, enquanto todos retomavam o business as usual.
De qualquer forma, não é da eco-ansiedade instigada por Thunberg, Klein, Gore e seus correligionários de que precisamos. Numa casa em chamas, o pânico pode ser fatal, pelo que há que manter a cabeça fria.
Se o pendor alarmista do discurso de Thunberg pode ser contraproducente e o tom ressabiado e dogmático do seu discurso em Nova Iorque é descabido, há que reconhecer que 1) Greta tem tido o mérito de reavivar um problema que requer actuação de cidadãos e governos e que estava relegado para segundo plano desde a mega-tournée de Al Gore; 2) o seu empenho na luta contra as alterações climáticas é desinteressado (em contraste com Gore, que cobrava 100.000 dólares por cada sessãozita de Power Point); e 3) Greta tem tido a humildade de deixar claro que nem sequer se considera particularmente qualificada para essa missão: na sua intervenção numa sessão da comissão sobre alterações climáticas do Congresso dos EUA, a 18 de Setembro, disse: “não quero que me ouçam a mim, quero que ouçam os cientistas”.
[Greta na comissão sobre alterações climáticas do Congresso:]
Greta, os seus devotos e os seus adversários
Se, à luz do seu historial psicológico, o comportamento de Greta é compreensível, já não o é o dos governantes e líderes de importantes organizações internacionais que têm louvado a sua sabedoria e intrepidez. Quando os responsáveis pelos destinos do mundo presentes na Assembleia Geral das Nações Unidas ouvem Greta acusá-los de, perante a iminência de uma catástrofe ambiental irreversível, nada fazerem e “só saberem falar de dinheiro e de contos de fadas sobre crescimento económico eterno” e respondem com aplausos entusiásticos, o que pode concluir-se? Que entendem ter feito tudo ao seu alcance e estão de consciência tranquila, sendo os desmandos ambientais e a inacção perante as mudanças climáticas culpa de outros? Ou aplaudem hipocritamente, porque o ambientalismo está em voga e Greta é popular, mas não fazem tenção de se desviar do curso que têm tomado até agora? Por que razão não têm levado a sério os especialistas em ambiente que há décadas fazem alertas no mesmo sentido, respaldados no rigor e na autoridade científica, e agora acham notável ouvir uma versão simplificada e maniqueísta dos mesmos alertas veiculada por uma miúda de 16 anos?
Mas os políticos que enchem os discursos de “carbono zero” e “sustentabilidade” e se abstêm de tomar medidas realmente importantes nesse sentido não estarão apenas a dar cumprimento à vontade dos seus eleitores, cujo insaciável consumismo só pode ser satisfeito pelo “crescimento económico eterno”? Que pode dizer-se destes cidadãos comuns que acham que Greta está cheia de razão, mas na prática não estão dispostos a fazer sacrifícios relevantes para diminuir a sua pegada ecológica?
O ambientalismo de sofá obtém a sua informação a partir de soundbites nas redes (ditas) sociais e de vídeos simplistas e tendenciosos de três minutos no YouTube e esgota-se na reprodução de clichés panfletários em tweets e posts no Facebook e no cumprimento de acções simbólicas que não têm outro efeito que não o de tranquilizar consciências, de forma a que possamos continuar a levar essencialmente o mesmo estilo de vida que nos trouxe até à inquietante posição em que hoje estamos (ver Urinar no duche não adia o fim do mundo).
Naomi Klein, na entrevista acima referida, afirma que “as nossas decisões individuais não têm qualquer efeito face à escala da mudança de que precisamos”. Klein tem fraca compreensão de como funcionam o mundo natural, a economia e a psicologia humana, como atesta o seu frouxo, pouco rigoroso e narcísico livro Tudo pode mudar, pelo que não se apercebe de que, em última análise, as “dark satanic mills” não laboram para cumprir os desígnios maquiavélicos de um capitalismo apostado na destruição do planeta mas para satisfazer o apetite por bens e serviços dos cidadãos comuns. O capitalismo pode ser selvagem mas não é estúpido: só gera bens e serviços para os quais existe procura, portanto, as nossas decisões individuais são decisivas para operar a mudança e negá-lo é um acto de desresponsabilização.
É essa desresponsabilização que faz muitos acolherem favoravelmente o discurso de Greta: embora ela dirija a sua fúria aos adultos em geral, o seu alvo principal parecem ser os decisores – os líderes políticos, os CEOs das multinacionais – o que faz o cidadão comum sentir-se dispensado de fazer a sua parte na luta pela sustentabilidade.
O que é curioso é que os devotos de Greta Thunberg e as vozes mais audíveis que se erguem no espaço público em defesa do ambiente provêm sobretudo dos estratos mais privilegiados da sociedade (ver A caminho do Inferno, ao volante de um SUV). São eles, os frequent flyers, os proprietários de amplas casas com piscina e relvado, os gourmets requintados, os condutores de SUVs de duas toneladas, que fazem sermões à classe média e aos remediados sobre como deverão conduzir uma vida ambientalmente responsável. Os eco-activistas mais ruidosos até costumam ser os que estão no vértice da pirâmide: a beautiful people, as estrelas do showbiz e das passerelles de moda que andam pelo mundo de jacto privado e reservaram já bilhete para as viagens de turismo espacial da Space X, da Virgin Galactic e da Blue Origin, empresas criadas pelos paladinos da sustentabilidade Elon Musk, Richard Branson e Jeff Bezos (respectivamente). E Leonard DiCaprio, Penélope Cruz, Anne Hathawy, Cara Delevingne, Lena Headey, Billie Eilish, Chris Hemsworth, Janelle Monáe e Mark Ruffalo não vêem, aparentemente, qualquer contradição em louvar publicamente os discursos de Greta e em terem uma pegada ecológica individual equivalente à de toda a população de uma cidade afegã.
Numa atitude análoga, as nações desenvolvidas arengam às nações menos desenvolvidas sobre a necessidade de limitar as emissões de carbono e preservar as florestas – ao que os asiáticos, africanos e sul-americanos poderão responder: “Deixem-nos subir até ao vosso nível de vida, permitam que a nossa pegada ecológica per capita cresça até ter o tamanho da vossa e então poderemos pensar nisso”.
Entre os devotos de Greta estão, finalmente, os miúdos da sua idade que, pelo mundo fora, têm aderido ao movimento de greve às aulas pelo clima e que têm sido elogiados por políticos e comentadores como se estivessem a fazer algo de heróico e têm encontrado solidariedade pela parte de professores e direcções de escolas. O presidente da Associação dos Directores de Escolas de Portugal louvou a sua “atitude cívica” e considerou que a experiência de vida que é um dia de gazeta pelo ambiente, agitando cartazes com slogans copiados das manifestações no estrangeiro, “vale mais do que um dia dentro da escola”, o que, a ser verdade, é uma tocante admissão do fiasco que é o nosso sistema de ensino. E, tal como no caso da recepção apoteótica aos discursos de Greta, há algo de esquizofrénico nos adultos que aplaudem os jovens que os acusam de conduzir o planeta para a catástrofe ambiental e de estarem “a cagar-se para o seu futuro”.
Este louvor dos “jovens na rua” parece não dar-se conta de que a adesão dos estudantes à greve não implica sacrifício algum – pelo contrário, poupa-os à “seca” das aulas – e, por outro lado, admite que existe uma relação entre fazer gazeta e lutar contra as alterações climáticas – serão as aulas uma das principais fontes emissoras de CO2? O comprometimento dos adolescentes portugueses na causa ambiental seria mais credível se decidissem boicotar os festivais de música de Verão ou acabar com as viagens de finalistas a Lloret de Mar ou, melhor ainda, se se recusassem a ser levados à escola de automóvel pelos pais. Os comentadores têm dito e escrito que é bom ter os jovens nas ruas a lutar pelo futuro do planeta, mas do que este precisa não é de espectáculos circenses nas ruas, é de mudanças de comportamentos em casa.
A “paixão” dos adolescentes portugueses pelas causas ambientais está, aliás, bem patente no facto de, este ano, o curso do ensino superior que ficou com mais vagas por preencher – em 66, nenhuma foi ocupada – ter sido Engenharia de Energias Renováveis, no Instituto Politécnico de Bragança.